As primeiras feiras de ciências no Brasil sob o olhar da imprensa

Por Daniel Rangel

O resgate das memórias de eventos científicos a partir de registros jornalísticos disponíveis em acervos

Foco na competitividade, prêmios em dinheiro, demonstrações de dissecação de animais para um público de milhares de pessoas, presença predominante de meninos entre os participantes e foco em ciências naturais e tecnologia, esses foram os aspectos que marcaram as primeiras feiras de ciências realizadas no Brasil, a partir da década de 1960.

“No início, as feiras de ciências destacavam projetos individuais voltados para as ciências exatas e naturais. Com o tempo, evoluíram para incluir trabalhos em grupo e uma diversidade maior de temas, abrangendo também as ciências sociais e as artes”, afirma Danilo Magalhães, doutorando em educação, gestão e difusão em biociências pelo Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Danilo realiza pesquisa de jornais em acervos com o objetivo de resgatar histórias das primeiras feiras de ciências no Brasil.

Pioneirismo da Feira de São Paulo

A Feira realizada na cidade de São Paulo, que teve sua primeira edição em 1960, foi o evento inicial de grande porte desse tipo no Brasil, servindo de modelo para outras feiras que foram surgindo em diferentes estados.

Danilo, que é pesquisador no Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia e já publicou diversos trabalhos a respeito do assunto, em colaboração com as pesquisadoras Luísa Massarani e Jéssica Rocha, contou que esses eventos surgiram como parte de um movimento renovador do ensino de ciência no Brasil. As feiras funcionavam como um substituto dos antigos métodos expositivos de ensino, buscando uma abordagem em que os alunos tinham a oportunidade de aprender por meio da experiência, fazendo ciência na prática.

A Feira de São Paulo, que foi realizada anualmente entre os anos de 1960 e 1976 – em 1965 não há registros de que tenha acontecido –  contou com ampla cobertura dos jornais da época. Foi justamente através da cobertura desses jornais que Danilo Magalhães encontrou um vasto material para resgatar essa história. Acessando os arquivos da Biblioteca Nacional Digital e os acervos digitais de jornais de grande circulação, foi possível ter uma visão sobre como aconteciam essas feiras no passado. Apenas sobre a Feira de São Paulo, os pequisadores analisaram 248 textos publicados em 15 jornais diferentes. Foi constatado que foram organizadas 15 edições da Feira de Ciências de São Paulo, realizadas em diferentes locais da capital paulistana, como Galeria Prestes Maia, Fundação Cásper Líbero, Ginásio do Pacaembu e Pavilhão da Bienal.

O jornal que mais publicou sobre  esses eventos foi a Folha de S. Paulo que, entre 1962 e 1967, tinha como diretor o cientista José Reis, um dos grandes nomes da divulgação de ciências no Brasil. Na época, ele era membro do IBECC (Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura), entidade que organizou as primeiras feiras.

A cultura de competitividade das primeiras edições foi diminuindo com o passar do tempo. Em 1972, na 12a edição da Feira de São Paulo, foi anunciado que não haveria mais premiações para os melhores trabalhos. Aos poucos também foram abrindo espaço para temas como meio ambiente e apresentações artísticas, com uma visão mais ampla do fazer científico, mas não sem contestações. “Algumas pessoas achavam, que se abrisse a temática para áreas como as artes, essas feiras perderiam sua essência”, comenta Danilo.

Os participantes

Um desdobramento da pesquisa de Danilo Magalhães sobre as primeiras feiras de ciências foi publicado em artigo intitulado “Memórias das feiras de ciências: entrevistas com participantes das feiras estudantis de ciências das décadas de 1960 e 1970 em São Paulo”. O pesquisador buscou entrevistar pessoas que apareceram nas matérias jornalísticas da época para entender melhor suas experiências. Segundo Danilo, esses participantes foram identificados nos textos que citavam seus nomes e a partir disso ele começou uma busca em sites e redes sociais para encontrá-los. No total foram entrevistados 15 deles, sendo 12 homens e 3 mulheres. Danilo contou que algumas dessas pessoas seguiram na carreira científica e consideram que suas participações nas feiras tiveram grande influência na decisão de se tornarem cientistas. “Não podemos extrapolar que essas feiras foram fundamentais para formar cientistas, mas em alguns casos isso realmente aconteceu”, afirma Magalhães.

