Por Suzana Petropouleas
Há vários tipos de percepção do que é a punição, desde aquelas mais ligadas ao sagrado até as condicionadas pela ordem profana. Para a antropologia, não há uma noção universal de punição, muito menos da necessidade de punir.
A sociedade, em geral, entende a punição como uma consequência de desacordos em relação a padrões prescritos. Para a antropologia, no entanto, não existe uma noção universal sobre o que é ou como deve ser a punição. Não há nada que possa ser chamado de universal e definitivo do ponto de vista dos trabalhos antropológicos.
Norbert Rouland, antropólogo francês contemporâneo, autor do clássico Antropologia jurídica, afirma em sua obra que há vários tipos de percepção do que é a punição, desde aquelas mais ligadas ao sagrado até as condicionadas pela ordem profana, ou seja, acordos entre os homens na esfera de uma política humana. Segundo a antropóloga e professora da Universidade de São Paulo Ana Lucia Pastore Schritzmeyer, “o importante é que a antropologia percebe que não há uma noção universal de punição, muito menos da necessidade de punir”.
O antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, por sua vez, mencionou em seus estudos dois tipos básicos segundo os quais a sociedade lida com aquilo que lhe é desconfortável, que causa conflito: uma maneira seria incorporar a pessoa entendida como a causadora do conflito e considerar que toda sociedade é responsável por ela e pelo conflito em si; e uma segunda maneira seria expurgar, jogar para fora, eliminar essa pessoa que é concebida como causadora do conflito. A sociedade ocidental moderna está majoritariamente nessa segunda chave – quando se vê diante de um conflito, procura culpados e tenta retirá-los da vida social, seja prendendo-os num presídio, manicômio ou matando-os.
Quem tornou mais rica essa percepção sobre as sanções penais ao conflito foi o filósofo francês Foucault. Em referência a Lévi-Strauss, Foucault argumenta que há outras maneiras com as quais a sociedade lida com conflitos e com quem é julgado causador do conflito, as quais chama de mecanismos disciplinares na formação de “corpos dóceis”, e que contemplam aspectos do controle social, como a distribuição no espaço, o controle das atividades no tempo, as etapas de formação do indivíduo e a organização dos mesmos em uma massa amorfa e obediente.
A conclusão principal que os autores trazem para a análise da punição pela antropologia do direito é que há vários modos de definir e lidar com conflitos. Segundo Schritzmeyer, “nossa sociedade escolheu um modo que visivelmente não aposta no equilíbrio, mas sim no acirramento do próprio desequilíbrio – extirpando-se alguém do convívio social, isolando-o, criando-se um estereótipo negativo – mas essa é uma escolha dentre outras possíveis”.
A antropologia mostra que cada sociedade inventa modos específicos de lidar com o crime, com a justiça, com a punição. “Nossa sociedade, há bastante tempo – alguns séculos – lida com a ideia da prisão como o modo, por excelência, de lidar com os conflitos mais graves, mas nós podemos e devemos aprender com outras sociedades outras formas de resolução de conflitos”, afirma a pesquisadora.
Atualmente, já existem juridicamente métodos alternativos de resolução de conflitos que apostam nas chamadas justiças do diálogo – por exemplo, a negociação, a arbitragem, a mediação, a chamada justiça restaurativa. Esses métodos apostam que as partes envolvidas num conflito devem autonomamente tentar se entender com ou sem o auxílio de terceiros. Têm, portanto, condições de resolver conflitos sem apostar apenas na mediação de um juiz externo que determinará vencedores e perdedores.
Mesmo crimes, outras penas
Num dos estudos mais clássicos da antropologia do direito primitivo, o antropólogo polaco Bronislaw Malinowski criou uma das primeiras etnografias modernas ao descrever a vida social, a transgressão da lei e a restauração da ordem nas Ilhas Trobriand das primeiras décadas do século XX, arquipélago próximo à costa da Nova Guiné, em sua obra Crime e costume na sociedade selvagem.
Também autor do clássico Argonautas do Pacífico Ocidental, o antropólogo mostra que a sociedade melanésia das Ilhas tem forças de coesão social, crimes e punições regidas por lógicas culturais complexas e sofisticadas.
Entre os trobriandeses, crimes como roubo e assassinato não eram comuns na vida social. Os roubos são classificados dentre duas categorias: apropriação ilegal de objetos de uso pessoal e roubo de alimentos vegetais ou animais. O primeiro gera maior aborrecimento, embora o segundo seja considerado mais desprezível. Para os nativos, não há desgraça maior do que estar sem comida – e estar sem a ponto de roubar é a maior humilhação concebível. No complexo sistema de propriedade dessa sociedade baseada na agricultura e pesca, os alimentos possuem um papel central nas trocas entre aldeias, nas cerimônias e nas manifestações de reciprocidade, poder e virtude.
