Por Poliana Martins
Texto editado por Marta Kanashiro
O documentário Quem é essa mulher? (2024), dirigido por Mariana Jaspe, partiu incialmente da ideia de visibilizar histórias de duas mulheres negras separadas pelo tempo, mas conectadas por suas trajetórias e identidades. Vidas que se entrelaçam no filme diluindo não apenas essa distância temporal, mas outras fronteiras como aquela que normalmente separa o objeto e tema do documentário de quem realiza a pesquisa. É por meio da oralidade e dos encontros que essa diluição se concretiza apontando um jogo entre memória, pesquisa e ancestralidade.
Após aprovar financiamento público para o projeto audiovisual que contasse a história de Maria Odília Teixeira, a primeira médica negra do Brasil (de Salvador, Bahia), a produtora Fernanda Bezerra, da Maré Produções, convidou Mariana Jaspe para fazer o roteiro e direção do filme, que já contava com a pesquisa de Mayara Priscila de Jesus.
A proposta inicial do filme, segundo Mariana, era focar nas histórias de um coletivo de estudantes negros da Faculdade de Medicina da Bahia, discutindo as dificuldades enfrentadas por eles em um ambiente historicamente dominado por pessoas brancas. Mas Mariana, embora considerasse o tema urgente, queria contar também outras histórias. Então, o que a interessou foi a própria trajetória de Mayara e sua pesquisa sobre Maria Odília. Mayara soube da existência da médica quando trabalhava na biblioteca da faculdade Universidade Federal da Bahia (UFBa). Viu uma foto antiga de mulheres pioneiras na medicina e encontrou a imagem da médica. Aquilo despertou sua curiosidade, e ela decidiu pesquisar mais a respeito. A partir desse fato, Mariana entendeu que o filme não era só sobre Odília, mas também sobre a busca de Mayara, sobre o processo que a levou a encontrar essa figura histórica. A escolha de dar protagonismo à Mayara veio disso, de mostrar não apenas quem foi Maria Odília, mas também a importância de quem conta essa história e de como isso entrelaça diferentes tempos.
No projeto documental, embora Maria Odília seja o ponto de partida, o filme não se limita a centralizar a importância histórica da primeira médica negra, que vem de origem abastada com acesso à educação e reconhecimento, de maneira que a história de Odília não é uma narrativa de superação. Nesse sentido, Quem é essa mulher? se propõe a mostrar particularidades de classe, raça e gênero como uma experiência que pode ser diversa. Com um roteiro que dá destaque para a relação de Mayara com a própria busca por Odília, a narrativa se apresenta mais intimista.
A estética do filme não espetaculariza os espaços e pessoas retratadas. A direção de fotografia, assinada por Fernando Marron, opta por uma abordagem que capta os ambientes sem recorrer ao pitoresco. A Bahia é retratada com sobriedade, como um cenário que acolhe e, ao mesmo tempo, desafia as mulheres que ali vivem. Isso é importante para manter o foco nas relações entre as personagens e na busca de Mayara, sem que a paisagem ou o contexto histórico roubem o protagonismo.
A montagem de Ricardo Gomes complementa essa abordagem, criando uma narrativa que se desenvolve aos poucos, refletindo o próprio processo de descoberta de Mayara. As cenas transitam entre momentos de rememoração e de investigação, mas há sempre um senso de progresso na busca pela história de Odília. O filme evita respostas fáceis, deixando em aberto muitas questões sobre quem foi Maria Odília e o que significou ser a primeira médica negra no Brasil.
Outro aspecto que se destaca no filme é a escolha de não apenas entrevistar as pessoas envolvidas na pesquisa de Mayara, mas de colocá-las em interação. Em vez de simples depoimentos frente à câmera, o filme captura momentos íntimos de conversas entre Mayara e sua mãe, ou entre ela e amigos, tornando o processo de rememoração algo coletivo. Essas cenas são essenciais, pois humanizam as personagens e mostram como a história de Odília se entrelaça com a vida de Mayara e de tantas outras mulheres negras.
O filme também lida de maneira sutil com as ausências e as lacunas da história. Algumas questões históricas permanecem abertas. Nesse sentido, o filme parece vislumbrar a técnica da fabulação crítica, como proposto por Saidiya Hartman. A fabulação aqui não inventa fatos, mas usa os fragmentos disponíveis para reconstruir a vida de Odília, dando-lhe a presença que a história oficial lhe negou. Esse método reconhece que as histórias das figuras negras, frequentemente apagadas ou distorcidas pelos arquivos tradicionais, podem ser recuperadas de formas que vão além da documentação estrita, e a imaginação crítica se torna uma ferramenta para visibilizar essas trajetórias.
Quem é essa mulher? é um documentário que vai além de uma biografia no singular, para tratá-la no plural que emerge do encontro e de uma retomada da história e da memória que se quer coletiva. Um filme sobre a busca por memória, sobre o papel de uma historiadora negra e sobre as muitas formas de visibilizar histórias que por muito tempo ficaram à margem. Ao dar protagonismo a Mayara, o filme não só resgata a importância de Maria Odília, extrapola a pesquisa acadêmica realizada de uma mulher negra e sobre uma mulher negra, o que concretiza as transformações ocorridas nas universidades brasileiras nos últimos dez anos por conta das ações afirmativas estimuladas por movimentos sociais negros e fortalecidas por coletivos negros universitários. O filme resgata a história de Maria Odília e dá importância a pesquisadoras que, como Mayara, estão transformando o cenário acadêmico a partir da divulgação de pesquisas.
O filme foi lançado na Mostra Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba e será exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em dezembro deste ano, além de circular em outras mostras nacionais.
Esta resenha faz parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Jornalismo Científico “Mulheres negras em movimento na universidade” desenvolvido por Poliana Martins e orientado por Marta Kanashiro, no âmbito do projeto de pesquisa “Comunicação, decolonialidade e interseccionalidade”.