Por Poliana Martins
Texto editado por Marta Kanashiro
Desde a implementação de políticas de ações afirmativas impulsionadas pela Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, a criação de espaços para contar outras histórias se tornou essencial nas universidades brasileiras, instituições marcadas por práticas que reproduzem de forma sofisticada o racismo estrutural. A partir desse marco, algumas universidades deram os primeiros passos na inclusão efetiva de estudantes negros. A Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de Brasília (UnB) foram pioneiras ao adotarem cotas raciais nos cursos de graduação.
Com mais universidades aprovando autonomamente políticas de cotas, o partido Democratas questionou a implementação de cotas no vestibular da UnB em 2009, apresentando uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o sistema de cotas raciais da UnB. Em 2012, o STF decidiu, por unanimidade, que as cotas raciais adotadas pela UnB eram constitucionais, encerrando a ADPF 186 e confirmando a constitucionalidade das ações afirmativas em instituições públicas. A decisão abriu caminho para que outras universidades adotassem políticas semelhantes, fortalecendo as ações afirmativas na luta por inclusão.
Ainda em 2012, a publicação da Lei 12.711, a Lei de Cotas, estabeleceu a obrigatoriedade das ações afirmativas para o acesso ao ensino superior em instituições federais, como resultado da luta incansável dos movimentos negros e de outros movimentos sociais. A lei federal estimulou timidamente que outras universidades adotassem a mesma trajetória, mas intensificou o debate na sociedade para adoção de cotas, ainda que de forma tardia.
Esse é o caso da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que apenas em 2017 aprovou a adesão às cotas étnico raciais para os cursos de graduação, com implementação em 2019. A decisão ocorreu após uma intensa mobilização por parte da comunidade acadêmica, especialmente de estudantes que ocuparam a reitoria da universidade. A discussão das cotas na Unicamp não era uma discussão nova e nem a presença de movimentos estudantis organizados em coletivos negros, de estudantes que já frequentavam a universidade e isso foi intensificado durante o período de tensionamento para aprovação de cotas nessa instituição. Esse processo e a história de resistência por cotas raciais na Unicamp estão retratados no documentário Àprova, de Natasha Rodrigues, lançado em 2020.
Ao documentar a mobilização dos estudantes negros na luta pela aprovação das cotas raciais na Unicamp, o que mais marcou a diretora Natasha foi a intensidade e a entrega de estudantes envolvidos. “De onde eu estava, podia observar a dedicação e entrega dessas pessoas a esse propósito, alguns chegando a se destacar como lideranças de movimentos,” lembra. Mas, por trás da força e organização que emergiram desse movimento, surgem também as marcas pessoais e emocionais enfrentadas por quem liderou a resistência.
Durante as entrevistas realizadas para o filme, Natasha ouviu relatos de consequências sérias que foram enfrentadas. “Pessoas entrevistadas para o filme compartilharam consequências após a luta, decorrentes, principalmente, do estresse psicológico causado pela perseguição e punição por parte da universidade”, revelou Natasha. A luta pela inclusão racial na universidade não apenas exigiu um compromisso total de estudantes, mas também deixou cicatrizes de uma resistência intensa.
O geógrafo e antropólogo Alex Ratts aponta a década de 1970 como o marco inicial do movimento negro contemporâneo brasileiro e do que ele denomina de “movimento negro de base acadêmica”. Para o autor, esse movimento era caracterizado pela organização de professores, estudantes e, em alguns casos, técnicos administrativos, mas atualmente se manifesta em grupos como os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) – fundado com o objetivo de estudos das relações raciais – e nos Coletivos de Estudantes Negros.
