Foram os cogumelos motores da evolução humana?

Por Gustavo Almeida

Para o etnobotânico Terence McKenna, o consumo habitual de fungos causou um salto evolutivo sem precedentes na espécie humana, propiciando o aumento do cérebro e diferenciando-nos de outros grupos de primatas em um prazo muito mais curto do que o teoricamente necessário. A linguagem teria surgido daí, além dos primeiros rituais tribais, a intensificação do senso de comunidade e o surgimento das religiões primitivas. Para além da tese polêmica, avançam os estudos sobre os variados efeitos e potenciais usos terapêuticos de substâncias enteógenas ou psicodélicas.

Imagine um ancestral do ser humano que, passando por um período de escassez dos alimentos já conhecidos e usualmente consumidos, resolve experimentar uma nova fonte encontrada na floresta – um certo tipo de cogumelo. Ao provar uma pequena quantidade, o explorador primitivo sente reações inesperadas:  sentidos mais aguçados e uma percepção diferente do ambiente ao seu redor. Em outro dia, antes de sair para a caçada, resolve comer mais um pedaço daquele estranho alimento; nota que consegue identificar mais facilmente animais embrenhados entre as plantas, por meio de sons emitidos ou da rápida passagem da potencial presa por seu campo de visão. A caçada torna-se mais efetiva e o resultado é mais carne. O descobridor do novo recurso comunica aquilo a outros membros do grupo, que se torna o mais eficiente nas caçadas e no reconhecimento das características da região onde habita, incluindo os perigos. Mais adaptado, o grupo passa a ter maior domínio sobre os recursos disponíveis, enquanto outros grupos de primatas – que não dispõem do fortuito cogumelo – paulatinamente vão perdendo território até que, após gerações, só os detentores desse novo conhecimento estão sobrevivendo e se reproduzindo na região.

Essa curiosa estória poderia ser usada para ilustrar, grosso modo, a teoria criada pelo etnobotânico estadunidense Terence McKenna (1946 – 2000), que coloca os cogumelos psicodélicos (do grego, psykhé = mente; deloun = “tornar claro”) como motor da evolução humana. Segundo a ideia, o consumo habitual de fungos causou um salto evolutivo sem precedentes na espécie, propiciando o aumento do cérebro e diferenciando-nos de outros grupos de primatas em um prazo muito mais curto do que o teoricamente necessário. A linguagem teria surgido daí, e o ciclo de vida dos cogumelos, alega-se, poderia estar relacionado aos primeiros rituais tribais, contribuindo para a evolução da cultura humana, intensificação do senso de comunidade e surgimento das religiões primitivas.

Isso mesmo! Só teríamos chegado onde chegamos por causa das drogas.

Ainda que instigante, a proposição, entretanto, segue controversa e poucos são os biólogos evolucionistas que considerem-na adequada para explicar a evolução humana. Apesar disso, a teoria dos primatas consumidores de cogumelos “mágicos” não deixa de ser uma explicação admissível para a presença de cogumelos e mesmo plantas com potencial de causar alterações de consciência em tantas culturas tradicionais ao redor do planeta. Desde indígenas mesoamericanos até populações tribais asiáticas ou povos europeus primitivos, muitas populações encaram os cogumelos psicodélicos como um elemento relevante de sua cultura. Compreendidos numa indistinguível intersecção entre medicina e religião, os cogumelos foram por muito tempo, em tais populações, remédio “para o corpo e para a alma”.

Uma breve história dos fungos e seus usos por humanos
Apesar de estarem presentes há séculos ou até milênios nas culturas indígenas, apenas no século XX plantas e fungos enteógenos (palavra de origem grega que significa algo como “manifestação interior do divino”) foram descobertos pela civilização ocidental moderna. O grande precursor no entendimento dos usos dos cogumelos com potencial de expansão da consciência foi o estadunidense Robert Gordon Wasson (1898 – 1986). A história diz que ele e sua esposa Valentina Pavlovna, de origem russa, tinham opiniões bastante divergentes sobre os fungos; enquanto para Valentina os cogumelos eram iguaria culinária ou mesmo remédio em potencial, Gordon ficava aterrorizado com o simples fato de alguém – ainda mais sua esposa! – comer o que, para ele, era veneno. Após constatar em sua própria casa que muitos cogumelos podiam ser consumidos sem riscos à saúde, Wasson sentiu-se até certo ponto ridículo por sua aversão infundada. Passou, assim, a indagar-se o porquê de um mesmo corpo de frutificação (denominação técnica de cogumelo) causar reações tão antagônicas em pessoas vindas de culturas diferentes. Wasson passou a estudar intensamente o tema, o que o levou a escrever um livro com a esposa (Mushrooms, Russia and history, 1957) sobre como tais diferenças culturais permaneciam em sociedades modernas.

