Por Poliana Martins
Texto editado por Marta Kanashiro
Ingressar e permanecer na carreira científica representa uma jornada repleta de desafios para as mulheres negras, que enfrentam racismo, isolamento e falta de reconhecimento. O último levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) revela que, embora a presença de mulheres negras nas universidades tenha aumentado, elas ainda enfrentam microagressões, dificuldades financeiras e baixa representatividade, fatores que afetam seu senso de pertencimento e limitam seu acesso a posições de liderança, reforçando uma ciência que ainda exclui essas vozes.
Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, em conjunto com levantamentos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Andifes, confirmam que mulheres negras são o maior grupo entre os estudantes universitários negros no Brasil. Em 2019, um estudo com base na PNAD revelou que mulheres negras, incluindo as autodeclaradas pretas e pardas, representavam aproximadamente 27% dos estudantes no ensino superior público, enquanto os homens negros compunham cerca de 23%. Esses números refletem não apenas o impacto das políticas de ações afirmativas, mas também a busca crescente de mulheres negras por qualificação acadêmica, apesar dos desafios enfrentados para a permanência e progressão na universidade – peleja de pessoas não brancas como um todo.
Embora o número de mulheres negras na academia esteja em crescimento, elas continuam a enfrentar ambientes desafiadores e hostis ao seguirem carreira científica. Mesmo com o aumento da presença feminina em áreas de ciência no Brasil, a representatividade delas em cargos de liderança, como chefia de laboratórios e coordenação de pesquisas, ainda é inferior a dos homens nos centros de pesquisa e universidades.
Ana Carolina da Hora, conhecida como Nina da Hora, cientista da computação, pesquisadora e ativista brasileira, mestranda em Inteligência Artificial na Unicamp, onde se dedica a pesquisas sobre justiça algorítmica, compartilha essa vivência: “Para mim, foi particularmente difícil enfrentar essa invisibilização de mulheres negras na ciência e tecnologia. Esse processo nos faz pensar que não existimos nesses espaços, o que perpetua a mentalidade de que ‘somos as primeiras’. É desafiador e solitário romper com essa narrativa quando há poucas ou nenhuma referência para se espelhar, e isso contribui para uma sensação de isolamento.”
Para Nina, algumas estratégias são essenciais para transformar esse cenário, começando pela criação de políticas que facilitem não apenas o acesso de mulheres negras ao ensino superior, mas que garantam também sua permanência. “Esses espaços não estão preparados para sustentar e desenvolver nossas trajetórias”, afirma. Além disso, ela destaca a importância de incentivar pesquisas e projetos com impacto social, como o desenvolvimento de uma inteligência artificial (IA) decolonial e contra-hegemônica, que desafie estruturas racistas e ofereça alternativas inclusivas. “Ao aumentar o número de mulheres negras em posições como professoras titulares e pesquisadoras de alto nível, tanto nacional quanto internacionalmente, ampliamos as oportunidades e criamos novas referências”, conclui.
Professora e pesquisadora do Departamento de Física da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG) e a única mulher negra do departamento, a cientista Zélia Maria Da Costa Ludwig, convidou a plateia de uma palestra a imaginar uma pessoa fazendo pesquisa em um laboratório. “Como vocês imaginam essa pessoa? Bom, se vocês imaginaram um senhor branco de barba, vocês não erraram, pois isso é o que a maioria das pessoas pensa”, diz ela.
A imagem que Ludwig evoca traz à tona, por oposição, a importância do conceito de interseccionalidade, que ficou conhecido a partir do artigo Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color de Kimberlé Crenshaw. O conceito tem sido uma ferramenta fundamental também para entender as experiências das mulheres negras na ciência. Ele revela como o racismo e o sexismo atuam de forma combinada, criando barreiras específicas que afetam particularmente as mulheres negras. Essa análise permite abordar as dificuldades enfrentadas por elas de maneira mais abrangente, considerando tanto as questões de gênero quanto as de raça.
Enfrentamento permanente
As políticas de ações afirmativas implementadas nas últimas duas décadas desempenharam um papel significativo na inclusão de mulheres negras no ensino superior e, por consequência, nas carreiras científicas. Essas políticas abriram portas, mas ainda há um longo caminho a percorrer para garantir que as mulheres negras tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento e reconhecimento em suas áreas de atuação.