Nessa conjuntura, os coletivos negros se destacavam por construir espaços de acolhimento, apoio e resistência. Para esses grupos, a presença na universidade não era um “favor” concedido pelas instituições, mas uma conquista que exigiria a constante desconstrução de barreiras históricas e culturais da branquitude. Para muitos estudantes, especialmente as mulheres negras, ocupar um espaço universitário iria além da inclusão individual: tratava-se de um ato coletivo de transformação. É o caso de várias integrantes de coletivos de mulheres negras, que viam na ocupação desses espaços acadêmicos uma forma de “enegrecer” a universidade, ampliando sua representação e questionando as bases da exclusão: “A adoção do sistema de cotas não é um favor concedido pela universidade; muito pelo contrário, nós cotistas, nós negras, é que estamos fazendo um favor à academia: levando nosso coração para dentro de uma máquina que tem operado pela exclusão, para que agora finalmente ela seja um espaço plural e vivo”, afirmou uma estudante e membro do coletivo Nosso Coletivo, da UnB.
O artigo Coletivos negros e novas identidades raciais, – escrito em 2020 por Flávia Rios, Antonio Sergio Guimarães Edilza Sotero, cientistas sociais e importantes expoentes do tema no país, relatam que os coletivos, ainda ligados a antigas formas de organização social, inspiraram-se nos coletivos negros feministas dos anos 1970 e 1980, caracterizados pela horizontalidade nas decisões e ausência de hierarquias, e promoveram discussões e ações políticas e intelectuais com ideais libertários e emancipatórios. A mobilização desses coletivos nas universidades, junto ao apoio de intelectuais, ativistas e políticos comprometidos com a igualdade racial, transformou as universidades em arenas de debate, impulsionando mudanças que ressoam até hoje no fortalecimento da democracia e na luta por equidade no ensino superior.
Alguns coletivos negros que surgiram durante a efervescência de debates por aprovações das cotas raciais passaram a ser reconhecidos por suas atuações e a integrar uma agenda compartilhada com outros coletivos. De acordo com a historiadora Lia Keller Ferreira da Costa, os coletivos negros desenvolveram estratégias de formação e resistência dentro das universidades, utilizando grupos de estudo, rodas de conversa e eventos temáticos. Segundo Costa, esses espaços formativos eram fundamentais para promover discussões de interesse da população negra e desafiar as estruturas hegemônicas de conhecimento.
Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp há quase 11 anos, Mário Medeiros acompanhou de perto esse movimento e vê nos coletivos uma força transformadora. “Essas articulações, especialmente com a liderança das mulheres negras, têm sido fundamentais para modificar a agenda de pesquisa da universidade e promover uma diversidade científica que antes não se via,” afirma. “A presença desses coletivos trouxe novas pautas que impactam diretamente nossa atuação como docentes. As ações afirmativas e o protagonismo dos estudantes negros não só ampliaram o espaço de diálogo sobre temas raciais e de gênero, mas também influenciaram diretamente as pesquisas que conduzimos e os materiais que adotamos.”
Medeiros ressalta que, para além da presença, os estudantes atuam como “grupo de pressão” frente a resistências internas, além de serem interlocutores valiosos para docentes que buscam construir um ensino e uma pesquisa mais inclusivos. “Os coletivos são espaços de formação que reverberam em todos os âmbitos acadêmicos, desafiando o que é tradicional e incluindo novas perspectivas no saber universitário,” completa.
Luta articulada e transformações coletivas
O ingresso de pessoas negras nas universidades públicas brasileiras e a constituição de coletivos negros nesses espaços é um tema que tem ganhado amplitude nos últimos 15 anos a partir de debates e enfrentamentos acirrados. Nesse período, as discussões sobre cotas raciais na sociedade brasileira ocuparam espaço na imprensa, dividiram e polarizaram opiniões. Enquanto defensores das cotas destacavam a importância histórica e social dessas políticas, outros alimentavam um discurso meritocrático que ignorava as desigualdades estruturais. Esse cenário de polarização estimulou o crescimento de coletivos de estudantes negros nas universidades, que passaram a articular suas demandas e a resistir ao racismo institucional.
