Por Douglas Oliveira Donin, Karen Cristina Garbo e Lucas Mariano Baqueiro
Introdução
A descoberta de planos recentes para uma tentativa de golpe militar no Brasil (que incluíam mesmo ações de assassinato do novo presidente eleito, seu vice e um Ministro do Supremo Tribunal Federal), planos que, ao que tudo indica, tiveram substancial adesão de militares do Exército, é mais um dentre uma série de capítulos sombrios da ascensão de movimentos de direita extremista no mundo, talvez o fenômeno político mais notável deste primeiro quarto de século. A inserção desta tentativa de golpe neste infeliz contexto mundial, entretanto, esconde uma armadilha: o risco de, ao fixarmos o olhar para o quadro global, imaginarmos que se trata de um momento especial, uma “febre dos tempos”, e assim deixarmos de reconhecer que, sobre os responsáveis pela intentona, repousam características perenes, históricas, particulares, das nossas Forças Armadas – características essas que independem da inserção do movimento no fenômeno global de ascensão de líderes iliberais que nas últimas duas décadas passaram a desafiar a democracia em diversos pontos do planeta, inclusive, onde as democracias já pareciam ideia segura e consolidada.
Dizemos isso pois, infelizmente, a recente tentativa de ruptura – o que constitui, principalmente por vir de militares, alta traição contra a nação – confirma uma tese que a historiografia tem solidamente sustentado: o golpismo, ou seja, uma cultura identificável de deliberada doutrina e ação voltada para a desestabilização democrática, insurreição e intervenção militar sobre o poder constituído, não é um acidente na história das Forças Armadas brasileiras, ou fenômeno dos novos tempos, mas uma constante, impregnada na doutrina, no ethos, na praxis e na paideia da instituição. De fato, a recorrência de insurreições militares em nosso país — levantes que efetivamente inauguraram a República e foram responsáveis por todas as suas grandes mudanças — demonstra que as Forças Armadas ainda não exorcizaram, e sequer pretendem exorcizar, o espírito intervencionista que, desde a própria “invenção do Exército”, no final do século XIX, moldou e orientou a trajetória das Forças.
Essa tendência é, em parte, fruto de uma herança histórica peculiar. Desde o período imperial, o Exército brasileiro foi moldado em um contexto de desconfiança mútua entre as elites civis e os militares, em parte, movida por um perene ressentimento destes. Os militares, principalmente ao observar o modo como são tratados os detentores do poder civil (os agentes políticos e os altos funcionários públicos), sempre se julgaram desprestigiados, e em comparação, tratados pela nação muito aquém do que mereceriam, diante da sua decisiva intervenção nos grandes eventos da história da República.
Esse prestígio, segundo o militar, deveria ocorrer em várias dimensões. A primeira, e mais imediata, é a material: no próprio cerne da “questão militar” que levou ao golpe de 1889 estava a insatisfação dos militares, após o sucesso na Guerra do Paraguai, de obter do Governo algum tipo de retribuição material pelo sucesso, ou, minimamente, alguma correção da sequência de defasagens salariais e problemas na carreira que (de fato) os assolavam. Isso criou, principalmente entre os militares mais jovens, uma cultura de ressentimento em relação ao mundo dos “bacharéis”, principalmente os formados nas primeira escolas jurídicas do Brasil, que os cadetes e tenentes passaram a julgar, através da criação de uma mitologia própria, como representantes de um poder corrupto, mesquinho, que seria a política civil, dos “casacas” e “paisanos”, conforme demonstram as agressivas publicações da época, incluindo o discurso inaugural do Clube Militar[1].
Munidos desta ideologia maniqueísta, gestada principalmente na Escola Militar da Praia Vermelha – onde a mocidade militar se julgava a salvadora prometida da nação, e os civis, os algozes aproveitadores e egoístas do Brasil – e fortemente amparados por uma leitura seletiva do positivismo comtiano – em que se julgavam os naturais e meritórios ocupantes da posição de “ditadores científicos” derivada do pensamento de Comte – foi criado nos últimos dias do Império um DNA insurrecional, que resta, até hoje, talhado na própria estruturação das Forças Armadas no Brasil. Em razão desse verdadeiro dogma, por vezes reproduzido tacitamente, por vezes de modo ostensivo, as Forças Armadas se arvoram, na prática, não da função de proteger a soberania popular, mas de manter o status quo ou reconfigurá-lo sempre que julgassem necessário, operando de fato como um “Poder Desestabilizador”[2], como resume José Murilo de Carvalho.
Esse papel autoconferido de árbitro político, de herdeiro espiritual do Poder Moderador imperial, foi reforçado em momentos críticos como a Revolução de 1930, o Golpe de 1964 e, mais recentemente, nas movimentações ambíguas durante a crise política que se seguiu ao impeachment de 2016 (onde inclusive lograram um tipo de intervenção furtiva[3], se infiltrando em diversas áreas do Governo por convite, e não por ato de força) e na tentativa de ruptura institucional, agora retomando a tradição de ação violenta, de 2022/2023. Desta vez, inclusive, buscaram forçar a aceitação dessa atribuição fictícia (amplamente rechaçada pela doutrina jurídica e pelo Supremo Tribunal Federal[4]) através da sustentação pública por juristas e formadores de opinião civis cooptados pelo projeto político militar, como o advogado e professor conservador Ives Gandra Martins. Gandra, aliás, não por acaso foi selecionado para lecionar na Escola Superior de Guerra, dando como correta aos futuros generais exatamente esta interpretação heterodoxa da função constitucional das forças militares.
Enfim, a insistência das Forças Armadas em se verem como tutoras da República, acima das regras constitucionais que deveriam submetê-las ao poder civil, não é fruto apenas de indivíduos ou facções, mas de uma ampla cultura institucional que rejeita e não reconhece os limites impostos pela democracia – a própria ideia de que seriam um “árbitro” ou um “Poder Moderador”, pairando acima dos demais, traz embutida a noção de que, de alguma forma, a partir de uma posição superior, fiscalizam de fora um jogo jogado por terceiros, sem dele tomar parte.
O que estamos testemunhando, portanto, não é apenas um caso isolado, mas a confirmação, mais uma vez, de um padrão. Este padrão é reproduzido e protegido da ação do tempo por meio de, no mínimo, três mecanismos ideológicos básicos: a conformação, expressa ou simbólica, ocorrida nas instituições de formação militar, como as escolas de formação inicial (AMAN, AFA, EN) e aperfeiçoamento intermediário ou superior, a hegemonia ideológica e homogeneidade nos discursos dos espaços de representação dos oficiais (Clube Militar, por exemplo), e a produção e promoção de material ideologicamente alinhado (como as publicações da Bibliex e as diversas revistas editadas para a comunicação com a tropa). Somam-se a isso outros fenômenos (como, por exemplo, a permanência de doutrina estruturada nos anos 60 especificamente voltada ao combate da “luta armada”, ainda hoje, no âmago de diversos cursos especializados – o que explica, por exemplo, a ampla adesão dos Comandos à tentativa de golpe).
Este artigo trata, apenas, do primeiro desses mecanismos, a formação militar, apenas no que concerne ao problema das academias militares, onde ocorre a formação inicial do oficial. Em outras ocasiões os demais temas poderão ser endereçados.
O abandono do mundo civil
A jornada de diferenciação do militar brasileiro tem início antes mesmo de sua formação acadêmica, e, na verdade, já antes do concurso público que dá acesso às academias militares. Para entender o processo, é necessário previamente entender quem é o futuro cadete.
Até cerca da metade do século XIX o Exército e a Marinha eram frequentemente associadas às elites urbanas e agrárias, e filhos de famílias influentes viam na carreira militar uma extensão de seu prestígio e um meio de perpetuar a influência política e social de suas linhagens. A carreira militar, nesse contexto, embora já representasse um caminho de ascensão (sobretudo em regiões afastadas do Rio de Janeiro, principalmente nas elites menos abastadas do sul e nordeste), ainda era uma forma de manutenção do status familiar Neste momento, o mecanismo de acesso às mais altas patentes se mesclava com a estrutura social nobiliárquica. Além disso, havia um notável fast track na carreira oficial reservado ao nepotismo, garantido por relações palacianas entre as famílias (é famoso o caso do Marquês de Barbacena, ainda no período colonial, que já com 19 anos foi promovido a Capitão-de-mar-e-guerra. O governo, achando a promoção precipitada demais, em pouco tempo reverteu a promoção, o que fez com que o Marquês, frustrado, trocasse de carreira para o Exército, onde já chegou com a patente de major).
Entretanto, com medidas de modernização (como a Lei de Promoções de 1850, que limitou severamente a ascensão rápida de oficiais oriundos de famílias abastadas), e principalmente com a abertura dos cursos civis de Direito e Medicina, que passaram a ser o destino preferencial dos jovens de famílias tradicionais, a carreira militar – tida como de progresso lento e sem maiores recompensas econômicas – passou a ser ignorada pela aristocracia nacional. Isso se consolidou definitivamente com o crescimento das oportunidades educacionais no Brasil, que democratizou o acesso aos cursos militares, levando esta opção também às camadas mais baixas. Sobretudo a partir da segunda metade do século XX, especialmente após o fim da ditadura militar, as Forças Armadas passaram a atrair jovens de origens mais humildes, especialmente das classes médias e baixas[5].
Para os indivíduos oriundos destas classes, a carreira militar oferece estabilidade econômica, prestígio e mobilidade social acima da média, contrastando com a insegurança econômica enfrentada por outras opções profissionais. Ou seja: o candidato típico à carreira militar há muito não vem mais de uma família tradicional, mas de um ambiente onde a carreira militar é vista como uma oportunidade de romper com limitações sociais e econômicas, para si e, também, para a sua família. Ao decidir enfrentar o certame, o candidato a ingressar no mundo militar não parte para uma batalha já vencida pelas condições legadas pelos seus pais, mas se vê, em verdade, como alguém que se lança em uma batalha contra condições adversas e chances remotas.