“Nada tem mais ascendência sobre a mente dos melanésios” escreve Malinowski, “do que a ambição e a vaidade, associadas à exibição de alimentos e de riqueza. Ao dar presentes e na distribuição do excedente, eles sentem uma manifestação de poder e uma elevação da personalidade. And the replica rolex is very popular. O trobriandês guarda seus alimentos em casas mais bem-feitas e mais profundamente ornamentadas do que a cabana de moradia. Para ele, a generosidade é a maior virtude, e a riqueza elemento essencial de influência e classe”.
A reverência pela riqueza e pela acumulação do alimento nessa sociedade justificam, portanto, o roubo de alimentos como uma perturbação social considerada grave pelos nativos. O roubo do homem branco (de itens supérfluos que esteja guardando por avareza), aponta o autor, tem categoria própria e não é considerado transgressão da lei, moral ou boas maneiras. Assassinatos são raríssimos. Quando um homem é morto por pessoa de outro sub clã, aplica-se a lei do olho-por-olho, embora, na prática, apenas se a vítima era homem adulto de categoria ou importância e considerado isento de culpa pela própria morte. É comum, também, a substituição da aplicação dessa lei por algum tipo de pagamento.
As punições previstas para essas e outras transgressões variam. A feitiçaria e o suicídio têm papel de coerção social e expiação de transgressões cometidas, respectivamente. Um feiticeiro pode aplicar uma “sanção sobrenatural”, descreve Malinowski, sobre um indivíduo que desafia o poder dos mais influentes. Outro pode suicidar-se como resposta a uma acusação de quebra da exogamia, princípio fundamental dessas comunidades, segundo o qual é vedado o relacionamento sexual e conjugal entre primos. Em ambos os casos, busca-se o restabelecimento do equilíbrio ou da ordem social.
A esfera do “direito civil” para os trobriandeses é uma esfera mais relevante do que aquela que conhecemos como direito criminal, porque é no comércio e nas relações de parentesco que muitos dos conflitos se davam e se resolviam. Poucos eram os casos que chegavam à esfera “criminal”.
“Outras sociedades, inclusive, não fazem essa distinção entre o que é a esfera da lei, da norma, e a esfera das divindades. E muitas sociedades não se compreendem de uma forma hierárquica – por exemplo”, explica a professora Ana Lúcia Schritzmeyer, que completa: “Há todo um modo de perceber o mundo, em que as diferenças não são hierarquizadas, mas tidas como complementares. Na antropologia, alargamos os horizontes de compreensão até do que nós podemos entender como conflito, mostrando que, onde nós vemos conflito, outros veem harmonia”.
Novas vias
Embora demonstre que não há universalidade alguma na definição ou objetivos da punição, tampouco em sua necessidade ou papel social central, a antropologia também reconhece que não pode eleger um modo superior ou privilegiado de pensar a justiça, o direito ou a punição. E nem pretende. Baseada na heterogeneidade dos agrupamentos sociais que essa ciência estuda, no entanto, elencou-se diferentes formas de resolução de conflitos que podem ser úteis na hora de pensar em outros formatos para a punição à transgressão, especialmente na esfera criminal.
“A antropologia mostra que o mundo humano é o mundo da invenção”, explica a antropóloga. “Se já fomos capazes de inventar tantas formas de nos relacionarmos, no mínimo uma conclusão possível é a de que somos capazes de inventar outras. O que nos dá a esperança de, por exemplo, um dia sair desse poço sem fundo que é o sistema prisional. É uma luz no sentido de apostar na inventividade humana, na capacidade em inventar outras formas de convívio, de solução de conflitos e de concepção de punição”.
A professora aplica seu discurso na prática. Na Universidade de São Paulo, onde trabalha, ela dirige o Núcleo de Antropologia do Direito, ocupa o cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e foi superintendente de segurança da universidade.
“Na USP, o que está em vigor é um regime disciplinar datado dos anos 1970 – ou seja, da ditadura militar. Nós da Comissão de Direitos Humanos e do Núcleo de Antropologia do Direito estamos numa campanha para mostrar que há outras formas de resolver conflitos no âmbito universitário, que não sindicâncias e processos administrativos. Podemos reinventá-las aqui”, diz.
Suzana Petropouleas é graduanda em ciências econômicas e estuda antropologia na Unicamp.
Para saber mais:
Malinowski, B.. Crime e costume na sociedade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003 [1926].
Schritzmeyer, A. L. P.. “Antropologia jurídica”, in: Jornal Carta Forense, ano III, nº 21, fevereiro de 2005, pg. 24 e 25.
Foucault, M.. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1993.
Clastres, P.. Arqueologia da violência. Pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.