O intenso processo de mobilização e negociação que ocorreu em 2016 na Unicamp resultou em articulações fortalecidas para a luta por direitos. Em 2020, o projeto “Coletivos Negros da Unicamp – levantamento e produção de conhecimento” mapeou a presença de 12 coletivos negros na universidade. O projeto, idealizado pela educadora e atual diretora da Faculdade de Educação Débora Jeffrey, contatou os coletivos negros da Unicamp por meio de pesquisas com estudantes da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial (CADER) e dos próprios coletivos, visando qualificar as políticas afirmativas na universidade. Essa colaboração permitiu ações importantes, como a criação da Comissão de Averiguação do Vestibular (CAVU) para processos de heteroidentificação, o festival UnicampAfro e o Encontro de Coletivos Negros, que levou à fundação do Aquilomba Fórum, uma organização que unifica os coletivos para fortalecer uma agenda política comum.
“Com a implementação das cotas raciais em 2019, houve um aumento expressivo de coletivos negros ativos na Unicamp,” comenta Guilherme Domingos, responsável pelo levantamento dos coletivos. “No início, tínhamos o Núcleo de Consciência Negra (NCN), que completou 10 anos em 2022 e liderou a greve de 2016 com pautas como a implementação de cotas e o vestibular indígena.” Ele acrescenta que “com a entrada de mais estudantes negros, o número de coletivos passou de um para 12 em 2020, incluindo pessoas de diferentes áreas do conhecimento, como as engenharias, física, medicina e educação.” Domingos também observa que “esses coletivos geralmente se organizam em frentes de trabalho, como comunicação, formação e atividades culturais,” e destaca que “as atividades culturais se intensificaram, criando um espaço onde a identidade e a diversidade dos estudantes negros são afirmadas e celebradas.”. Este é o caso do Unicamp Afro (https://www.ggbs.gr.unicamp.br/unicamp_afro/ que ocorreu em todo o mês de novembro em comemoração pelo mês da consciência negra.
Os coletivos negros mapeados da Unicamp incluem o Núcleo de Consciência Negra da Unicamp (NCN), Coletivo Quilombo Ubuntu, Grupo de Estudantes Negres no EaD (GENE), Coletivo Arvoredo Negro (FE), Coletivo Katemari Rosa (IFGW), Coletivo União Preta (IQ), Coletivo A Voz do Morro (Feagri), Coletivo Engenho Negro, Coletivo Conexão Preta (Limeira), Capoeira Guanabara, Quilombo Nzinga e a Pastoral Afro-Brasileira (Igreja Católica).
A estudante de Ciências Sociais integrante do Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP (NCN), Isabella Aparecida destaca o surgimento do NCN e sua conexão com a Frente Pró-Cotas, uma mobilização que começou em 2011 e 2012, composta principalmente por estudantes negros que já discutiam a implementação das cotas raciais na Unicamp, que na época era uma das últimas universidades sem essa política. “Os estudantes da Frente Pró-Cotas se reuniam nas mesas externas do Instituto de Estudos da Linguagem, e, aos poucos, o NCN foi tomando forma. Desde o início, uma parte essencial do núcleo foi puxar pela memória, trocando histórias e registrando os passos dos que vieram antes. É uma forma de valorizar quem abriu caminho na luta por representatividade e pela aprovação das cotas,” afirma Isabella.
Sobre a agenda atual do NCN, ela explica que hoje vai muito além da permanência estudantil, embora ela seja crucial. “Lutamos por condições de permanência dignas, por saúde mental, por alimentação nos fins de semana e pelo acolhimento de estudantes negros em um ambiente onde, muitas vezes, nos sentimos deslocados.” Ela também menciona vitórias significativas, como a criação do sistema de atendimento e encaminhamento especializado em casos de racismo (SAER) e o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UNICAMP.