Este já é um ponto inicial de partida. O candidato a ingressar na carreira militar não herda seu lugar na sociedade; na sua percepção, ele o toma, o conquista, através de uma via crucis de concursos públicos que representam, na verdade, uma arena onde somente os poucos com abnegação, dedicação e valor intrínseco recebem, ao final, o reconhecimento do seu valor – o que simboliza, aos seus olhos, a vitória pela meritocracia. O ingresso na carreira militar, nessa visão, se dá por um investimento individual extraordinário do candidato, culminado pela vitória em uma ampla disputa onde é testado nos campos intelectual e físico. Com isso, embora esses concursos não sejam marcados por uma altíssima concorrência (especialmente no caso do Exército), eles instauram no candidato aprovado uma percepção inicial de exclusividade técnico-intelectual e física.
A própria trajetória do certame já se desenha como um processo de transformação simbólica, mesmo antes do início da formação formal. Durante o certame, os candidatos não apenas enfrentam os desafios práticos das provas e etapas eliminatórias, mas também constroem uma espécie de microcosmo social, uma comunidade de candidatos “escolhidos”, marcada pelo entusiasmo coletivo e pela percepção de compartilharem uma experiência singular. Cada fase do processo seletivo, por mais técnica que pareça, assume uma dimensão ritual para esses jovens aspirantes. As etapas eliminatórias não são vistas apenas como filtros burocráticos, mas como um caminho de provação pessoal que confirma, para cada um que avança, a legitimidade de sua presença no grupo, seu valor e seu potencial para pertencer àquele universo exclusivo. Trata-se de uma via crucis que não apenas mede habilidades, mas também reforça a ideia de que os sobreviventes desse percurso estão se tornando dignos de algo maior — aptos a cruzar a fronteira simbólica entre o ordinário, o mundano, e o excepcional, o heroico.
A aprovação final, portanto, após as fases de intenso estresse e o flerte constante com a possibilidade de exclusão, assume uma dimensão que vai além da simples validação de um esforço técnico ou acadêmico. Ela se transforma em uma verdadeira apoteose, um momento de consagração em que o candidato, agora aprovado, não apenas é admitido ao seleto grupo dos futuros oficiais, mas também é imerso em uma sensação de triunfo pessoal e coletivo que beira o mágico, de potencial profundamente transformador.
Tudo isso, por design, é marcado por uma intensa carga simbólica. A exclusão iminente, presente ao longo das etapas eliminatórias, amplifica a experiência da vitória, tornando-a ainda mais intensa. Ao superar as dificuldades e se tornar parte daquele grupo restrito, seleto, o aprovado sente-se não apenas validado, mas elevado a uma categoria quase mística – renascido em outra forma, com direitos e deveres que o distinguem claramente do restante da sociedade. Essa verdadeira sensação de apoteose, portanto, não é apenas o reconhecimento do esforço pessoal, mas a formalização de sua entrada em um novo mundo, marcado pela distinção e pelo prestígio que a instituição, por sua tradição e símbolo, lhe transfere à própria pessoa.
Esse caráter ritualístico inicial é essencial para a criação de um sentimento de pertencimento à futura aristocracia militar. Ele prepara o terreno para que os valores e visões de mundo da caserna sejam absorvidos com menos resistência (e, em verdade, com vontade, já que significam o pertencer), e, ao concluir essa jornada de ingresso, o jovem militar está predisposto a aceitar o senso de hierarquia, disciplina e superioridade que lhe será inculcado durante sua formação como um “preço”, ou um “modo de ser” intrínseco deste novo mundo.
Esse caminho ritual também redefine o significado de “elite” para o jovem. A admissão em academias militares, como a AMAN, EN ou AFA, também é vivida pelos candidatos como um rito de passagem que marca sua entrada em um universo de prestígio e exclusividade.
Lembremos, aqui, que tratamos de pessoas muito jovens, que em regra não ingressaram previamente em outras instituições superiores e que, apenas com raras exceções, não pertencem ou jamais tiveram contato com a aristocracia econômica e social brasileira. Na ampla maioria dos casos, sequer possuem o repertório pessoal necessário para identificar as nuances de uma elite técnica, intelectual, científica e artística verdadeiramente sofisticada. Para muitos, então, ingressar nas Forças Armadas é o primeiro contato com um ambiente que eles percebem como aristocrático, marcado pela distinção altamente simbólica e pelo ostensivo discurso de excepcionalidade que permeia todo o ambiente militar. Dentro das academias, ele experimenta, pela primeira vez, o que imagina ser o apogeu da hierarquia social e intelectual do país – um mundo “maior que a vida” no qual ele foi, por reconhecimento ritual de seu valor, acolhido como um par.
Essa visão, muitas vezes ingênua e carregada de misticismo (o que é feito por design, com intensa participação da instituição, que busca exatamente essa transformação pessoal e, para isso, possui uma ritualística cuidadosamente planejada), é essencial para a construção da identidade do cadete, pois estabelece uma fronteira clara entre os que pertencem a esse mundo elitizado e os que, de fora, são vistos com uma certa desconfiança e desdém. O “olimpo” militar é, então, um espaço não apenas de distinção, mas de fechamento, onde a visão de mundo proposta pelo ambiente castrense começa a se tornar a verdade inquestionável para quem nele ingressa – pois abdicar dessa posição não é apenas um ato de escolha do destino profissional, mas representa, por toda a carga simbólica e representação mágica da realidade em que o cadete está imerso, um tipo de “queda do Éden”, de desgraça, de retorno à indignidade de um mundo inferior.
O período inicial nas academias militares, muitas vezes descrito como um período “rústico”, em sentido estrito o seu estágio de adaptação – correspondente aos “beast barracks” das academias americanas – dura alguns meses de elevada intensidade e proposital carga de pressão, física e psicológica. Entendido de maneira mais ampla, pode ser entendido de fato como o seu primeiro ano de calouro inteiro, e tem uma tripla função essencial na formação do cadete.
Em primeiro lugar, esse processo serve como um teste da resolução do iniciante, colocando-o frente a frente com os desafios físicos e emocionais propositalmente elevados e que representam uma antecipação das exigências que fazem parte da carreira militar. Durante esse período mais intenso são introduzidos de maneira simbólica os princípios fundamentais da profissão: obediência, respeito à hierarquia, abnegação e disciplina. Esse estágio não apenas verifica a força de vontade do cadete, mas também serve como um filtro para distinguir aqueles que estão verdadeiramente dispostos a “pagar” física e mentalmente para fazer parte da corporação, com tudo o que isso significa.
A segunda função desse período é ainda mais profunda, e corresponde à função ao período liminar de um ritual de passagem – período durante o qual os participantes não mantêm mais seu status pré-ritual, mas ainda não transicionaram para o novo status que terão quando o ritual estiver completo. Por meio de um processo de despersonalização e uniformização (o cadete adquire uma nova aparência, um uniforme padronizado, um novo nome, um número), o jovem ingresso é submetido a uma ação de reescrita parcial de sua personalidade. Nesse ambiente, onde a individualidade é constantemente suprimida em favor da coletividade, através da obediência e do temor às punições, o cadete é levado a abandonar traços de sua identidade pessoal para se adaptar ao novo molde imposto pela instituição. Esse processo visa não apenas conformar o jovem à vida militar, mas também garantir que ele internalize o ethos da caserna, onde a identidade pessoal é diluída em uma identidade coletiva, regida pela hierarquia e pelo pronto cumprimento das decisões superiores.
A terceira função desse estágio de adaptação, profundamente enraizada na noção de pedagogia do sofrimento, é a de tornar natural e instintiva ao cadete a obediência – não por uma imposição externa direta, e sim por meio do domínio e controle de seu próprio corpo, que se torna (ao invés da mente) o próprio local da submissão – no linguajar militar, a “endocrinando”, a “transferindo para a massa do sangue”. No caso do cadete, a obediência não é simplesmente exigida de fora, mas começa a ser incorporada como um reflexo do próprio corpo, que passa a agir, por condicionamento, conforme as demandas da instituição sem necessidade de coerção explícita. O típico bordão militar “preparem suas almas, porque seus corpos já nos pertencem”, popularizado no filme “Tropa de Elite”, traduz adequadamente esta função.
Esse processo de “domesticação” do corpo, no sentido foucaultiano, não se limita ao treinamento físico; envolve também a interiorização de uma série de gestos, posturas e atitudes que são reforçadas pela repetição constante, pela disciplina rigorosa e pela constante, onipresente, intensa vigilância dos superiores. O cadete aprende, então, a “agir corretamente” não apenas porque é ordenado, mas porque a própria ordem já se encontra impregnada em sua fisiologia, em seu modo de se mover, de falar, de andar, de se comportar. A disciplina se torna uma extensão de sua identidade corporal, e a obediência, algo natural, instintivo, que ocorre antes dos processos mentais e das escolhas, fruto de uma transformação silenciosa que ocorre sem que ele perceba de imediato, mas que se consolida em hábito com o tempo.
Vejamos que essa pedagogia do sofrimento, ao ser estruturada dessa maneira, vai além de um simples mecanismo de controle; ela molda a relação do cadete com seu próprio corpo e com a instituição, criando uma subordinação que é ao mesmo tempo física, psicológica e simbólica – uma subordinação, portanto, total. O sofrimento, portanto, não é apenas uma experiência punitiva, mas uma ferramenta pedagógica que visa internalizar e naturalizar o processo de subordinação, gerando, de forma silenciosa, uma adesão genuína, profunda, instintiva, e não apenas performática, racional, volitiva, à vida militar.
