Entrevista com Mônica Sacramento

Por Poliana Mendes Martins

Texto editado por Marta Kanashiro

Mônica Sacramento por Poliana Martins. Rio de Janeiro, 2024.

Mônica Sacramento é coordenadora programática na ONG Criola, uma organização não-governamental criada em 1992 que atua na defesa e promoção de direitos de mulheres negras cis e trans e que se tornou uma referência na luta por esses direitos. Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Monica desenvolveu pesquisas voltadas para ações afirmativas e para o impacto delas na consciência racial dos estudantes. Atualmente, Mônica trabalha com a formação política de mulheres negras na luta contra o racismo heterocispatriarcal e transformações de suas comunidades.

Como você avalia o impacto das políticas de ações afirmativas na inclusão de estudantes negros nas universidades públicas nas últimas duas décadas?

Eu acho que é inegável as mudanças que alcançamos nesse período de 20, 30 anos com as políticas de ações afirmativas. Isso não é apenas uma conquista do movimento de mulheres negras, mas também é fruto de uma luta constante do movimento negro como um todo. Se pensarmos, por exemplo, nas reivindicações das domésticas no pós-abolição, já se falava da emancipação via educação. A educação é, de certa forma, um dos sistemas pelos quais essa desigualdade é mantida, porque ela limita o acesso à cidadania plena e compromete a democracia ao restringir o acesso ao conhecimento.

Vemos que as mulheres negras, ao longo dos séculos, foram notáveis pensadoras, mas eram exceções em um sistema que não lhes dava oportunidades. As ações afirmativas, embora tenham trazido avanços, ainda nos mostram que a universidade continua sendo um espaço de violência racial. Mesmo com 20 anos de implementação das cotas, os estudantes negros ainda enfrentam manifestações de racismo e exclusão.

O que precisamos entender é que as ações afirmativas não são um fim em si mesmas, mas uma reparação de uma situação extrema de desigualdade. Ainda faltam programas efetivos de permanência para esses estudantes, e o Brasil continua em dívida com eles. Muitos ingressam na universidade através das cotas, mas não conseguem se manter lá devido à falta de apoio, e isso afeta principalmente as mulheres negras, que enfrentam uma sobrecarga ainda maior.

Além disso, a gente precisa destacar que as mulheres negras têm apostado em formas de resistência criadas coletivamente, não só dentro da universidade, mas em movimentos sociais. Elas criam metodologias, cursos, rodas de conversa, e formas de troca de conhecimento que não se limitam ao ambiente acadêmico tradicional. Isso é fascinante porque é uma forma de romper com a injustiça que o sistema impõe. Elas operam de maneira sagaz, movendo a base da pirâmide social sem necessariamente estar associadas formalmente a grandes movimentos.

O que está em jogo aqui é a defesa de direitos humanos, a melhoria das comunidades e a apropriação de linguagens para reivindicar justiça. Essas mulheres têm mostrado de forma persistente como é possível desafiar um sistema que oprime e exclui. É exatamente essa capacidade de organização e ação coletiva que nos permite ver os avanços que já foram conquistados, mesmo diante de tantos desafios.

Eu acho que tivemos alguns avanços significativos. Maior quantidade de pessoas negras e diversas, vindas de diferentes regiões e com diferentes realidades e resistências, trouxe mudanças para essas instituições. Esses grupos de estudantes negros representam interesses políticos que agora são discutidos dentro da universidade, o que antes não acontecia. É como uma analogia com o Estado Nacional: na universidade, assim como no Estado, existem disputas por reconhecimento, financiamento e poder, que agora incluem esses sujeitos políticos.

Mas também precisamos reconhecer que, ao mesmo tempo em que essas pessoas entram na universidade, o ambiente ainda é muito marcado por racismo estrutural. Isso não muda sem resistência. A inclusão de estudantes negros enriquece o ambiente, que antes era majoritariamente branco, masculino e heteronormativo, encapsulado numa perspectiva colonial. Porém, essa inclusão não acontece sem embates, e não se garante uma permanência tranquila. As políticas afirmativas são importantes, mas ainda faltam programas de permanência eficazes.

Mesmo assim, eu diria que a universidade muda vidas. E não estou falando apenas de conseguir um emprego melhor ou ganhar mais, mas de um lugar de socialização política. A universidade oferece a possibilidade de ampliação das perspectivas dos indivíduos, que passam a ter mais autonomia e acesso a novos conhecimentos. Não significa que todos que entram na universidade vão sair ativistas, mas a experiência em si é transformadora. Quem é conservador pode continuar conservador, mas a ampliação das experiências e perspectivas é algo que todos vivenciam de alguma forma.