Não satisfeito, no entanto, embrenhou-se cada vez mais em meio a relatos de culturas indígenas tradicionais que literalmente veneravam os cogumelos e passou a ir atrás delas, afim de conhecê-las. Ele as chamou de culturas ou sociedades micofílicas (do grego mykes = “fungo”; philos = “o que gosta de”) em oposição àquelas avessas aos fungos (como a sua sociedade norte-americana natal), as quais nomeou micofóbicas (do grego phobos = “medo, temor”).

Mais do que descrever essas sociedades, o que fez de Wasson alguém realmente reconhecido, no entanto, foram os relatos de suas experiências ao participar de rituais religiosos, nas tribos em que visitou, onde se consumiam cogumelos “mágicos”. Reconhecido por muitos como o primeiro ocidental moderno a participar e descrever tais rituais com interesse antropológico, o pesquisador publicou vários livros relatando as novas percepções que conhecera ao expandir sua consciência com os fungos.

Alguns anos antes, um químico suíço chamado Albert Hofmann trabalhava em seu laboratório em uma grande empresa farmacêutica com um fungo chamado Claviceps purpurea – bastante conhecido por causar uma doença chamada ergotismo, comum na Idade Média. Certo dia, após algumas tentativas frustradas de obter-se os metabólitos de capacidade anti-hemorrágica que buscava, Hofmann resolveu ir embora, quando, por descuido, acabou entrando em contato com uma das substâncias produzidas a partir do C. purpurea. Despreocupado, pegou sua bicicleta e pedalou para casa. O caminho, no entanto, foi muito mais do que um simples passeio. As diminutas gotas na pele de Hofmann continham uma substância de grande potencial psicodélico – a qual batizou posteriormente de dietilamina do ácido lisérgico – LSD. Tal substância, absorvida pela via cutânea, fez com que o suíço experimentasse um estado de consciência e percepções altamente modificado.

Quando, após algum tempo, deduziu o que tinha acontecido e a causa, começou a pensar em aplicações para aquela substância única, dentre as quais seu uso para ajudar pessoas que estivessem sofrendo com problemas psicológicos e alcoolismo. Houve um crescente interesse nas áreas da psiquiatria e psicologia pelo composto, sendo um dos maiores expoentes no assunto, à época, o psicólogo estadunidense Timothy Leary.

Na aurora dos estudos com psicodélicos, Hofmann entrou em contato – possivelmente através das obras de Wasson – com o tema dos cogumelos enteógenos. Passou a interessar-se também por eles e, usando suas habilidades de químico, conseguiu isolar a principal substância responsável pelos efeitos psicoativos: a psilocibina, também usada a partir daí em pesquisas da área médica por Leary e outros.

Apesar da intenção inicial de tornar a substância um recurso terapêutico, o LSD acabou sendo indiscriminadamente consumido, principalmente por jovens de classe média, nos anos da chamada contracultura (década de 1960). Sua disseminação foi vertiginosa e os efeitos – principalmente em virtude do consumo de dosagens muito altas – nem sempre eram positivos para os usuários. Tudo isso tornou a substância bastante polêmica, até que, por fim, fosse proscrita (proibição do uso, obtenção e comercialização) nos EUA e daí, também, banida no resto do mundo no começo da década de 1970.

Sobre o LSD, Hofmann escreveu seu mais famoso livro, LSD: my problem child (LSD: meu filho problema, em tradução livre). A substância mais importante e famosa descoberta por ele foi, ao mesmo tempo, a mais problemática, por causa dos usos indevidos e os consequentes problemas legais que gerou.

Os fungos psicodélicos no século XXI
Apesar de continuarem polêmicas, as substâncias psicodélicas parecem experimentar, nas primeiras décadas do século XXI, um novo reconhecimento por parte da ciência, sendo alvo de pesquisas de ponta em diversas áreas. “Sem dúvida alguma o interesse está crescendo”, diz Eduardo Schenberg, neurocientista e pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Psicoativos (Neip, composto por cientistas vinculados a várias instituições), ressaltando que têm figurado na capa de revistas científicas importantes, como Cell e The British Medical Journal.