A experiência do primeiro ano na Academia da Força Aérea, por exemplo – que constitui a experiência imediata de um dos autores – é marcada por uma dinâmica peculiar de instrução e disciplina, onde o papel de superiores de fato não é em regra desempenhado por oficiais, mas por cadetes veteranos do quarto ano, o último de formação na Academia. Esse arranjo institucional confere aos veteranos um poder considerável sobre os calouros, transformando o ambiente de formação em um espaço que combina ensino militar formal com práticas de controle comportamental e disciplinar que, por design, é eivada de paranoia e um grau controlado de arbitrariedade, embora relativamente seguro contra maiores abusos (o que não ocorre em cursos de formação mais especializados, sobretudo os ditos “operacionais”, onde o abuso, principalmente o físico, é parte da experiência da instrução).
Essa relação, propositalmente desequilibrada, se desenrola como um trote prolongado ao longo de um ano inteiro, com práticas que frequentemente incluem castigos coletivos realizados de madrugada e longas sessões de importunações, às vezes com o uso de métodos de “choque e pavor” (ou “domínio rápido”), que incluem todo o tipo de elementos de surpresa e sobrecarga sensorial (bombas, apitos, batidas, gritos, etc) que os cadetes mais antigos (ou, mais raramente, os oficiais) podem imaginar. Essas “punições”, quase sempre desprovidas de um motivo concreto ou provocação por parte dos calouros, são altamente teatralizadas, com a utilização de linguagem ríspida, gritaria, ofensas e outros meios de desestabilização emocional, reforçando a sensação de vulnerabilidade e impotência dos novos cadetes, principalmente os mais impressionáveis.
Além disso, os cadetes veteranos possuem a prerrogativa de aplicar punições informais (como ordenar o “pagamento” de flexões de braço) e formais (registradas na ficha disciplinar), seja com base em regulamentos existentes, seja por motivos criados ad hoc. Não raro, estas punições ocorrem jocosamente, como um trote. Essa combinação de poder normativo e discricionariedade cria um ambiente onde o arbítrio passa a ser normalizado, sendo que a supervisão institucional é deliberadamente frouxa. Esse sistema atende a duas finalidades claras: por um lado, busca “amaciar” os cadetes calouros, submetendo-os a um processo intenso de adaptação à lógica hierárquica (e o prepara sobretudo para as idiossincrasias da hierarquia da corporação: logo fica claro que o superior às vezes não tem razão, ou às vezes porta ordens equivocadas, ou abusivas, ou ilógicas, ou contraditórias, mas que devem ser obedecidas de pronto mesmo assim); por outro, funciona como um laboratório controlado para o desenvolvimento de habilidades de liderança e comando nos cadetes veteranos.
Com o tempo, desta relação ocorre uma fusão quase imperceptível entre os regulamentos concretos da corporação e os valores informais, mas profundamente enraizados, que permeiam o ethos militar. Essa indistinguibilidade entre regras escritas e normas tácitas cria uma zona cinzenta onde o cadete se orienta não apenas pelo que está explicitamente dito, mas pelo que é culturalmente esperado. Ele não apenas aprende o que fazer; aprende a ser, a viver de acordo com as exigências simbólicas e práticas do meio militar, que ele deve abstrair, mais do que das normas postas, da cultura institucional e do praticado pelos pares. O militar “aprende a ser militar” mais por osmose e mimetismo do que por instrução.
Essa prática, entretanto, também escancara as fragilidades e os riscos de um modelo que, ao priorizar o treinamento prático de comando, sacrifica frequentemente os limites éticos e a supervisão efetiva – e aqui não esboçamos, particularmente, uma preocupação com bullying e o bem-estar dos cadetes calouros, que, via de regra, possuem a resiliência necessária para aturar as constantes importunações (e, com o passar do tempo, o calouro logo passa a encarar sua situação com ironia e um saudável distanciamento emocional). O problema ético reside no fato de que esta engrenagem age no claro sentido de perpetuar uma cultura que tem reflexos nocivos tanto no ambiente militar quanto na relação com a sociedade civil.
No núcleo deste modelo de formação militar reside uma mensagem poderosa e estruturante: o militar não é apenas diferente, mas essencialmente antagônico ao civil. Desde os primeiros momentos de adaptação, a pedagogia militar constroi uma narrativa em que a antiga identidade civil é apresentada como algo a ser superado, deixado para trás, uma referência do que não se deve ser. É um discurso que proclama a todo momento: “sejam melhores, pois vocês não são mais civis”. E, com isso, redefine o civil como sinônimo de fragilidade, incompetência e desonra.
A formação doutrinária não apenas reforça hierarquia e disciplina, mas exalta uma visão dicotômica entre a ordem militar e o suposto caos da vida civil. Sob essa ótica, a vida civil é caricaturada como corrupta, licenciosa, preguiçosa e instável, enquanto as Forças Armadas se apresentam para o cadete como o bastião de moralidade, retidão e competência. Este processo não apenas aliena o jovem oficial de sua própria sociedade, mas o molda para antagonizá-la, enxergando-a como um campo que precisa ser tutelado, controlado ou corrigido.
Com a distância física e emocional de sua família de origem, outro passo crucial na insularização se consolida: a desconexão com os valores e vínculos externos. A família, que poderia atuar como um ponto de referência para ancorá-lo no mundo civil, perde progressivamente sua influência. Em seu lugar, surge uma nova família, formada pelos colegas e pela corporação como um todo – um mundo exclusivamente militar. Essa substituição de laços reforça ainda mais o sentimento de pertencimento exclusivo e o distanciamento do mundo exterior, tornando o cadete cada vez mais dependente da lógica e dos valores da caserna para a estruturação de sua identidade e a formação de sua visão de mundo.
Durante toda a sua formação (e, depois, em sua vida profissional), o futuro oficial não apenas é submetido a uma reconfiguração de sua personalidade, mas também é fortemente insularizado. Esse processo é profundamente simbólico e prático: ele envolve a aquisição de uma nova linguagem — um conjunto de terminologias, gírias, bordões e trejeitos que o militar aprende no dia-dia ou, principalmente, emula de seus superiores. Essa nova linguagem não é um detalhe trivial; ela opera como um código que o separa ainda mais do mundo civil e que, gradualmente, incorpora valores e normas que ele passa a internalizar como naturais.
A jornada de formação do militar é, portanto, antes de qualquer outra consideração, uma jornada de diferenciação ontológica. Não se trata apenas de adquirir habilidades ou conhecimentos técnicos; trata-se de uma transformação em outra categoria de indivíduo. A mensagem central é de que o militar está em um caminho de elevação, de se tornar alguém melhor, mais capaz, mais responsável, mais digno e mais honrado do que os que ficaram fora desse processo. A identidade militar é, assim, construída como um ideal que se opõe, em todos os sentidos, à identidade civil, reforçando a ideia de que a caserna é um espaço de excelência e moralidade superiores.
Embora o antagonismo entre o militar e o civil seja central na formação castrense, ele raramente se traduz em ódio explícito. A postura mais comum é a da condescendência. O mundo civil é visto como essencialmente frágil e incapaz, um elemento que, se deixado à própria sorte, inevitavelmente conduziria ao caos. Assim, o militar se posiciona como uma figura tutelar, alguém cuja superioridade moral e técnica o qualifica para corrigir os rumos da sociedade quando necessário.
Essa visão paternalista, profundamente enraizada, reforça a ideia de que o militar não apenas pode, mas deve intervir sempre que julgar que os civis estão, no dialeto castrense, “fazendo merda”. Essa lógica opera em um registro de desprezo velado, onde o civil é visto como uma criança desobediente ou um adulto irresponsável, incapaz, que precisa de supervisão constante para não colocar tudo a perder. Isso cria um ciclo de deslegitimação do mundo civil – que, na narrativa castrense, só funciona quando está sob a sombra e proteção da ordem militar.
Essa condescendência é perigosa porque naturaliza a intervenção militar na política e na sociedade – o que é visto como algo necessário e, até, inevitável. Ela não parte de uma hostilidade aberta, mas de uma crença paternalista profundamente enraizada, que se traduz em ações que, muitas vezes, minam a própria lógica democrática que o militar diz proteger.
Esse ethos golpista não é casual. Como bem documenta Fabio Victor[6], a narrativa histórica transmitida nos cursos de formação exalta episódios de intervenção militar como atos heroicos, omitindo ou justificando os impactos negativos desses movimentos sobre a democracia e os direitos civis. A doutrina militar brasileira, tal como é reproduzida nas escolas de formação, não apenas perpetua visões distorcidas, idealizadas ou francamente falseadas sobre a história política do país, mas também contribui para a reprodução do intervencionismo como elemento central da identidade militar. Para entender o que justifica e legitima, no campo ideológico, este “cruzar o Rubicão”, precisamos entender como o militar aprende a contrapor honra e legalidade em sua formação.
O universo da honra
Desde os primeiros momentos de sua formação, é incutida no novo cadete a ideia de que ele está entrando em um mundo diferenciado da vida civil pela centralidade da honra, dignidade e distinção, traduzidos em códigos de conduta específicos. Estes códigos apresentam variações institucionais, cada um carregando elementos específicos de sua tradição e cultura organizacional. No Exército, o Código de Honra do Cadete da Academia Militar das Agulhas Negras define os princípios norteadores da vida moral dos cadetes. Na Aeronáutica, o Código de Honra do Cadete da Aeronáutica cumpre função análoga, enquanto na Marinha do Brasil a Rosa das Virtudes serve como guia. Contudo, apesar dessas especificidades, certos conceitos fundamentais perpassam as diferentes forças e constituem um núcleo ético compartilhado, que evidenciam, acima de tudo, que o cadete, ao atravessar os portões da academia militar, adentrou um universo de honra.
Para o militar, exatamente este conceito – a honra, uma condição inerente ao militar – é o pilar de sua identidade profissional e pessoal, enquanto o civil, por outro lado, se guia pela legalidade, um sistema positivo de balizas, não-inerente, mas baseado em normas acordadas.
Oliveiros Ferreira[7] explica:
Chega-se a essa distinção entre “eu” e o “outro” pela conjunção de diversos fatores. Um é o processo de socialização dos militares, diverso daquele dos civis; outro é a “ideia predominante”, o princípio constitutivo da organização militar, que é a honra, enquanto que nas organizações civis ele é a legalidade. Essa ideia predominante, para que seja de fato aglutinadora, deve ser transmitida de turma para turma, qualquer que seja o currículo das escolas militares.