O projeto “Para Meninas Negras na Ciência” é uma iniciativa de Ludwig que busca reverter a baixa representatividade de mulheres negras no campo científico. Com foco na inclusão e na permanência, o projeto tem como objetivo abrir caminhos para que mais mulheres negras ocupem espaços na ciência. “A exclusão, as microagressões e o ceticismo em relação ao nosso potencial tornam o ambiente muitas vezes insustentável. Microagressões são comportamentos racistas, excludentes e sexistas que ocorrem em diversas situações. Muitas vezes, são atitudes intencionais, estruturais, feitas de propósito,” explica a professora Zélia Ludwig. “Essas ações atrasam nosso progresso, nos magoam profundamente e comprometem nossa saúde mental, pois ocorrem diariamente, em todos os tipos de ambiente. Precisamos começar pelo letramento, para entender que a culpa não é nossa. As pessoas devem entender que isso precisa ser combatido e denunciado. Devemos promover ações que visibilizem nosso trabalho, valorizando as contribuições de mulheres e jovens.”
Nessa mesma linha de ação, os coletivos negros formados a partir de conexões acadêmicas também desempenham um papel essencial. O Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras, criado em 2014 por Giovana Xavier, é um exemplo disso. Movido pelo desejo de reunir mulheres negras de diversas áreas, o grupo constrói uma rede feminista negra engajada na produção de conhecimento e promoção de ações voltadas para comunidades negras. Atuando como um espaço de resistência e suporte, o coletivo busca valorizar as experiências e histórias das mulheres negras, reforçando a importância de sua presença e de seus saberes no ambiente acadêmico.
Para discutir o legado e a importância da presença negra nas universidades, é crucial expandir o debate sobre ações afirmativas e reforçar a permanência de estudantes e pesquisadores. A reportagem Coletivos negros na universidade evidencia como a proliferação desses coletivos vem transformando o ambiente acadêmico, oferecendo suporte e criando redes de resistência para a comunidade negra. A ocupação de espaços historicamente marcados pela exclusão racial possibilita que estudantes não apenas permaneçam, mas compartilhem suas vivências e afirmem suas narrativas. No caso das mulheres negras na pós-graduação, a falta de representatividade e o isolamento são desafios que comprometem sua trajetória acadêmica, mas que são atenuados pelo apoio dos coletivos — cuja relevância, aliás, tem sido tema de estudos acadêmicos. Essas questões tensionam a permanência e revelam a importância de uma abordagem interseccional para assegurar um ambiente verdadeiramente inclusivo.
A presença de mulheres negras que se afirmam como cientistas na academia reflete a importância dos coletivos de apoio em universidades ainda hostis e pouco diversificadas. Em meio a essas trajetórias, os coletivos de mulheres negras tornam-se fundamentais para criar espaços de acolhimento e suporte que vão além da simples presença. A cientista social Flávia Rios destaca o papel crucial desses coletivos: “Os coletivos de mulheres negras nas universidades desempenham um importante papel no acolhimento e fortalecimento dessas alunas em um ambiente muitas vezes marcado pela falta de diversidade. A presença de pessoas negras em espaços majoritariamente brancos já contribui para tornar o ambiente menos hostil e mais acolhedor, pois quebra o padrão de exclusividade racial, facilitando o sentimento de pertencimento.”
Segundo Rios, esses espaços não apenas oferecem um senso de pertencimento, mas também proporcionam uma representatividade cultural, estética e discursiva essencial, especialmente em ambientes em que o padrão ainda é o de exclusividade racial. Ela ressalta que: “Essas mulheres trabalham para reduzir a competitividade, criando um ambiente solidário onde os obstáculos enfrentados não precisam ser os mesmos para quem está chegando.”
Além do acolhimento, os coletivos ajudam a valorizar o potencial das pessoas negras, oferecendo oportunidades que, segundo Rios, não estão sempre disponíveis. Em suas palavras, “o que falta muitas vezes não é uma habilidade, mas a oportunidade de desenvolver essas capacidades.” Esses espaços seguros são também locais de desabafo e troca sobre situações de discriminação e microviolências, além de serem redes de apoio prático e psicológico”.Para Rios, esse apoio e segurança proporcionados pelos coletivos “criam um ambiente onde a caminhada se torna menos solitária e as mulheres sabem que não estão enfrentando os desafios sozinhas.”
Esta reportagem faz parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Jornalismo Científico “Mulheres negras em movimento na universidade” desenvolvido por Poliana Martins e orientado por Marta Kanashiro, no âmbito do projeto de pesquisa “Comunicação, decolonialidade e interseccionalidade”.
Referências
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais Brasileiras. Pesquisa com dados de 2018. Disponível em: http://www.andifes.org.br. Acesso em: 2 nov. 2024.
OLIVEIRA, Ana Luiza Matos de; WELLE, Arthur. Análise dos dados da PNAD Contínua. FLACSO Brasil e Unicamp, 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 2 nov. 2024.
CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, v. 43, n. 6, 1991.
SILVA, Tatiana Dias. A inserção de mulheres negras no ensino superior: análise das políticas afirmativas e seus impactos. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br. Acesso em: 2 nov. 2024.