O controverso Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado entre Estados Unidos e Brasil regulamenta a utilização do Centro Espacial de Alcântara. Este acordo é somente uma entre as muitas disputas nas quais a base está envolvida. Localizada a 32 km de São Luís, no Maranhão, o espaçoporto foi criado durante o governo militar em um território quilombola, forçando o deslocamento de centenas de famílias.
Por Diana Zatz Mussi
A tecnologia espacial está profundamente integrada ao cotidiano e às atividades econômicas, dominando sistemas de informação, comunicação e geolocalização. Torna-se, portanto, um setor estratégico para o desenvolvimento socioeconômico nacional e, nesse sentido, a localização geográfica da base de Alcântara, a 2º18′ sul da linha do Equador, é frequentemente citada como privilegiada por ser uma latitude na qual a velocidade de rotação da Terra é maior, o que pode significar uma economia de cerca de 30% de combustível no lançamento de foguetes.
Inaugurado em 1983, não é o único espaçoporto do Brasil, nem foi o primeiro. O Centro de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, foi inaugurado anos antes, em 1965. Contudo, a proximidade com o centro urbano de Natal inviabiliza lançamentos de foguetes de grande porte. Desta forma, a Base de Alcântara é a única de onde é possível lançar foguetes capazes de colocar objetos em órbita, como satélites.
“A base de Alcântara é a terceira perna do programa espacial brasileiro”, explica Paulo Escada, jornalista do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) e doutor em ciência política pela USP. Na década de 1980 estava em vigor a Missão Espacial Completa Brasileira, um programa federal com o objetivo de fomentar o desenvolvimento de tecnologia espacial de forma autônoma, ou seja, o Brasil deveria dominar todas as etapas para lançamento e manutenção de satélites no espaço sideral.
Escada trabalhava no Inpe e teve acesso às atas de reunião da Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (Cobae), informações até então secretas e inacessíveis, que utilizou em seu mestrado sobre o Programa Espacial Brasileiro, um dos primeiros trabalhos sistemáticos sobre o assunto.
“O programa tinha que ter três componentes: o desenvolvimento de satélites, que ficou a cargo do Inpe; o desenvolvimento de um foguete de porte grande para lançar esses satélites; e uma base capacitada, com pesquisa e gente especializada, e isso ficou a cargo dos militares”. [Veja mais em reportagem de Escada para a ComCiência]. Os militares responsáveis pela construção e gerenciamento da base de Alcântara e do veículo lançador de satélites (VLS) eram do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, uma organização militar e instituição científica e tecnológica ligada à Aeronáutica.
A base de Alcântara já estava em funcionamento e, no entanto, o desenvolvimento do veículo lançador passava por muitos desafios. Um VLS é, basicamente, um foguete: “estamos falando de tecnologias sensíveis, um foguete é uma arma, um míssil, basta trocar o que vai na ponta” explica Escada. Por isso há o esforço de alguns países, principalmente os Estados Unidos, para restringir a transferência desses conhecimentos e tecnologias que podem ter utilização militar para outras nações. “Os EUA não vendem uma série de componentes para o Brasil, isso é público”, diz Escada, – e é também fato que essas restrições foram cruciais para o insucesso da finalização do foguete brasileiro.
Em 2003, após duas tentativas malsucedidas, o primeiro foguete nacional, o VLS 1, incendiou-se na base de Alcântara, três dias antes do lançamento. O que ficou conhecido como tragédia de Alcântara resultou na morte de 21 engenheiros e técnicos que trabalhavam na torre de integração móvel (plataforma de montagem do foguete). Amplamente noticiado, houve inclusive especulações sobre um possível boicote americano. No entanto, as investigações concluíram que foi um acidente técnico: a ignição do foguete foi acionada espontaneamente, e as turbinas ligaram enquanto o foguete ainda estava em preparação.
O acidente em Alcântara dificultou a continuidade do projeto de autonomia espacial do Brasil e foi retomada a estratégia anterior, de buscar colaborações internacionais que possibilitassem o desenvolvimento e a transferência de tecnologia. Foi assim que, em 2006, em colaboração com a Ucrânia, o Brasil criou a empresa pública binacional Alcântara Cyclone Space (ACS). A principal finalidade da ACS era comercializar e realizar o lançamento de satélites, utilizando o foguete ucraniano Cyclone-4 a partir de Alcântara.