Aqui, cabem duas digressões sobre o conteúdo do termo “honra”, um termo bastante vago e opaco, que sempre exige uma delimitação de conteúdo.
Há uma dicotomia no conceito, comum a várias sociedades que o operam, que consiste em defini-lo ora como relativo à “conduta”, ora defini-lo como algo próximo ao “respeito”.
Nos tempos antigos, a honra era medida por ações visíveis e extraordinárias. Para os guerreiros gregos e romanos, por exemplo, a glória no combate (seja no combate singular, seja no manejo de tropas) era a mais alta forma de realização da honra: os líderes militares se destacavam porque incorporavam ideais de força, coragem e inteligência estratégica em combate. Destas demonstrações deriva a ideia de uma honra intrínseca do guerreiro, que não dependia do pertencimento a uma instituição (aliás, em boa parte das sociedades do mundo antigo, ou de sociedades guerreiras tribais, sequer havia uma instituição militar permanente): era o resultado de feitos extraordinários, que alçavam o combatente acima das pessoas comuns.
Com a formação de exércitos permanentes e profissionalizados, outras funções, que não a estritamente guerreira, passaram a ser incorporadas pelos militares. Já no período romano boa parte da lida militar migrou para o controle, a logística e a administração, com todas as tarefas burocráticas que isso envolve, e que, por extrapolar o que uma massa de “cidadão em armas” convocados excepcionalmente para a guerra podiam lidar, exigiam a criação de uma nova figura profissional, o membro de um efetivo permanente e remunerado – o “soldado”. O foco, então, deixou de ser o ato heroico individual – inclusive porque as oportunidades de combate passaram a ser mais raras na vida do militar – e a fonte da honra pessoal foi deslocada progressivamente para a própria honra da instituição, seu histórico, seus valores, seu prestígio. A organização militar moderna, sobretudo, redefiniu a honra como algo que emana do pertencimento à corporação. Nesse novo modelo, a honra é institucionalizada, extrínseca, investida.
Logo, um militar é honrado não apenas pela sua conduta, mas também porque é um avatar de sua corporação – ele é a sua corporação, com todo o peso histórico, tradição e valores, encarnada em um agente. O conceito de honra, nesse sentido, é extrínseco: ela é conferida, outorgada ao indivíduo.
Mas isso não implica que a honra individual tenha desaparecido: apenas se tornou um conceito particularmente complexo e multifacetado. Ela não se reduz a um único significado, mas envolve estas duas dimensões distintas que, juntas, formam a base moral da vida militar: uma parte ativa, objetiva, e uma parte passiva, subjetiva.
Embora a honra objetiva tenha bases em disposições deontológicas — isto é, normas e regulamentos que determinam o que é certo ou errado dentro da corporação —, ela é mais profundamente enraizada em uma ética das virtudes. Esse modelo ético não se preocupa tanto com a observância de regras específicas, mas com o cultivo de qualidades consideradas indispensáveis para a profissão, tais como seriam observadas em um indivíduo-paradigma, ideal: um “bom militar” é “aquele que se comporta como um bom militar”, ou seja, envolve uma apreciação subjetiva, culturalmente compartilhada, do que seria idealizado ou esperado de um membro honrado da corporação.
Logo, a parte ativa da honra, a objetiva, a honra-conduta, diz respeito ao dever de observar o conjunto de comportamentos que devem ser adotados para cumprir a função militar a contento: ser um “militar exemplar”. Aqui, a honra não está relacionada a atos extraordinários, e sim, de certa forma o contrário: ela se traduz na observância de normas, valores e deveres éticos que regem a vida na caserna e devem ser cumpridos por todos. Para o militar, isso inclui basicamente o respeito à hierarquia, à disciplina e a lealdade à sua corporação, bem como a excelência técnica na sua função e nas missões que lhe são confiadas. Nesse sentido, é esperado de todos os integrantes o mesmo desempenho, o que é reforçado pelo termo frequentemente usado na caserna para se referir a algo de reconhecida excelência: “padrão”.
Mas a ideia de que o militar deve “ser” algo — honrado, corajoso, leal — transcende a necessidade de que ele apenas “cumpra” determinadas normas frias e abstratas, pois se espera, de fato, que a sua ação transcenda as normas, ocorra em um espaço de anomia, como a guerra ou o conflito. Logo, a deontologia, com sua dependência de regras preestabelecidas, não é uma solução ideal: esse ethos das virtudes, herdado em parte de tradições aristocráticas e medievais, enfatiza o caráter do indivíduo como a medida última de sua moralidade. Como resultado, a conduta militar é julgada não apenas pelo que é feito – e se isso se enquadra em uma norma de ação pré-acordada – mas também por uma avaliação do próprio agente.
Essa distinção explica por que, em muitas ocasiões, o militar é visto como autorizado a ultrapassar normas ou protocolos em nome de um bem maior. A honra objetiva, nesse sentido, não é um conjunto de regras fixas, mas um princípio flexível que pode ser adaptado às circunstâncias, desde que a integridade moral do indivíduo seja percebida como intacta. Isso é determinante em um ponto específico: a fonte da legitimidade da tomada de decisão.
Enquanto o tomador de decisões civil é legitimado pela legalidade de sua decisão, o militar encara a sua atividade como algo que ocorre, por sua própria natureza, na falência das leis e normas ordinárias, no estado de guerra, de caos, em que não se pode contar com a obediência normal dos indivíduos às normas sociais. Nesse ponto, a legalidade de nada vale: é demais esperar que sequer as normas internacionais que buscam regular a própria guerra sejam observadas.
É nesse ponto que a flexibilidade moral entra em cena. Para que o militar cumpra sua missão, é permitido que ele adote uma postura mais pragmática, que envolva, por exemplo, “sujar as mãos”, isto é, tomar decisões ou agir de forma que, em circunstâncias civis, seriam vistas como ilegais, imorais ou eticamente questionáveis. A necessidade de alcançar os objetivos críticos pode justificar ações que, à luz das normas civis, violariam preceitos morais ou legais.
Se a legalidade, então, não cumpre sua função, a legitimidade deve vir de outra fonte: a honra, a altivez, o brio do próprio militar cumpre essa função. O militar que “age bem” é o próprio “bom militar”, não o militar amparado em regras, porque estas têm limites. É como se, por ser militar (e por ser um “bom militar”), uma bússola interna lhe apontasse o caminho da boa conduta. O “bom militar” está certo porque, de certa forma, o seu caráter e honra é a própria medida do certo.
Não é difícil perceber que isso estabelece alguns dilemas éticos. Se o “bom militar“ recebe ordens manifestamente ilegais de um superior hierárquico, que se repute honrado, digno de uma avaliação de excelência, ação que, mesmo ilegal, esteja dentro de uma percepção de honradez – algo que “a pátria necessita”, por exemplo, deve se seguir a lei ou a honra?
Assim, este aspecto da honra reflete uma das tensões centrais no comportamento militar, onde a moralidade rígida e objetiva da conduta é flexibilizada pelo imperativo de cumprir a missão a qualquer custo. Essa flexibilização moral não é apenas uma exceção, mas uma parte integrante da formação do militar, que deve equilibrar o zelo por sua honra com a eficácia na execução de tarefas muitas vezes moralmente ambíguas. A flexibilidade moral, nesse sentido, faz parte do treinamento para que o militar possa tomar decisões difíceis sem comprometer, de forma explícita, sua honra enquanto membro da instituição.
Aqui vemos claramente algo que caracteriza o discurso militar: a ideia de que, pelo fato do militar lidar com a antinomia da guerra, ele naturalmente deve relativizar as normas que o limitam, como se antecipasse na paz as exigências da antinomia da guerra. Tudo no mundo militar, com retórica o suficiente, pode ser justificado com a ideia de que “em certos momentos, alguém tem que simplesmente tomar uma atitude, dar um passo à frente e fazer o que é necessário, independente de qualquer coisa”.
De novo, em um exemplo pessoal de um dos autores: muito marcante foi o desenrolar uma longa sessão de admoestação, de cadetes veteranos sobre os novatos, envolvendo a questão hipotética do bombardeio aéreo de um alvo que, in loco, se revela ser um hospital-maternidade, como parte de uma instrução de doutrina. A “solução” do dilema, segundo a instrução, seria ignorar a informação obtida in loco e executar a missão independente de qualquer ressalva, pois o comando teria seus motivos. Essa confiança incondicional no comando deriva tanto de normas que reforçam a hierarquia quanto, principalmente, da crença inculcada pela própria repetição das reverências e homenagens que os militares cadeia de comando acima são, pelo posto, mais competentes, dignos, hábeis, sábios, honrados.
Essa construção idealizada é reforçada pela hagiografia institucional, que narra os feitos heroicos de indivíduos de alta patente (em boa parte com largas pinceladas de romantização) como exemplos de excelência moral, intelectual, marcial e técnica. A construção dessa narrativa é proposital, e funciona como uma base simbólica para moldar o ethos militar, criando um padrão aspiracional que orienta a conduta dos membros da corporação, sobretudo dos novos membros. Entretanto, esse ethos traz diversos pontos problemáticos.
Primeiro, a idealização dificulta o reconhecimento de falhas institucionais ou pessoais, já que admitir erros pode ser visto como uma violação da honra objetiva. A honra e o dever, definidos em termos próprios, tornam-se escudos simbólicos que protegem a corporação de críticas externas e consolidam a visão do militar como guardião de uma moralidade única e indispensável.
Segundo, como a ética militar é apresentada como superior às normas e valores externos, fica justificada, aos olhos da caserna, sua autorregulação e sua resistência a controles externos.
Essa construção não é casual. Como observa Piero Leirner, a vida militar depende de rituais e símbolos que reafirmam continuamente a legitimidade e a importância da corporação. A idealização do militar como figura moralmente superior reforça a coesão interna e justifica, no imaginário coletivo, a separação entre o mundo militar e o civil.