Como você avalia o crescimento dos coletivos de mulheres negras nas universidades? Na sua opinião, esses movimentos têm ajudado a tornar as trajetórias acadêmicas de estudantes negros menos hostis?

Com as ações afirmativas, e com uma perspectiva talvez diferente das organizações clássicas como sindicatos e associações, a gente vê o surgimento de novas formas de organização social. Essas novas formas incluem os coletivos, que oferecem um espaço de acolhimento, mas também dialogam com a arte, a cultura e as discussões sobre diferentes formas de opressão. Esses coletivos são diversos, como os afro-trans, que abordam questões interseccionais, como raça, gênero e sexualidade. Eles trazem à tona as camadas de opressão que afetam tanto os indivíduos quanto as coletividades. A partir disso, nos últimos 20 anos, vimos um aumento significativo no número de jovens se organizando em hubs, núcleos de hip-hop e outros formatos, abordando questões educacionais, culturais e políticas.

Eu vejo os coletivos de mulheres negras nas universidades como uma extensão das lutas que Criola e outros movimentos vêm travando há décadas. Esses coletivos trazem uma nova perspectiva de organização, que mistura arte, cultura e uma abordagem interseccional, abordando raça, gênero e sexualidade. Eles têm um papel muito importante na acolhida e formação crítica dos estudantes, criando espaços onde podem se expressar, discutir suas questões e resistir ao racismo.

O que acho fascinante é que essas pessoas estão se apropriando das questões de identidade, gênero, orientação sexual e raça para resistir e se fortalecer. Esse é um fenômeno social muito importante nas últimas duas décadas. E essa mobilização não está limitada apenas às universidades. As pessoas que ingressam na universidade estão envolvidas em diferentes esferas: elas participam de festas, movimentos sociais, coletivos e vão se organizando de várias maneiras, construindo um movimento que vai além da academia.

Muito importante você ter mencionado a abordagem interseccional. Como você tem percebido a articulação de marcadores sociais como raça/cor, gênero, sexualidade, classe e geração pelos coletivos negros nas suas mobilizações dentro das universidades?

Os coletivos trabalham de forma muito interseccional, unindo questões de raça, gênero, sexualidade e classe. Eles promovem discussões sobre essas diferentes formas de opressão e sobre como essas interseccionalidades impactam a vida das mulheres negras. É um movimento que faz parte da construção de uma nova forma de fazer política, uma política que envolve acolhimento e resistência, seja pela arte, pela educação ou pelas práticas culturais.

Se pensarmos, por exemplo, em Criola, que não nasceu dentro da universidade, mas sim de mulheres já engajadas no movimento de mulheres negras, podemos ver um paralelo. Criola tem 32 anos, e suas fundadoras, na época jovens, já tinham formação universitária, muitas com mestrado e doutorado. Hoje, vemos uma nova geração de mulheres negras que entraram nas universidades por meio de políticas de cotas, enfrentando um contexto mais fértil, politicamente, com a criação de secretarias de juventude e ações afirmativas, principalmente a partir de 2003, no governo Lula.

Esses coletivos, assim como o movimento Criola, integram diferentes gerações e se consolidaram nos últimos anos. As mulheres que antes eram jovens lideranças agora têm 30, 40 anos e estão ocupando posições de liderança em ONGs e organizações de financiamento. Elas trouxeram uma nova perspectiva e seguiram o fluxo de organização política, ancorado no legado de mulheres negras que vieram antes, como as de Criola e Geledés. Os coletivos desempenham um papel fundamental não apenas no acolhimento de estudantes negros, mas também na formação crítica. Eles transformam uma experiência que poderia ser extremamente hostil em um espaço de resistência e conscientização. Não é que as ações afirmativas tenham aumentado o conflito nas universidades — o que aumenta o conflito é a presença do racismo. E a universidade, sendo um espaço de privilégio historicamente branco e elitista, amplifica isso. Mas os coletivos investem em formação política, ampliam a consciência racial e instrumentalizam as mulheres para reivindicar seus direitos.

Eles são peças fundamentais para revitalizar o espaço cívico nacional, possibilitando maior representatividade de pessoas negras e mulheres negras em cargos de poder. Com essa presença e agência política, as mulheres negras podem transformar os domínios de poder e criar mudanças significativas, tanto no nível local quanto internacional.

E com relação à inclusão de saberes afrodiaspóricos, quais transformações você nota nas universidades com a atuação desses coletivos?