Isabella também destacou a atuação contínua do NCN nas redes sociais, em eventos e assembleias dentro da Unicamp, usando esses espaços para divulgar atividades, além de conectar e estabelecer parcerias com espaços externos à universidade. Esse é o caso da parceria com a Casa de Cultura Tainã em Campinas. “Hoje é aonde fazemos formações políticas, culturais e nos reconectamos com a história do movimento negro da cidade. Assim, reforçamos o nosso objetivo de tornar a universidade mais inclusiva, não apenas para a comunidade acadêmica, mas também para a comunidade negra da cidade”.
Sobre os participantes, Isabella esclarece que o NCN, embora composto por estudantes de várias áreas e não institucionalizado formalmente, é um espaço que cresce com a diversidade de alunos cotistas. “Com a entrada de mais alunos cotistas, temos hoje um núcleo muito mais diverso, com pessoas de várias áreas, mas todos com um propósito em comum: criar e fortalecer a nossa presença e luta dentro da universidade.” Entre as conquistas importantes, Isabella destaca que a criação do NEAB, que conta com envolvimento de docentes e funcionários da Faculdade de Educação da Unicamp dá suporte acadêmico e institucional aos estudantes negros, promovendo debates e valorizando a história e a cultura negras nesse espaço.
Embora os coletivos negros sejam centrais para esta análise, é fundamental notar a atuação das mulheres negras. As cientistas sociais Flávia Rios, Olivia Perez e Arlene Ricoldi destacam que as novas gerações ativistas articulam, de forma mais intensa, a intersecção entre gênero, raça e sexualidade, tanto em coletivos de periferia quanto universitários, ou mesmo em organizações tradicionais dos movimentos sociais, promovendo uma mobilização mais ampla e inclusiva.
Desafios e mudanças no horizonte
A gestora e servidora pública da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Janaíze Neves, observa que mulheres negras na universidade, especialmente na pós-graduação, enfrentam desafios que vão além do contexto acadêmico, como a escassez de representatividade e o sentimento de isolamento. Essas dificuldades impactam diretamente a permanência dessas alunas e revelam a importância de coletivos que funcionam como redes de apoio e espaços de resistência, ajudando a atenuar esses obstáculos e fortalecer as trajetórias acadêmicas de mulheres negras. A presença e atuação dos coletivos de mulheres negras nas universidades evoca interesse de pesquisa. Estudos sobre o impacto desses grupos tanto na vida acadêmica quanto na produção de conhecimento têm sido publicados em artigos científicos, indicando os rumos de transformação permanente que o racismo estrutural coloca em sobreposição a outros marcadores sociais da diferença.
A resistência racial nas universidades não se limita a um único grupo. Movimentos de mulheres indígenas e quilombolas também estão trazendo consigo demandas específicas e promovendo a valorização de suas culturas e saberes tradicionais e se inspiram em movimentos históricos como Criola e Geledés, afinal nossos passos vêm de longe. Fundada por mulheres negras como Jurema Werneck e Lúcia Xavier, Criola é uma organização pioneira na defesa dos direitos das mulheres negras, com uma forte atuação em questões de saúde, educação e direitos humanos. Por sua vez, Geledés, fundado por dez mulheres negras, incluindo Sueli Carneiro, tem sido uma referência não só para o feminismo negro, mas também para o resgate de epistemologias africanas que desafiam a produção de conhecimento eurocêntrica nas universidades.
Conceição Evaristo, amplamente conhecida por sua trajetória como escritora, introduz a noção de escrevivência, que ela descreve como “a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil” (Evaristo, 2007). Nos espaços universitários, os coletivos negros, onde mulheres negras têm uma presença significativa, desempenham um papel essencial na transformação desses ambientes. Eles possibilitam que espaços historicamente marcados pela exclusão de corpos negros sejam agora ocupados, onde estudantes possam permanecer e compartilhar suas histórias, contribuindo para uma renovação das narrativas acadêmicas e culturais.
Esta reportagem faz parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Jornalismo Científico “Mulheres negras em movimento na universidade” desenvolvido por Poliana Martins e orientado por Marta Kanashiro, no âmbito do projeto de pesquisa “Comunicação, decolonialidade e interseccionalidade”.
Referências
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