O reconhecimento da honra é um processo contínuo, reforçado pela validação externa, e é isso que cria e sustenta a imagem do militar como uma pessoa digna e moralmente superior, em contraste com o civil.
Já na parte subjetiva da honra – a “honra-respeito” – o militar frequentemente se vê como injustiçado, especialmente quando sente que o mundo civil não lhe atribui o devido reconhecimento ou admiração. Esse ressentimento é uma constante nas Forças Armadas e se reflete em um discurso recorrente: o mundo civil não valoriza o sacrifício e os riscos envolvidos na carreira militar, como o fazem com outras profissões que não exigem o mesmo comprometimento físico e emocional. O militar, ao olhar para a sociedade civil, sente que sua honra é questionada ou negligenciada, e isso alimenta uma percepção de que, apesar de sua abnegação, ele é visto como inferior ou desvalorizado pelos civis.
Esse sentimento de desvalorização está profundamente ligado à própria história da formação do Exército brasileiro e à construção da “questão militar” no país. Desde a Proclamação da República, o Exército se consolidou como uma instituição com uma missão que vai além da defesa nacional: ele se coloca como guardião da ordem e da integridade do Estado. O discurso militar sobre honra frequentemente envolve a ideia de que os militares estão acima do comum, sendo agentes dispostos a sacrificar suas próprias vidas e sangue pelo bem da pátria. A tensão, portanto, surge da percepção de que, enquanto os militares dedicam suas vidas a um serviço essencial, a sociedade civil, que deveria lhe ser tributária, não lhes oferece o reconhecimento suficiente por esse sacrifício.
Novamente, temos aqui a volta da ideia de que pelo fato do militar poder ser convocado para o exercício da guerra, ele deve ser tratado moralmente como se permanentemente estivesse em guerra.
Este sentimento de injustiça está intrinsecamente ligado à ideia de superioridade do militar, que enxerga, pelo martelar constante do ambiente profundamente , sua profissão como mais nobre, exigente, perigosa e crucial do que qualquer outra.
O risco da vida, o compromisso físico e emocional com a pátria, e até o sacrifício final são vistos como componentes da honra militar, valores que, na visão dos militares, são incompreendidos ou subestimados pelo mundo civil. Eles se sentem isolados em sua luta, como se a sociedade não reconhecesse a importância e a gravidade de sua missão, o que, para muitos, reforça o sentimento de que a hierarquia e a distância entre os militares e os civis são não apenas naturais, mas também necessárias.
Esse discurso de injustiça e desvalorização do militar frente à sociedade civil pode ser um dos alicerces para o antagonismo entre esses dois mundos. Para os militares, a honra não é apenas um conceito moral ou técnico, mas uma questão existencial que se relaciona diretamente com seu lugar na sociedade. Quando o mundo civil não os reconhece como merecedores da devida honra, o ressentimento se transforma em uma narrativa que justifica o desprezo contra os civis, eternos perpetradores de uma injustiça. A questão militar, portanto, não é apenas uma questão institucional, mas uma questão de honra pessoal, alimentada pela percepção de que o potencial sacrifício do militar não é devidamente reconhecido, apreciado ou recompensado pela sociedade civil.
O universo da legalidade
Se para o militar o maior valor é a honra, para o civil, especialmente no contexto democrático, o valor central é a legalidade.
A legalidade não é apenas um princípio abstrato, mas uma prática social e política multifacetada, que pode ser entendida em três fenômenos principais: a legalidade estrita, a solução pela política e a tutela judiciária. Cada uma dessas dimensões reflete aspectos diferentes do modo como a sociedade civil organiza e resolve seus conflitos, contrastando profundamente com o ethos militar.
A legalidade estrita se refere à primazia das regras – a observância das normas e leis estabelecidas, que regulam a convivência social e delimitam o comportamento aceitável dos cidadãos, dos agentes públicos e do Estado, dentro de um Estado de Direito. Para o civil, em essência, o cumprimento das leis representa o fundamento da ordem e da justiça – independentemente da eficiência ou moralidade percebidas dessas normas, o que é presumido.
No imaginário militar, entretanto, a legalidade estrita é frequentemente vista como limitada e vulnerável, por depender de uma conformidade formal que pode ser manipulada, corrompida ou subvertida. A frase “nem tudo o que é legal é moral” sintetiza essa crítica, apontando que, para o militar, a honra e a moralidade devem estar acima da legalidade estrita, que muitas vezes é percebida como uma construção falha, artificial, corrupta.
Como vimos anteriormente, essa visão hierárquica entre honra e legalidade, colocando a primeira como uma fonte de legitimação superior, tem implicações práticas significativas. Ela legitima, no contexto militar, decisões e ações que violam frontalmente a legalidade, desde que sejam justificadas pela necessidade de “fazer o necessário”, “agir quando é preciso”. O militar é treinado desde cedo para aceitar que, em situações de necessidade, algo profundamente subjetivo, sua própria honra é uma ancoragem no que “é certo”, e pode sobrepor-se, como carta de valor mais alto, às normas civis e legais. Essa flexibilidade moral reforça a percepção de que o militar não apenas tem o direito, mas o dever de agir quando considera que o sistema legal falhou.
Assim, a honra militar torna-se frequentemente uma justificativa para ações que, do ponto de vista civil, seriam consideradas abusivas ou autoritárias.
Vejamos o ato de matar, por exemplo. Matar, talvez, seja o interdito máximo da lei. A proteção à vida, mesmo daqueles que porventura sejam considerados criminosos, é um dos objetivos básicos de todos os sistemas legais. Ocorre que o ato de matar é o próprio ofício e ciência do militar. A agressão, o dano, a destruição, são também interditos colocados pela lei, e, da mesma forma, fazem parte do ofício do militar. Ou seja: é como se o militar tivesse, pela própria natureza e missão, o dever e a licença de operar além da legalidade, onde a lei não alcança. A lei, então, não é vista como absoluta, não alcança a todos – é um instrumento civil dirigido a civis. A própria existência do militar é, para ele, um lembrete de que chegará o momento em que homens especiais, elevados, informados não pela legalidade, mas pelo excepcionalismo da honra, da altivez, farão “o que é necessário”, ignorando os comandos legais – que são ferramentas que servem, afinal, para balizar o civil, que, como seria desprovido da mesma honra e altivez, precisa de limites externos. Isto foi já foi tratado, em maior extensão, no tópico anterior.
A segunda dimensão da legalidade, aqui colocada em um sentido bem mais amplo, diz respeito à fonte da legalidade, que é a busca da solução dos conflitos pela política, através do diálogo, da negociação e do compromisso, em fóruns adequados para isso – principalmente pela atividade legislativa organizada. No mundo civil, uma autoridade superior não pode simplesmente inovar sobre o previamente estabelecido em lei, operar além do que é permitido[8]: deve ser previamente autorizada pelo processo legislativo, através da negociação política, aqui entendida como um mecanismo plural de resolução de diferenças através do compromisso firmado em lei, permitindo que interesses divergentes sejam reconciliados por meio de processos deliberativos e representativos estáveis, graduais, impessoais e seguros.
Essa prática política é frequentemente desvalorizada pelo militar, que enxerga a negociação e o compromisso como sinais de fraqueza e indecisão típicos de uma estrutura social sem hierarquia definida, horizontalizada. A lógica militar, que privilegia a hierarquia e a obediência, vê este processo como um espaço caótico e ineficaz, incapaz de alcançar soluções claras e rápidas. O militar – que repudia a indecisão, a hesitação – exalta a eficiência operacional, rápida, decisiva, em detrimento do processo político. O militar, na sua atividade típica, não pode se dar o luxo de hesitar, e portanto não entende como civis podem tolerar os longos processos deliberativos característicos da política.
A solução do militar, ele enxerga, é melhor: em vez de negociação, chega-se na solução dos impasses por um ato de comando, exercido por um indivíduo capaz, determinado, treinado, e acima de tudo honrado – um indivíduo cuja carreira e ascensão hierárquica chancelou a conduta, responsabilidade, probidade, que, por ser superior, com todas as marcas simbólicas de honra que isso traz – homenageado, laureado, condecorado, receptor de reverência e tratamento diferenciados – saberá decidir o que é melhor.
Outra questão envolve a realpolitik característica da visão militar. O militar tem problemas para conceber a soberania popular como fonte do poder, pois, para ele, a força potestativa e a superioridade material das armas são entendidos como a verdadeira fonte do poder, relegando a soberania popular a uma posição secundária ou simbólica, meramente discursiva. Ao fim e ao cabo, o poder político deriva do poder de fogo superior, em uma inversão da célebre frase de Clausewitz: a política seria a continuação da guerra por outros meios. A atividade bélica, portanto, jaz como uma fundação, um alicerce firme da sociedade.
Ocorre que, apesar disso, a vida política, incluindo a vida partidária, é vivida pelas Forças Armadas brasileiras de uma maneira ambivalente, o que reflete a complexa relação entre as instituições militares e o sistema político.
Por um lado, o espaço político é frequentemente visto como interditado, ou seja, como um domínio que as Forças Armadas não devem ou não podem penetrar, pois isso implicaria trazer, para dentro da caserna, um elemento de perturbação da ordem, visão profundamente enraizada em uma concepção de que a política, com suas disputas ideológicas e seus jogos de poder, é corrupta, instável e incompatível com a disciplina, a hierarquia e a honra militar. Apesar disso, por outro lado, o espaço político instrumentalizado é desejado e ambicionado pelos militares, especialmente quando ele oferece meios de ação para preservar ou reconfigurar o status quo de acordo com seus próprios interesses. Exemplos são abundantes nos períodos críticos da história do Brasil.