O público que frequentava os eventos era variado, composto por estudantes, pais, professores e “homens comuns”, segundo os jornais. Os eventos eram, em geral, abertos para a população e reuniam um grande número de pessoas. Os dados demonstram que a primeira feira de ciências realizada em São Paulo durou uma semana e contou com a apresentação de 432 trabalhos de estudantes vindos de 25 escolas diferentes e um público estimado de 7 mil pessoas.

A primeira Feira Nacional de Ciências

Com o sucesso das Feiras de Ciências de São Paulo e de outras realizadas em diferentes estados, aconteceu em setembro de 1969 a primeira Feira Nacional de Ciências, realizada no Rio de Janeiro, coordenada pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e organizada pela Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado da Guanabara. Danilo, Luísa e Jéssica relatam sobre esse evento no trabalho intitulado “50 anos da I Feira Nacional de Ciências (1969) no Brasil”, publicado em 2019 na revista Interfaces Científicas Humanas e Sociais.

Página do Jornal O Globo, de setembro de 1969, exibindo a foto de um participante da Feira de Ciências que “tem como hobby dissecar anfíbios” sob o título “Crianças testam sapo sem pulmão”.

Também nessa ocasião, os jornais atuaram intensamente na divulgação, “foi possível constatar que os jornais se engajaram ativamente na divulgação da I Feira Nacional de Ciências, não apenas como forma de estimular a inscrição de alunos e atrair o público visitante, mas também por concordarem com a importância que a ela era atribuída”, escrevem os autores do trabalho.

Como premiação aos melhores trabalhos apresentados, foram oferecidos equipamentos científicos, viagens internacionais e bolsas de estudo. Organizada durante o período de ditadura militar, a feira serviu como uma forma de promover uma ciência voltada ao projeto de desenvolvimento capitalista, inspirada no modelo estadunidense. “A Feira seria um estímulo à ciência e ao ensino de ciências, uma forma de promoção do desenvolvimento tecnológico do país, o que teria como resultado a longo prazo o desenvolvimento nacional”, comentam os autores.

Relação com a ditadura

Uma especificidade encontrada pelos pesquisadores foi que não existem registros na Biblioteca Nacional Digital da Feira de São Paulo para o ano de 1965. Uma das hipóteses levantada pelo grupo de pesquisadores seria a de que o então recente golpe militar, que aconteceu em 1964 no Brasil, teria impactado profundamente a sociedade brasileira, inclusive nos campos da educação e da ciência. Em 1969, ainda em meio à ditadura militar, aconteceu a Primeira Feira Nacional de Ciências que acabou servindo como propaganda para o regime.

Em um trabalho que investigou a relação da ditadura militar com a Feira Nacional de Ciências, intitulado “A I Feira Nacional de Ciências no Brasil (1969) e a ditadura militar: refletindo sobre as ambiguidades de um capítulo da história da educação e da divulgação científica”, os autores descrevem que a relação dos militares com a ciência na época foi ambígua, sendo algo “simultaneamente destrutivo e reformador”. Ao mesmo tempo em que grupos de pesquisas eram perseguidos, censurados e desmantelados, também houve uma expansão universitária e investimentos na pós-graduação, “o regime entendia o desenvolvimento científico e tecnológico como peça fundamental para a superação do atraso econômico e social do Brasil”, escrevem.

A cobertura jornalística da Feira Nacional de Ciência ressaltou um clima de otimismo em relação ao papel da ciência e da tecnologia no progresso do país. Durante o evento, os organizadores enfatizaram a importância de despertar o interesse dos jovens para as áreas científicas, destacando sua relevância para o desenvolvimento nacional. A Feira foi apresentada como uma oportunidade estratégica para incentivar talentos e direcionar a inovação científica em benefício do crescimento do país.

Daniel Rangel é formado e jornalismo e ciências, doutor em biotecnologia e monitoramento ambiental (UFSCar). Especialista em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.