Por Graziele Souza
Sergio Adorno tem graduação em ciências sociais, e doutorado em sociologia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor de sociologia da USP e também coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da instituição.
Em entrevista para a ComCiência Adorno falou sobre a violência no Brasil e sua relação com a desigualdade social existente no país. Sendo que muitas vezes existe em regiões periféricas a carência do cumprimento dos direitos, principalmente o direito à segurança e à proteção da vida. Além de comentar sobre anestesia moral e exemplificar como esse fenômeno pode ocorrer na sociedade brasileira.
ComCiência – Muitas chacinas acontecem, principalmente, quando há morte de polícia ou de criminosos, como forma de retaliação ao que aconteceu. O que isso diz da sociedade atual?
Sergio Adorno – Em primeiro lugar, seria preciso discutir o próprio conceito de chacina. Chacina é um termo utilizado pelas agências e agentes policiais para descrever ocorrências em que há, pelo menos, dois ou três mortos em uma mesma ação criminal. Esse termo esconde as motivações dessas ocorrências e suas modalidades. Por exemplo, execuções sumárias praticadas por grupos constituídos por policiais, civis e militares, com ou sem a anuência de moradores de bairros onde habitam preferencialmente famílias de trabalhadores de baixa renda. Podem também alcançar mortes decorrentes de vinganças pessoais, em situações como quebra de lealdades pessoais, disputas de territórios, partilha de produtos de negócios ilegais, desconfianças motivadas por delações de crimes e de criminosos a autoridades policiais e, inclusive, em represálias pela morte de policiais, de criminosos conhecidos e mesmo de moradores que nada tinham a ver com o mundo do crime. Portanto, chacinas escondem situações muito variadas. É frequente que esses casos não sejam investigados pelas autoridades competentes, de forma que há poucos estudos, a maior parte realizados com base nas informações que vem ao conhecimento público através da mídia eletrônica e impressa. Como hipótese, tudo indica que as execuções sumárias, em suas diferentes formas, representam uma forma de aplicação de justiça popular, não oficial, possivelmente como resposta à crise do sistema de justiça criminal e à desconfiança nos agentes encarregados de aplicar a lei e a ordem. Mas, é uma hipótese que precisa ser examinada com muita cautela e cuidado.
ComCiência – Muitas vezes, as vítimas das chacinas não têm nenhum envolvimento com nenhuma das partes que travaram a batalha. Teria alguma forma de evitar que esse tipo de “punição” aconteça?
Sergio Adorno – Como dito anteriormente, tudo sugere que tais ocorrências ocupam o lugar da justiça pública oficial. Em muitos bairros das regiões metropolitanas, que compõem a chamada periferia urbana, carências sociais e institucionais se sobrepõem, como tem demonstrado inúmeras investigações. Entre essas carências, é flagrante a não universalização de direitos para a grande maioria dos moradores, em especial o direito à segurança e à proteção da vida. Nas sociedades modernas do mundo ocidental, a proteção do direito à segurança e à vida é tarefa não apenas das agências encarregadas de distribuir justiça social sob a forma de garantias mínimas (habitação, escolarização, profissionalização, segurança alimentar, saneamento etc.) como também das agências encarregadas de prevenir crimes, conter a violência e responsabilizar criminosos, respeitados os preceitos constitucionais vigentes em tal ou qual Estado-nação. É certo que, em todo o mundo, essas garantias estão sob perigo, em virtude de profundas mudanças sociais pelas quais vem passando nossa contemporaneidade e que potencializaram, sob diferentes modalidades, o emprego da violência como uma espécie de recurso para enfrentamento de conflitos nas relações sociais e políticas entre desiguais. Ainda assim, a consolidação de direitos mínimos, o monopólio estatal da violência, a condução das políticas de segurança compatíveis com o estado democrático de direito, inclusive a condução dos agentes policiais segundo protocolos profissionais rígidos que coíbem o uso abusivo e indiscriminado da força – tudo isso conjugado pode enfraquecer o apelo a essas formas rústicas de aplicação da justiça e fortalecer, em contrapartida, a confiança e a legitimidade das instituições responsáveis por aplicar as leis e garantir justiça para maior número de pessoas.
ComCiência – O Estado pode ser responsabilizado quando policiais usam a violência, por exemplo as chacinas, como forma de punição?
Sergio Adorno – Sim, há previsão constitucional e legal para punição de agentes policiais que empregam de forma abusiva, arbitrária e sem justificativa plausível o poder coercitivo. Para tanto, seria necessário que, em espaço de tempo não muito longo, as agências policiais adotassem medidas rigorosas para investigação de tais acontecimentos, punição dos responsáveis em clara manifestação de que essas instituições não aceitam ou toleram o uso abusivo da força, sem justificativas plausíveis. Enquanto não houver uma clara sinalização dessas agências nessa direção, a mensagem subjacente para os policiais é que esse emprego abusivo da violência é aceitável em nome da “segurança da sociedade”. Em decorrência, tanto as organizações não-governamentais, quanto governamentais, Ministério Público por exemplo, assim como civis podem acionar contra o Estado, ou ao menos algumas de suas autoridades, pelo não cumprimento de preceitos constitucionais ou até mesmo de convenções internacionais das quais o país seja signatário.