Há uma constante tensão, no pensamento militar, entre a ideia de que os militares devem permanecer alheios à política e a realidade de que, sempre que acreditam que seus projetos (voltados aos próprios interesses ou à nação) estão ameaçados, eles se sentem no direito de intervir, inclusive usando a política como uma ferramenta para alcançar seus objetivos. A política não deve penetrar na caserna, mas o militar, como se cumprisse uma missão de infiltração na profundidade do território inimigo, entende que deve periodicamente realizar expedições no campo estrangeiro da política civil. A relação entre as Forças Armadas e a política é, portanto, marcada por uma ambiguidade profunda, que oscila entre o distanciamento e a intervenção, conforme as circunstâncias e os interesses da instituição, se posicionando tanto como defensores do regime democrático quanto como agentes dispostos a desestabilizá-lo quando percebem que a sua próprio projeto está ameaçado.
Por fim, há uma terceira dimensão da legalidade, que diz respeito à tutela judiciária – a função estatal de, na prática, exercer a jurisdição, “dizer a lei” nos casos concretos, função exercida pelo Poder Judiciário. Do mesmo modo que a legalidade e a política, nas academias militares o sistema judiciário é frequentemente percebido de maneira cética e por vezes hostil, sendo visto como um espaço labiríntico, onde as regras e decisões claras (sejam as que decorrem das normas ou, de forma mais grave, as ordens hierárquicas) são subvertidas por tecnicalidades, interpretações subjetivas e franca corrupção.
Essa visão é particularmente exacerbada quando o judiciário é utilizado para questionar ou revisar decisões internas da corporação, o que é encarado como uma afronta direta à autoridade e à autonomia militar, em subversão à disciplina e à hierarquia.
Quando o judiciário civil interfere em questões militares, ele não é apenas visto como inadequado, mas como um elemento externo que ameaça a integridade da corporação, e o mero recurso ao judiciário, independente do mérito do que se busca, é visto por vezes como um ato de profunda indisciplina. Essa desconfiança sistemática reforça a ideia de que as Forças Armadas possuem uma soberania interna que deveria ser preservada, afastada e não alcançada pelos mecanismos constitucionais.
Novamente, o exemplo de um caso, ocorrido com um dos colegas de formação do autor, ajuda a ilustrar. Periodicamente, os cadetes aviadores da Academia da Força Aérea eram submetidos a revisões médicas, de caráter eliminatório. Um deles, ao realizar o teste oftalmológico no Hospital da Aeronáutica, foi dado como portador de um desvio na visão (até então indetectado) que o retirava dos estritos parâmetros aceitos para os cadetes – e determinava, portanto, seu desligamento. Excluído sumariamente do curso e da vida militar, mas, nos dias seguintes, suspeitando da acuidade do teste a que foi submetido, refez os exames necessários, em hospitais e clínicas civis, descobrindo, de fato, que foi vítima de um erro. Assim, munido de múltiplos laudos que comprovaram o erro do teste que o eliminou, procurou a Justiça Federal, que prontamente reconheceu o erro e o reintegrou ao curso.
Isso ocasionou um fenômeno curioso. Embora tenha sido recebido de volta com entusiasmo e alívio pelos colegas, e embora dificilmente algum comandante ou superior possa discordar que houve uma infeliz injustiça, felizmente remediada, ainda assim a falta de ter procurado a “justiça dos paisanos” não poderia ficar sem punição. O cadete foi reintegrado, concluiu o curso e se formou oficial, mas as exigências do código deste conduta interno, informal, abstrato, exigiram que ele ficasse “marcado”. O militar passou, desde então, a carregar uma “letra escarlate”, uma mancha perene que perdurou não somente em sua formação, mas que o acompanhou pela vida profissional, sendo, desde então, relegado como punição a funções menores, mais administrativas e, na ótica militar, mais indignas, menos honradas. Esse “acordo” satisfez os dois lados.
Apesar da visão predominantemente negativa do sistema judiciário como um espaço de subversão das normas e um elemento externo à lógica militar, essa percepção não implica que o acesso ao judiciário seja um tabu para os militares. Pelo contrário, há uma tolerância, e até mesmo um estímulo, para recorrer ao judiciário quando o objetivo é reclamar direitos frente a particulares ou mesmo contra a União, principalmente, para a obtenção de vantagens pecuniárias. Essa prática é inclusive juridicamente facilitada por associações e clubes militares, que funcionam, na prática, como os sindicatos de facto da classe.
Essa relação seletiva com o judiciário demonstra que, mesmo dentro de uma lógica de insularidade, há brechas que permitem um engajamento instrumental com o sistema jurídico, desde que isso não comprometa a narrativa de autonomia, primazia e superioridade do militar e seus assuntos perante o mundo civil.
A “antimatéria”: a universidade
A segunda frente de antagonismo ao mundo civil reproduzida nas escolas de formação é dirigida à intelectualidade, que se manifesta, de forma explícita e constante, através de um desprezo quase visceral pela universidade, tratada como um símbolo de desleixo e futilidade.
Durante a formação, o cadete é regularmente advertido com a frase “isso aqui não é uma federal” ou suas variações, especialmente quando algo não corresponde aos padrões exigidos — seja uma execução técnica malfeita, um comportamento desatento, desleixo no seu asseio, rendimento físico abaixo do esperado ou até mesmo a limpeza de seu ambiente. A expressão funciona como uma reprovação contundente e carrega, em si, um desprezo subjacente pela educação superior no mundo civil, seja isto entendido como as instituições de ensino ou o conteúdo da educação superior em si.
Esse discurso reforça a ideia de que o ambiente acadêmico civil é um espaço inferior, incapaz de formar cidadãos disciplinados e comprometidos com valores elevados, como os cultuados nos rituais e símbolos militares. Para o cadete é constantemente reiterado o privilégio de estar sob o comando dos mais preparados, seguindo os passos dos maiores vultos e herois da nação, na companhia da elite mais rigorosamente selecionada e sob a tutela da caserna, um local que supostamente o moldará para a excelência física, técnica, intelectual e moral. Em contrapartida, a possibilidade de estar em uma universidade civil é apresentada como quase degradante, algo equivalente a desperdiçar o seu potencial e a sua vida.
Esse desprezo pela universidade ultrapassa o simples antagonismo e se transforma em uma ferramenta retórica para isolar o cadete do mundo intelectual e reforçar o sentimento de superioridade da formação militar. A universidade, nesse contexto, não é apenas vista como desnecessária; ela é tratada como o oposto do rigor e da virtude que a caserna se atribui, ao invés de um local de formação, um local de deformação, de aprendizado de tudo o que é ruim e indesejado, consolidando ainda mais a separação entre o militar e o civil.
O pensamento acadêmico e a produção cultural civil são vistos como efêmeros e abstratos, distantes das “realidades concretas” que, na visão militar, devem guiar a ação. A intelectualidade é retratada como algo desconectado do pragmatismo necessário para a gestão ou defesa do país, sendo frequentemente deslegitimada como uma ocupação elitista e inútil.
A percepção de superioridade intelectual da formação militar é sustentada, em grande parte, por um sistema educacional que combina rigor, exaustividade e uma excelência técnica indiscutível, especialmente nas ciências exatas e naturais. Matemática e física, por exemplo, são ensinadas em padrões que rivalizam com as melhores universidades do mundo. O treinamento de excelência em áreas selecionadas das ciências exatas e técnicas militares aplicadas, amplamente valorizado nas academias militares, reforça uma ilusão persistente: a de que os militares constituem uma elite intelectual, científica e técnica superior, apta não apenas a resolver problemas práticos imediatos, mas também a pensar e decidir os rumos da nação.
Essa percepção é profundamente enraizada e não surge por acaso. Ela remonta diretamente às raízes positivistas que moldaram o pensamento militar brasileiro desde o final do Segundo Reinado, especialmente sob a influência de Benjamin Constant e da doutrina comteana que permeou os primórdios da República. No positivismo militar, a ciência e a técnica são vistas como ferramentas supremas para organizar e dirigir a sociedade, relegando as disputas políticas e os debates democráticos ao campo da ineficácia e do caos. Portanto, longe de ser um resquício histórico, o positivismo que ainda guia o ethos militar brasileiro permanece ativo, moldando as estruturas de poder e perpetuando a crença de que a ordem e o progresso — pilares do lema positivista — dependem de uma liderança técnica, hierárquica e disciplinada, que as Forças Armadas se consideram destinadas a exercer. Esse ideal, embora deslocado da realidade contemporânea, continua a alimentar a insularização e a desconexão dos militares com o mundo civil e democrático.
Essa tradição construiu um ethos castrense que atribui aos militares não apenas o domínio das máquinas e dos cálculos, mas também a capacidade de definir, de maneira “científica” e objetiva, o que seriam os interesses superiores da nação e o que deve ser feito para alcançá-los de modo decisivo e prático, amparada por visões geopolíticas advindas, principalmente, da produção de outros militares (como, por exemplo, das visões geopolíticas do General Golbery e de outros teóricos militares dos anos 60 e 70), adotadas em parte por reverência institucional interna, em parte por imposição doutrinária. Em essência, a formação técnica de excelência em áreas como física, matemática e engenharia é instrumentalizada para consolidar uma visão de mundo que enxerga os militares como herdeiros naturais de uma missão tutelar, prevista na pessoa dos tecnocratas positivistas. Essa construção, no entanto, ignora deliberadamente que a complexidade dos desafios nacionais transcende a aplicação técnica e demanda uma compreensão ampla das dinâmicas sociais, econômicas e políticas, algo sistematicamente negligenciado na formação militar – quando é estudado, o é feito com tantas ressalvas doutrinárias, com tanta desconfiança, com tanto cuidado, para evitar “contaminação”, que pouco se aproveita do que é permitido estudar.
Aqui entramos em um ponto nevrálgico da questão: a excelência no ensino de matérias técnicas, aplicadas e exatas coexiste com um problema estrutural significativo: uma clara delimitação entre o que deve e o que não deve ser aprendido.