Schenberg, que é sócio-fundador da Sociedade Internacional para Pesquisa com Psicodélicos (ISRP, na sigla em inglês), explica que o interesse da biomedicina e demais áreas médicas nesse tema diminuiu após a proscrição das substâncias. No entanto, afirma, “o tema sempre foi instigante e importante”. “Enquanto a biomedicina ignorava os psicodélicos quase que por completo, nas ciências humanas vários estudos e descobertas importantes foram feitas nas décadas de 70, 80 e 90.” O  interesse da área biomédica só voltaria a ressurgir a partir de 1995, com as pesquisas realizadas pelo professor Rick Strassman, da Universidade do Novo México, nos EUA, com o DMT (dimetil-triptamina: substância psicoativa encontrada, por exemplo, na ayahuasca – bebida de uso ritual à base de plantas).

Atualmente, muitos artigos têm sido publicados sobre o uso de substâncias enteogênicas, dentre as quais as derivadas de fungos, em pesquisas das áreas de psiquiatria, psicologia, biomedicina, farmacologia, neurociências e outras – a lista é cada vez maior.

“Com o LSD, por exemplo, nos últimos 12 meses foram publicados estudos muito importantes sobre os efeitos no cérebro humano”, diz Schenberg, que participou de um desses estudos, “e também em escala nanométrica, sobre como essa molécula se liga no receptor [de nome técnico] 5-HT2A”. “Estamos começando a juntar os pedaços do conhecimento que vai do nanométrico mundo das moléculas e receptores até o mais sistêmico, sobre o cérebro e a psique”, complementa.

Segundo o cientista, há avanços na área em grande parte devido a tecnologias que sequer existiam na época das primeiras pesquisas com enteógenos, como a neuro-imagem e a cristalografia. “Foi demonstrado que o LSD apresenta um padrão único de ligação no interior do receptor, que forma uma espécie de ‘tampa’ que o prende lá dentro; assim fica ligado ao receptor por muitas horas – algo extremamente incomum nas interações entre fármacos e receptores no sistema nervoso central”, afirma. “Na escala sistêmica”, prossegue o pesquisador, “observamos que o LSD, assim como a psilocibina, temporariamente dessincroniza o córtex cerebral e, ao fazer isso, permite que áreas do cérebro que normalmente operam separadamente – como se fossem estações de rádio transmitindo em diferentes frequências – passem a se comunicar. Isso permite maior fluidez cognitiva, emocional e comportamental, e está relacionado com vários dos benefícios terapêuticos”.

Tendo em vista essas interações cerebrais detectadas, muitas pesquisas têm buscado a aplicação terapêutica da psilocibina e do LSD. Foram publicados estudos de aplicabilidade em quadros como depressão, ansiedade em pacientes com doenças graves, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), entre outros problemas psicológicos.

“Existem vários campos de atuação dessas substâncias”, diz José Arturo Escobar,  pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Rede de Pesquisa sobre Drogas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) e do Neip. “LSD, psilocibina, mescalina, substância oriunda do cacto peiote e DMT são substâncias muito similares estruturalmente, são todas agonistas [o oposto de antagonista] serotoninérgicos – facilitam a ação da serotonina nas sinapses cerebrais”, esclarece. Tendo trabalhado com o tema no doutorado e, agora, no pós-doutoramento, Escobar considera importante diferenciar os termos usados para se referir às substâncias: “Alucinógeno é mais conhecido e mais problemático, porque reduz vários tipos de efeitos de várias substâncias a um tipo de experiência particularmente raro”, pondera. Para o especialista, o termo alucinação – entendido como percepção de um objeto sem referência de objeto real – não se enquadra ao que acontece em experiências com LSD e psilocibina, por exemplo. Escobar julga mais precisos os termos “psicodélico” ou “enteógeno”.

Alguns estudos recentes têm também contribuído no sentido de minimizar estereótipos negativos existentes sobre os psicodélicos. Dois trabalhos, de 2007 e 2010[1], publicados na revista The Lancet e coordenados pelo pesquisador britânico David Nutt, buscaram catalogar diversas drogas de acordo com a potencial periculosidade que representavam, de acordo com três parâmetros: danos físicos à saúde, potencial de causar dependência e impactos ao contexto social (incluídos gastos provocados ao sistema público de saúde). De acordo com suas conclusões, os cogumelos (mushrooms) e o LSD possuem baixíssimo risco de causar dependência química, além de não causarem danos físicos consideráveis à saúde. Tais substâncias seriam, inclusive, menos nocivas que álcool ou tabaco.

Legenda: barra vermelha representa, para cada droga, o risco de provocar danos a outras pessoas, e barra azul, o risco para o próprio usuário. Fonte: Nutt et. al. 2010, The Lancet [1].