ComCiência – Os linchamentos também costumam ser uma forma de punição exemplar para que outros não comentam o mesmo crime? Por que, geralmente, a punição está ligada à violência?
Sergio Adorno – Linchamentos são fenômenos muito distintos das execuções sumárias, tanto em suas formas de manifestação, dinâmica e características dos protagonistas sociais envolvidos. Possivelmente, há entre linchamentos e execuções sumárias sentimentos assemelhados quanto à desconfiança nas instituições públicas de justiça e nos agentes encarregados de aplicar as leis. Certamente, a natureza da crítica social subjacente a esses sentimentos coletivos embaralhados em ambas as formas de justiçamento popular, traduzem distintas leituras a respeito de valores sociais, tais como justiça, paz, segurança, vida comunitária. Embora poucos, os estudos disponíveis, bem conduzidos e com a densidade consolidada no tempo, já identificam essas diferenças. Por fim, não há punição que não esteja, de uma forma ou outra, relacionada à violência. O problema é a violência ilegítima, praticada por quem não está legalmente investido para fazê-lo, empregada de forma cruel, com intensidade que compromete a integridade física, psíquica e moral de quem quer que seja, criminoso ou não. A punição é instrumento utilizado desde a antiguidade como forma de controle social. O principal objetivo da punição é desestimular a prática de ações, crimes e violências que causem dano de qualquer espécie às pessoas, grupos, aos coletivos organizados. O sonho de uma sociedade sem punição e sem violência supõe uma sociedade internamente uniforme, na qual não há divergência a respeito do que é considerado certo ou errado, justo ou injusto, bem ou mal. Estamos longe desse ideal. O problema, portanto, é assegurar que a punição esteja sob controle da autoridade política legitimamente constituída para aplicá-la, sem intermediários ilegais ou independentemente de ações à ilharga dos preceitos morais e legais.
ComCiência – Durante o período da ditadura militar no Brasil foram usadas várias formas de tortura contra aqueles que eram contra o regime e também para obter informações dessas pessoas. Hoje em dia, o governo utiliza outras formas de punição aos que não concordam com seus princípios?
Sergio Adorno – Denúncias, levantamentos de OGNs e mesmo estudos indicam que a tortura não foi completamente erradicada de nossas práticas punitivas. A violência policial nos bairros que compõem a periferia urbana permanece, o número de mortes praticadas por policiais militares nas chamadas “reações de criminosos seguida de morte” vem crescendo nos últimos cinco anos, a violência indiscriminada da polícia nas manifestações de rua e protestos sociais continua a ocorrer sem grandes interditos institucionais. A sociedade brasileira mudou, porém práticas correntes durante a vigência da última ditadura militar são recriadas e convivem com a vigência da democracia.
ComCiência – Em entrevista à BBC, em 2015, você afirmou que “chacinas revelam anestesia moral”. O que seria essa “anestesia moral”?
Sergio Adorno – Trata-se de um fenômeno cuja extensão e adensamento social ocorreu, sobretudo, na Alemanha, durante a vigência do regime nazista. Anestesia moral significa não considerar o outro como pertencente à humanidade, portador dos mesmos direitos à vida e aos demais direitos civis, políticos, sociais, culturais. Significa, antes de tudo, não manifestar qualquer solidariedade com a dor e o sofrimento do outro, o que pode se traduzir em aquiescência para eliminação de todos aqueles que não pertencem à mesma raça preconizada pelos Estados como a mais perfeita e digna de existência, à mesma ideologia considerada oficial pelo Estado, à mesma nacionalidade, à mesma classe social. Guardadas as enormes diferenças, há manifestações de “anestesia moral” na sociedade brasileira quando parcela dos cidadãos considera legítimo a polícia matar suspeitos de haver cometido crimes ou, mesmo quando não concordam com tais práticas, mantém silêncio em relação à morte de jovens pobres e negros na periferia das regiões metropolitanas por todo o país ou, ainda, não se indignam com as condições de vida presentes nas prisões brasileiras.
ComCiência – As pessoas aceitarem tanta violência no cotidiano, e já não tentarem mais reverter essa situação, seria um dos motivos da persistência da violência?
Sergio Adorno – Penso que esta questão não pode ser abordada de forma tão direta e, até mesmo, mecanicista. É certo que, entre certos moradores das grandes cidades, em especial nos bairros onde as carências se sobrepõem, as mortes acabam como que naturalizadas, como uma espécie de destino trágico ao qual os pobres estariam – como se de fato estivessem – predestinados. Muitos desses cidadãos são responsabilizados por sua condição social. Cria-se assim, no imaginário social, uma espécie de aliança entre ser pobre e viver na e da violência. É preciso fazer a crítica da violência. E, como dizia Walter Benjamin, fazer a crítica da violência é fazer a crítica do poder. A crítica deve desnudar não só o poder, mas também a violência como uma forma de nos dividir, de acentuar desigualdades sociais e de sustentar essa grande ilusão de que violência é uma forma de resistência. Não, definitivamente. É, sim, uma forma de reproduzir desigualdades e de enfraquecer democracias.