O ensino de humanidades nas academias militares brasileiras, bem como em cursos de aperfeiçoamento ou de Estado-Maior, é notavelmente negligenciado. Quando abordado, ocorre de forma fragmentada e superficial, priorizando uma transmissão conteudista e factual, que conscientemente evita a exploração crítica e interpretativa característica dessas disciplinas. Essa escolha pedagógica não é acidental; ela reflete uma postura institucional deliberada que vê a crítica, inerente às humanidades, como uma ameaça potencial à ordem e à disciplina que sustentam o ethos militar. O pensamento crítico, núcleo das ciências humanas, é percebido como uma porta de entrada para ideologias questionadoras, contestadoras, consideradas incompatíveis com a estrutura hierárquica rígida e com o conceito de obediência que fundamenta a vida militar.
Questionar, dentro desse sistema, é visto como uma transgressão; a formação, portanto, evita oferecer ferramentas que possam levar à desconstrução dos valores e narrativas instituídas. Em vez disso, as humanidades são tratadas de maneira instrumental, reduzidas a um rol de conhecimentos históricos ou de fatos culturais que, ou reforçam a identidade militar (como por exemplo em visões de história protagonizadas pela classe militar) ou, ao menos, não incitam reflexão sobre o papel da caserna na sociedade ou sobre os limites éticos da autoridade.
Essa negligência no ensino de humanidades nas academias militares não está isolada; ela ocorre paralelamente a um esforço deliberado de falsificação histórica, que busca moldar a visão de mundo dos militares em consonância com narrativas revisionistas. Esse revisionismo histórico não apenas exclui perspectivas críticas, mas promove mitos cuidadosamente construídos para justificar e exaltar o papel das Forças Armadas em momentos-chave da história brasileira, como o golpe de 1964.
Entre os exemplos mais emblemáticos está a narrativa de que os militares foram convocados pela nação para interromper um iminente golpe comunista. Essa versão, amplamente disseminada nos meios militares, ignora as complexidades políticas do período e apaga as evidências de que o golpe foi, na verdade, uma ruptura institucional planejada e articulada com o apoio de setores conservadores da sociedade, e que a chamada “luta armada” só veio a tomar corpo muito após a ruptura institucional (e, em parte, como consequência dela). Outro mito recorrente é o de que a luta armada dos anos 1960 e 1970 representava uma ameaça existencial extrema ao país, justificando as violações sistemáticas de direitos humanos e o autoritarismo que marcaram o regime militar. Ou seja, “ilegal, de fato, mas necessário”.
Essas narrativas, longe de serem meras interpretações divergentes, funcionam como ferramentas ideológicas para consolidar na mente do cadete o ethos militar. Elas reforçam a ideia de que as Forças Armadas não só têm o direito mas também o dever de intervir na política sempre que julgarem que a ordem está ameaçada. Ao mesmo tempo, deslegitimam esforços de justiça de transição, como a Comissão Nacional da Verdade, acusada de parcialidade e revisionismo “de esquerda”.
Historicamente, o revisionismo histórico e a cultura de auto engrandecimento das Forças Armadas foram nutridos internamente, por meio de uma produção cuidadosa de material doutrinário. Publicações como as da Biblioteca do Exército (Bibliex) e outros conteúdos produzidos “de militares para militares”, desempenharam um papel central nesse processo, oferecendo narrativas que, vinculadas ou não com a realidade factual, consolidavam uma visão heroica das Forças Armadas os episódios de desestabilização democrática, ao mesmo tempo em que minimizavam ou reinterpretavam em larga medida os episódios controversos. Esses materiais sempre foram cuidadosamente calibrados para reforçar a identidade e os valores militares, operando como ferramentas de coesão interna e de reafirmação da legitimidade institucional – motivo, portanto, não de vergonha, mas de orgulho, uma “verdade sufocada”. Como observa Fabio Victor, “esses materiais não apenas se tornam fontes de validação, mas também reforçam a insularização e o sentimento de superioridade moral do militar em relação ao mundo civil“[9].
Hoje, no entanto, a dinâmica dessa doutrinação tem se transformado significativamente. A produção de material revisionista – ou de franca falsificação histórica – não está mais confinada às estruturas internas das Forças Armadas, mas é amplamente alimentada por empreendedores externos da chamada “guerra cultural”. Plataformas como Brasil Paralelo, entre outras, têm inundado o mercado com materiais audiovisuais que amplificam narrativas revisionistas, frequentemente alinhadas aos interesses da caserna, mas que escapam do controle direto das instituições militares. Essa mudança deslocou parte do poder sobre o conteúdo da doutrinação para fora das mãos dos próprios militares. Por um lado, essa diversificação amplifica o alcance das mensagens revisionistas e sua penetração no público civil. Por outro, gera uma certa perda de autonomia sobre o conteúdo e a direção da doutrinação, expondo as Forças Armadas a influências que podem ser tanto estratégicas quanto desestabilizadoras.
Nos anos recentes, os ataques à universidade, já tradicionais no discurso militar, ganharam nova intensidade com a popularização da moderna doutrina de guerra cultural olavista, com a disseminação, como artefatos de propaganda, de faits divers cuidadosamente escolhidos para ridicularizar a academia. A doutrina de Olavo de Carvalho, com sua aversão feroz ao saber universitário e acadêmico, não somente encontrou em setores conservadores da sociedade, aproveitando–se de vieses confirmacionais, como encontrou ampla ressonância no meio militar. Esse discurso, profundamente hostil à ideia de conhecimento científico estruturado apresenta as universidades como fortalezas para ideologias contrárias à ordem e à moralidade tradicionais do país.
Isto é particularmente habilitado por um recurso sistemático ao cherry picking, em que performances artísticas ou produções acadêmicas insólitas do mundo acadêmico exterior – quase sempre ligadas a temas de sexualidade, ou que de alguma forma ofenda visões conservadoras – são deliberadamente selecionadas e amplificadas no discurso crítico à academia. Essas escolhas não são casuais; dentro do modelo de guerra cultural olavista, são calculadas para causar indignação e fomentar o descrédito da universidade. Ao transformar anomalias em representações do todo, esses exemplos alimentam a narrativa de que a universidade seria um espaço exclusivo de extravagância ideológica ou de inutilidade prática.
Por último, outro fator que contribui para a visão de que a educação militar é inerentemente superior à civil vem de um próprio passado frequentemente compartilhado dos cadetes. O ensino nos colégios militares, frequentemente considerados ilhas de excelência educacional, contribui de maneira significativa para reforçar esse discurso. Esses colégios, que figuram entre os melhores do país em rankings de desempenho, desfrutam de condições excepcionalmente privilegiadas: orçamentos robustos, infraestrutura de ponta e um corpo docente rigorosamente selecionado. Além disso, reservam vagas para as famílias de militares, garantindo a continuidade do vínculo com a caserna desde a juventude.
Para muitos cadetes, esses colégios são a porta de entrada para a formação militar formal e oferecem a primeira experiência direta com o ethos castrense. Os valores de hierarquia, disciplina e excelência técnica são inculcados desde cedo, consolidando a percepção de que o modelo educacional militar não só funciona melhor, mas é moralmente superior. Essa narrativa, contudo, não considera os fatores estruturais que sustentam essa excelência, como o financiamento desproporcional e os recursos muito acima da média das escolas civis, sobretudo das escolas públicas. Toda a superioridade do modelo é atribuído à condição ontológica “é militar”, passando ao largo de questões de financiamento e orçamento. O sucesso dessas instituições, sem observação das nuances, é apresentado como um argumento potente contra o sistema educacional civil.
A mensagem é clara: “o que é militar é bom; o que é civil, não”. Essa simplificação ignora as desigualdades estruturais que explicam as disparidades de desempenho e aprofunda o antagonismo entre os mundos militar e civil.
Persistência e reprodução do anticomunismo
Os militares brasileiros, e as Forças Armadas como um todo, demonstram uma fixação quase obsessiva com o binarismo ideológico entre direita e esquerda, frequentemente associando o comunismo e o socialismo a ameaças persistentes, mesmo em um contexto global onde essas categorias já não exercem a mesma centralidade. O regresso ideológico a esse binarismo dos anos 60, marcado pela demonização do comunismo, resulta de três fatores principais que se entrelaçam e reforçam mutuamente: uma questão geracional e etária, uma reação obstinada à história factual, e a influência de materiais propagandísticos desinformativos, revisionistas e negacionistas.
Os oficiais-generais que hoje lideram e moldam a visão e a doutrina das academias militares nos últimos anos foram formados durante os anos 1970 e 1980, períodos em que o Brasil vivia sob a ditadura militar. Para esses militares, a experiência formativa coincidiu com a implementação e consolidação de uma doutrina profundamente anticomunista, promovida pelo alinhamento com os Estados Unidos e pelos programas internos de combate à subversão. Esse contexto histórico, para muitos desses oficiais, não é apenas uma fase de aprendizado, mas um período de saudosismo e nostalgia, visto como um tempo de ordem, progresso, milagre econômico e estabilidade.
Essa visão é reforçada pelo fato de que muitos desses oficiais viveram suas primeiras experiências na carreira sob a ditadura, quando as Forças Armadas exerciam um papel hegemônico e autônomo no cenário político. Como apontado por Maud Chirio, “a memória desse período é constantemente evocada como um ideal de estabilidade e autoridade, em contraste com o que eles percebem como a desordem e corrupção do sistema civil contemporâneo[10]“. Isso cria uma predisposição geracional para rejeitar narrativas que desconstroem o protagonismo militar na história recente do Brasil.
Daí, resta incorporada à doutrina de formação dos nossos militares um paradigma central da doutrina militar brasileira desde a Guerra Fria, período em que os Estados Unidos exerceram forte influência nas Forças Armadas do país. Programas como o Military Assistance Program (MAP) e, principalmente, a Escola das Américas não apenas forneceram treinamento e equipamentos, mas também fizeram garantir que seus aliados brasileiros sustentassem uma visão de mundo em que a luta contra o comunismo, e do risco de “cubanização” dos países da América Latina, era um eixo central. Essa ideologia foi amplamente internalizada, a ponto de moldar as percepções políticas e institucionais das Forças Armadas durante e após o regime militar – inclusive, durante o período democrático, muito além da queda da União Soviética.