“São psicoativos muito potentes mas de baixíssima toxicidade”, confirma Schenberg. “Isso quer dizer que doses pequenas alteram a consciência de maneira marcante, por tempo prolongado, mas não danificam neurônios e nem causam problemas respiratórios ou cardiovasculares, que são os maiores riscos quando falamos de drogas.”

Obviamente, isso não significa que não haja riscos, “sempre psicológicos” de acordo com Schenberg. Por isso, boa parte dos especialistas não encoraja que se faça uso dessas substâncias por “conta própria”, o que se convenciona chamar uso recreacional. “Usar psicodélicos recreativamente”, compara o pesquisador, “é como surfar onde tem tubarão. Você pode se divertir, mas corre riscos”. O especialista adverte que podem vir à tona aspectos do inconsciente humano bastante difíceis de lidar se não houver uma assistência adequada. Há casos, raríssimos, em contexto de uso recreativo, em que a pessoa pode ficar com traumas psicológicos por causa de experiências desagradáveis. “O acompanhamento especializado é fundamental para acalmar a pessoa e apoiá-la nas horas de emoções desafiadoras”, afirma.

Razão e preconceito
No Brasil, apesar de um aumento no número de pesquisas nos últimos anos, o tema segue incipiente e existem muitas barreiras. As poucas pesquisas realizadas na área são, majoritariamente, voltadas ao DMT e à ayahuasca, sendo que, com compostos fúngicos, pouco tem sido feito no país.

“Aqui no Brasil a gente não tem nenhuma utilidade médica dessas substâncias porque são consideradas proscritas – consideradas sem importância psicoterapêutica, médica, biomédica e, ainda, perigosas”, aponta Escobar. “A questão é que é muito difícil fazer pesquisa com esse tipo de substância porque há preconceitos de várias partes”, comenta. A maior dificuldade, garante, é o status legal desse tipo de substância. “Outra é que a própria classe médica e os conceitos que comitês de ética têm é de grande desconfiança.” Em sua opinião, os parâmetros clínicos tradicionais podem não ser suficientes para avaliar o potencial de tais substâncias, dada a ampla gama de efeitos produzidos e de situações terapêuticas em que os psicodélicos podem ser aplicados.

Do ponto de vista legal, o neurocientista Schenberg avalia que a situação é complexa. Enquanto a molécula da psilocibina (assim como a do LSD) “figura nas listas internacionais de substâncias controladas, os cogumelos Psilocybe [de onde é extraída] não estão listados”.

Escobar pondera que a situação não é a mesma no mundo todo: “Em outras partes do mundo há outros entendimentos legais dessas substâncias, inclusive algumas já reconhecidas como componentes terapêuticos em suas legislações, o que facilita a utilização”. A Suíça é citada pelo pesquisador da UFPE como um exemplo de legislação mais permissiva quanto ao uso tanto científico quanto clínico. “Aqui no Brasil a coisa é bem mais complicada, bem mais burocrática”, lamenta. Além da questão legal, os tipos de investimentos em pesquisa na área são, em sua opinião, bastante insatisfatórios. “O Brasil ainda investe pouquíssimo em pesquisa; somos ainda pífios nesse campo. Com investimento tão baixo, só podemos ter número de pesquisas e resultados muito menores que outros países”, constata.

Uma abertura para a pesquisa com enteógenos, ressaltada por Escobar, é o projeto financiado pela Senad que objetiva tratar a dependência química em crack com o uso de DMT – o que, no futuro, pode ser uma porta também para pesquisas com psilocibina e LSD.

É bem provável que, acompanhando o cenário mundial, as pesquisas com psilocibina e LSD devem se estender no Brasil com o passar dos anos. O prazo para isso acontecer é, no entanto, bastante incerto. Sua aplicação clínica efetiva está, possivelmente, ainda distante. Eduardo Schenberg mostra, no entanto, algum otimismo: “A proibição das drogas vem sendo considerada uma política extremamente fracassada por setores cada vez mais amplos da sociedade, e isso também muda o cenário das pesquisas com substâncias controladas.”

Gustavo Steffen de Almeida é graduado em Ciências dos Alimentos (USP), mestre em Ciência de Alimentos (Unicamp) e especialista em Jornalismo Científico pelo Labjor/Unicamp.

Referência
[1] Nutt, D.; King, L. A.; Phillips, L. D. “Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis”. The Lancet, v.376, n. 9752, p.1558-1565, 2010.