Eu vejo que, com a atuação desses coletivos, houve avanços na inclusão dos saberes afrodiaspóricos nas universidades. O que acontece é que esses coletivos, de alguma forma, forçam a universidade a lidar com uma nova realidade. Os estudantes negros, organizados em coletivos, trazem demandas específicas que dizem respeito às suas experiências e à necessidade de validar o pensamento afrodiaspórico dentro da academia.

Criola, por exemplo, tem se engajado em colaborações com núcleos de pesquisa e com esses coletivos para legitimar esses saberes. Temos produzido materiais, promovido debates e colaborado com essas iniciativas dentro da universidade para assegurar que os conhecimentos afrodiaspóricos não fiquem apenas na margem, mas que sejam reconhecidos como parte integral do acervo acadêmico. Contudo, apesar desses avanços, ainda falta um reconhecimento institucional mais amplo. Existe uma resistência das estruturas acadêmicas em aceitar esses saberes como válidos e legítimos.

Então, quando a gente pensa no quanto ainda falta para que essas vozes sejam realmente ouvidas, percebemos que ainda temos muito a fazer. O racismo estrutural nas universidades continua sendo um desafio, e os saberes afrodiaspóricos, que vêm dessas experiências de coletivos de mulheres negras, ainda lutam para ocupar um lugar de respeito e legitimidade no espaço acadêmico.

Quais são os maiores obstáculos para que a produção científica de mulheres negras seja devidamente reconhecida?

O principal obstáculo é a invisibilidade da produção científica das mulheres negras. Ainda há uma tendência de associar o conhecimento produzido por nós a questões culturais ou de experiência, em vez de reconhecê-lo como ciência. As mulheres negras enfrentam muitos desafios para ter suas pesquisas reconhecidas, e há uma falta de apoio institucional que dificulta a permanência delas na academia e a disseminação de seus trabalhos.

A primeira coisa que precisamos problematizar é o conceito de ciência. Quando falamos de mulheres negras e ciência, normalmente o prestígio é dado às ciências exatas, às ciências da saúde, às chamadas “ciências duras.” Existe essa hierarquia que coloca as ciências humanas como algo menos importante, mas isso não é verdade. Nas ciências humanas, a gente produz um conhecimento que captura o cotidiano, e isso exige muitas habilidades. É ciência também.

Por exemplo, como é que a gente pode dizer que Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro ou Jurema Werneck não produzem ciência? Seus textos, suas reflexões, tudo isso é ciência. Mulheres negras têm produzido conhecimento por meio de diversas formas, incluindo a poesia e a música. Conceição Evaristo, com seu conceito de “escrevivência,” também está produzindo ciência. Então, precisamos ampliar o conceito de ciência e entender que ele não se restringe ao que é feito na universidade ou por pessoas com certos títulos acadêmicos. Mulheres negras têm muito a contribuir para esse campo com suas experiências e saberes.

Outro ponto importante é o conceito de divulgação científica. Muitas vezes, a divulgação científica é vista como algo exclusivo da academia, mas mulheres negras, como as que estão em Criola, têm criado formas alternativas de divulgar ciência. O próprio site de Criola, o portal Geledés, e a produção de livros são exemplos disso. Essas são formas de divulgação de ciência que ocupam as brechas deixadas pela academia.

No entanto, quando olhamos para as áreas de mais prestígio social, como as ciências exatas e a tecnologia, ainda vemos uma insuficiência de mulheres negras. Quantas mulheres negras cientistas, engenheiras ou tecnólogas nós conhecemos? Existem poucas, e isso é reflexo do racismo estrutural que impede o acesso a essas carreiras. Muitas vezes, a escolha de não seguir uma carreira nas ciências exatas está ligada à biografia prática dessas mulheres, que enfrentam desafios econômicos e sociais que as fazem optar por caminhos diferentes.

Por isso, os coletivos de mulheres negras e organizações como Criola têm investido para que meninas e jovens negras entrem nessas áreas. O racismo é uma ideologia sofisticada que perpetua desigualdades de muitas formas, e um dos grandes desafios é romper com essas barreiras nas ciências. Precisamos, cada vez mais, afirmar que mulheres negras produzem ciência, e que o conhecimento delas é fundamental para transformar a sociedade.

Como a atuação dos coletivos negros tem fortalecido a presença e a voz das mulheres negras nos espaços acadêmicos, e quais estratégias têm sido utilizadas, com o apoio de Criola, para promover a permanência e o sucesso dessas estudantes?