Esse anacronismo é particularmente evidente na FAB, onde a dependência histórica de recursos e treinamento americanos deixou uma marca duradoura. A estrutura organizacional, as práticas operacionais e, principalmente, as narrativas ideológicas da FAB permanecem profundamente arraigadas nos valores e concepções da Guerra Fria. A FAB se apresenta como uma força tecnicamente sofisticada, mas ideologicamente estagnada, fixada no fantasma do comunismo, incapaz de recalibrar sua visão de mundo para lidar com as novas ameaças globais.
Além disso, essa persistência ideológica é reforçada por materiais doutrinários e narrativas internas que continuam a exaltar a luta contra o comunismo como um marco central da identidade militar. A formação nas academias raramente questiona ou atualiza essas premissas, deixando os novos oficiais imersos em uma lógica ultrapassada que dificulta o diálogo com a sociedade civil e outras instituições democráticas.
Essa fixação ideológica, que muitas vezes parece operar em uma realidade paralela – e que em alguns casos beira a caricatura ou o exagero – é sintomática de um isolamento cognitivo que, em última análise, impede os militares de responderem de forma adequada às demandas do mundo contemporâneo. Enquanto a sociedade brasileira enfrenta desafios econômicos, sociais e tecnológicos complexos, as Forças Armadas frequentemente permanecem obcecadas com inimigos ideológicos que já não exercem o mesmo papel. Essa postura não apenas as desconecta do restante da sociedade, mas também compromete sua eficácia como instituições adaptadas às realidades do século XXI.
Outro fator determinante é a resistência em admitir o papel das Forças Armadas nos abusos e erros da ditadura militar. Ao invés de aceitar as críticas e reformular sua visão de mundo, os militares preferem uma queda-de-braço teimosa com a história, sustentando uma narrativa em que a intervenção militar foi necessária e legítima, nossa última chance contra a iminente queda para o comunismo. Essa postura implica em uma conveniente recusa em reconhecer os próprios excessos, como as violações de direitos humanos, a repressão política e os crimes cometidos no período.
Por isso mesmo, essa disputa com a história não é apenas defensiva, mas também proativa: os militares frequentemente tentam recontar a história a seu favor, minimizando os impactos negativos da ditadura e enfatizando um suposto legado positivo de modernização e ordem. Esse esforço reflete não apenas uma tentativa de preservar a honra institucional, mas também de evitar uma reavaliação que possa minar a autoridade e o prestígio das Forças Armadas no presente.
Por fim, outro mecanismo de reprodução dessa mentalidade binária é alimentado por materiais de propaganda desinformativa, revisionista e negacionista, que agora foi terceirizados para o mundo civil, especialmente por empreendedores da chamada “guerra cultural”. Documentários, vídeos e publicações produzidos por grupos como Brasil Paralelo se mostram extremamente populares entre os militares, ao oferecerem narrativas que reforçam suas crenças e protegem sua visão de mundo de questionamentos críticos. Essa produção se alinha perfeitamente ao ethos militar, oferecendo explicações simplistas e convenientes que reafirmam o papel do militar como guardião da ordem contra um suposto caos subversivo.
A busca da compatibilização da formação militar com a realidade democrática
Para reconfigurar a formação militar de forma compatível com a democracia, é necessário um processo transformador que contemple dois passos interdependentes e, inegavelmente, traumáticos: a revisão do currículo e descompressão do isolamento militar.
A primeira etapa para alinhar a formação militar aos princípios democráticos é a inclusão estruturada de conceitos e temas fundamentais da democracia no currículo das academias militares. Até hoje, a formação nas casernas prioriza quase exclusivamente as ciências exatas, as aplicações militares e as habilidades técnicas, enquanto as humanidades são relegadas a um papel secundário, muitas vezes tratadas de forma superficial ou simplesmente ignoradas. Esse enfoque reflete uma tradição que privilegia o preparo técnico e operacional em detrimento de uma compreensão crítica e profunda das estruturas sociais e políticas que os militares juram proteger.
Uma reorientação curricular é essencial para corrigir essa lacuna, e deve incorporar disciplinas que abordem valores democráticos, como o pluralismo, os direitos humanos e a separação entre os poderes. Esses temas devem ser explorados com profundidade, e não apenas como tópicos complementares ou periféricos, para assegurar que os militares compreendam seu papel como garantidores da soberania popular — não como árbitros ou interventores no sistema político.
Esse novo enfoque no currículo não apenas ampliaria os horizontes intelectuais dos cadetes, mas também consolidaria um ethos que valoriza a democracia como sistema e como prática. A educação para a democracia não deve ser vista como uma ameaça à hierarquia militar, mas como um instrumento que fortalece a instituição ao alinhá-la aos princípios constitucionais que regem o Estado brasileiro.
A proposta não é apenas a inclusão simbólica de matérias democráticas, mas uma revisão profunda do conteúdo e da metodologia, permitindo que o militar adquira ferramentas conceituais para interpretar o mundo civil com mais empatia e menos antagonismo. Como apontado por Castro, “a formação crítica é essencial para superar a visão do militar como figura apartada, que enxerga o civil como o outro distante e ineficiente“[11].
O segundo passo exige uma descompressão social para reverter o isolamento profundo que marca a trajetória militar. Após o período de internato – o que é reforçado durante a carreira – os militares tendem a se manter em comunidades fechadas e endógenas, reforçando sua desconexão com a sociedade civil. A ruptura com esse padrão requer medidas que fomentem o contato contínuo e significativo com o mundo exterior, quebrando o ciclo de insularização que transforma a caserna em um espaço absoluto de auto-referência.
Essa descompressão pode ser promovida por meio de parcerias com instituições civis, estágios em órgãos públicos e programas de intercâmbio que inserem o militar em ambientes plurais e diversos – principalmente durante os seus anos de formação. Além disso, é fundamental integrar civis nos processos educacionais dentro das academias, criando espaços de convivência que incentivem o diálogo e a troca de perspectivas. Essa reconexão é indispensável para que os militares possam compreender o mundo civil não como um território estrangeiro a ser tutelado, mas como um espaço legítimo e autônomo de convivência democrática.
A história recente do Brasil mostra que, enquanto não houver um rompimento consciente e profundo com essa cultura golpista, novas tentativas de desestabilização continuarão a surgir, travestidas de patriotismo ou apelos à “ordem”. É imperativo que a sociedade brasileira — e especialmente suas lideranças civis — compreendam essa dinâmica e tomem medidas firmes para democratizar o papel das Forças Armadas no país.
Sem enfrentar esse desafio, as Forças Armadas continuarão a produzir gerações de oficiais treinados para desconfiar da política e prontos para intervir no sistema constitucional sempre que julgarem conveniente. É uma mudança que só pode ser realizada pela sociedade civil, que precisa exigir um novo pacto com suas instituições armadas — um pacto que reforce a autoridade da Constituição e descarte, de uma vez por todas, a ideia de que a caserna é árbitra do destino político do Brasil.
Douglas Oliveira Donin – doutorando em Direito UFRGS, ex-cadete aviador da FAB
Karen Cristina Garbo – mestre em Letras UFRGS, doutoranda em História UFRGS
Lucas Mariano Baqueiro – mestre em Ciências Sociais UFBA, doutorando em Ciência Política UFSCar
Referências
AKKOYUNLU, Karabekir; LIMA, José Antonio. Brazil’s Stealth Military Intervention. Journal of Politics in Latin America, 2022. v. 14, n. 1, p. 31–54.
CARVALHO, José Murilo De. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. História geral da civilização brasileira, 1977. v. 3, p. 180–234.
CASTRO, Celso. O espírito militar: Um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
DONIN, Douglas Oliveira. Tenentes vs. Bacharéis: A primeira onda do tenentismo e o começo do conflito entre os militares e o sistema jurídico no Brasil. Comciência – Revista eletrônica de jornalismo científico., 2022. v. 235, n. 1, p. 1.
FERREIRA, Oliveiros S. Vida e morte do partido fardado. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2019.
PENIDO, Ana Amélia et al. “Cadete! Ides comandar, aprendei a obedecer!”: Como se formam os generais do futuro. Educação em Revista, 2022. v. 38. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-46982022000100167&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 27 nov. 2024.
VICTOR, Fabio. Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[1] DONIN, Douglas Oliveira. Tenentes vs. Bacharéis: A primeira onda do tenentismo e o começo do conflito entre os militares e o sistema jurídico no Brasil. Comciência – Revista eletrônica de jornalismo científico., 2022. v. 235, n. 1, p. 1.
[2] CARVALHO, José Murilo De. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. História geral da civilização brasileira, 1977. v. 3, p. 180–234.
[3] AKKOYUNLU, Karabekir; LIMA, José Antonio. Brazil’s Stealth Military Intervention. Journal of Politics in Latin America, 2022. v. 14, n. 1, p. 31–54.
[4] Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.457, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em junho de 2020.
[5] PENIDO, Ana Amélia et al. “Cadete! Ides comandar, aprendei a obedecer!”: Como se formam os generais do futuro. Educação em Revista, 2022. v. 38. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-46982022000100167&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 27 nov. 2024.
[6] VICTOR, Fabio. Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[7] FERREIRA, Oliveiros S. Vida e morte do partido fardado. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2019. p. 35.
[8] O princípio da legalidade administrativa, pilar da atuação legítima do Estado, prevê que só é legítima a atuação do poder público se esta atuação for previamente autorizada por lei – ou seja, só é legal fazer o que a lei permite. É o oposto do princípio da legalidade em sentido amplo (ou legalidade constitucional, ou privada), que se dirige ao cidadão: este pode fazer tudo, menos o que é proibido pela lei.
[9] VICTOR, Fabio. Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
[10] CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
[11] CASTRO, Celso. O espírito militar: Um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.