Com certeza, a atuação dos coletivos negros tem sido fundamental para fortalecer não apenas a presença, mas também a voz das mulheres negras nas universidades. Criola tem um papel importante nesse processo, apoiando os coletivos através de formações políticas e produção de conhecimento. Organizações como Criola podem continuar a apoiar e fortalecer os coletivos de mulheres negras no ambiente acadêmico, continuar apoiando coletivos, oferecendo formações políticas, produzindo materiais e criando parcerias com universidades e outros núcleos de pesquisa. Podemos também ajudar a fortalecer as redes entre os coletivos, garantindo que eles tenham o apoio necessário para enfrentar os desafios que surgem dentro do ambiente acadêmico. A organização trabalha em parceria com núcleos de pesquisa, como o Nirema da PUC-Rio, e também com centros de referência, como os torreiros coordenados por Babá Gustavo no Recôncavo Baiano. Essas colaborações são voltadas tanto para a produção de estudos quanto para o suporte aos coletivos. Além disso, Criola tem investido na formação de mulheres negras, não apenas dentro da universidade, mas também em outros espaços de produção de conhecimento, como terreiros e outros ambientes tradicionais de saber.

Quais os trabalhos que Criola realizou recentemente que você considera relevante divulgar, especialmente em termos de apoio aos coletivos de mulheres negras?

Um dos projetos mais recentes de Criola foi uma pesquisa em parceria com a Gênero e Número, que aborda a violência racial e de gênero. Essa pesquisa revelou que estamos lidando com uma verdadeira epidemia de violência contra mulheres negras no Brasil, e é um trabalho que nos ajuda a instrumentalizar as mulheres para lutarem por seus direitos. Além disso, temos produzido materiais e formações para apoiar os coletivos e fortalecer essas redes de mulheres negras, tanto dentro quanto fora da academia.

Outro projeto relevante que gostaria de destacar é a parceria de Criola com o Wiki Movimento Brasil para criar mais verbetes sobre mulheres negras na Wikipédia. Realizamos uma “editatona” em 2024, nos dias 16 e 23 de agosto, uma maratona de edições com o objetivo de aumentar a visibilidade e a quantidade de informações qualificadas sobre mulheres negras na internet. Essa iniciativa faz parte do Projeto de Aprimoramento das Habilidades no Uso de Novas Tecnologias para Construção de Meios para Equidade Racial, apoiado pela Fundação Wikimedia, que visa fortalecer a voz de mulheres negras cis e trans no campo das novas tecnologias e do conhecimento antirracista.

Além disso, em 2024 lançamos a série “Negras na História”, lançada em 2024 como parte do #JulhodasPretas. Nessa série, contamos histórias de mulheres negras de todo o Brasil, narradas por nanoinfluenciadoras negras. A ideia é dar visibilidade às trajetórias de mulheres que são inspirações de luta contra o racismo patriarcal e cis heteronormativo, promovendo suas histórias como exemplos de resistência e força nas suas comunidades. Esse projeto é uma forma de fortalecer e ampliar as vozes dessas mulheres, exaltando suas narrativas.

Quais recomendações você daria para as jovens lideranças negras que estão emergindo dentro das universidades?

Eu diria que essas jovens lideranças precisam aprender com as gerações mais velhas de mulheres negras. Não se encapsulem nas suas gerações, dialoguem com as mais velhas. Essas mulheres já passaram por muitas lutas e têm muito a ensinar. É importante também que elas continuem construindo conhecimento coletivo e valorizando a formação política, que é essencial para transformar as realidades que enfrentamos. Paralelamente, é importante ter em vista que, quanto mais as mulheres negras se posicionam publicamente, mais ataques elas sofrem, e que, por isso, estratégias de segurança são fundamentais para as ativistas.

Há algo importante sobre o seu trabalho e a relação com os coletivos que não foi abordado e que você gostaria de acrescentar?

Eu gostaria de reforçar a importância da troca de saberes entre diferentes gerações de mulheres negras. É fundamental que as jovens possam dialogar com as mais velhas e aprender com as trajetórias dessas mulheres. Criola está sempre envolvida em construir materiais que instrumentalizem essas mulheres e fortaleçam suas lutas. O papel dos coletivos de mulheres negras é essencial para revitalizar os espaços acadêmicos e transformar a sociedade.

Esta entrevista faz parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Jornalismo Científico “Mulheres negras em movimento na universidade” desenvolvido por Poliana Martins e orientado por Marta Kanashiro, no âmbito do projeto de pesquisa “Comunicação, decolonialidade e interseccionalidade”.