A parceria entre Brasil e Ucrânia não foi muito produtiva, e em 2011 foi revelado pela WikiLeaks um telegrama enviado pelo Departamento de Estado dos EUA em resposta a uma solicitação da Ucrânia. O telegrama era de 2009 e afirmava: “Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil”. Em julho de 2015 a cooperação entre Brasil e Ucrânia foi cancelada pelo governo brasileiro sem que nenhum lançamento tenha sido realizado no período.
Anos antes, uma série de iniciativas estratégicas foram tomadas com o intuito de reforçar o caráter civil do programa espacial brasileiro para amenizar os boicotes internacionais. Entre elas estavam a transferência do programa espacial brasileiro para uma instituição civil, com a criação da Agência Espacial Brasileira em 1994 e a adesão do Brasil ao tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares em 1998. Mas, aparentemente, essas medidas não foram suficientes.
Atualmente, o Centro Espacial de Alcântara integra a Agência Espacial Brasileira, uma autarquia vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Mas a operação do espaçoporto é feita pela Força Aérea Brasileira. Dessa forma, duas esferas, civil e militar, compartilham responsabilidades, inclusive nessa nova fase em que a base se abre para a prestação de serviços e exploração comercial por empresas privadas.
Em 2023 a startup sul-coreana Innospace realizou o primeiro lançamento privado na base. O foguete, Hanbit-TLV, tinha a bordo carga útil brasileira, o Sisnav, um sistema de navegação de foguetes, desenvolvido pelo Instituto de Aeronáutica e Espaço. O lançamento foi comemorado como um marco do reposicionamento do Brasil no cenário mundial da exploração espacial.
Acordo de salvaguardas tecnológicas
A primeira tentativa de um acordo de salvaguardas tecnológicas (AST) foi em 2000, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Um acordo chegou a ser assinado, mas foi rejeitado no Congresso Nacional sob a justificativa de que comprometeria a soberania nacional. Já em 2019, durante o governo Bolsonaro, o documento foi assinado e aprovado pelo Congresso Nacional.
Segundo documentos oficiais, o AST é somente um instrumento de proteção de dados tecnológicos dos Estados Unidos, nação que detém cerca de 80% dos equipamentos espaciais globais. Nessa perspectiva, o acordo concede ao Brasil a autorização para realizar lançamentos de foguetes e espaçonaves com componentes americanos e assim viabiliza a abertura comercial do Centro Espacial de Alcântara: “Sem poder lançar componentes americanos, presentes na maior parte dos foguetes e satélites comerciais, era inviável pensar em um modelo de negócios sustentável para o CEA”, relata a assessoria de comunicação da Agência Espacial Brasileira.
Mas nem todos concordam com essa perspectiva. O advogado Jorge Folena de Oliveira, doutor em ciência política, acredita que o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) é uma via de mão única. “É um contrato benéfico apenas para os Estados Unidos e totalmente prejudicial para o Brasil”. Segundo ele, os termos deste acordo permitem que os americanos utilizem a base brasileira para lançar foguetes e espaçonaves sem custos e sem a obrigação de transferir tecnologia ao Brasil. “Na época em que o AST foi assinado, nós fizemos uma grande discussão no Instituto dos Advogados Brasileiros e foi unânime, não houve divergência de que esse acordo atenta inegavelmente contra a soberania do país”, afirma.
Outro ponto bastante polêmico é o fato de que, apesar de estar autorizado o uso das instalações para o lançamento de foguetes e espaçonaves a outros países mediante remuneração, é obrigatório que esses veículos contenham componentes americanos e, ainda, a receita gerada não pode ser destinada às pesquisas e ao desenvolvimento de tecnologia de foguetes no Brasil.
Alcântara, território quilombola
Em 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado Brasileiro por violações contra as comunidades quilombolas de Alcântara e foi instituído um Grupo de Trabalho Interministerial para pensar alternativas para a demarcação das terras.
O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas exige que a área na base e no entorno estejam completamente desocupadas. De acordo com Dorinete Serejo, coordenadora do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (Mabe), não há estudos técnicos que certifiquem ou justifiquem a necessidade de expandir a área atualmente ocupada pelo Centro de Lançamento sobre o território quilombola, nem estudos sobre viabilidade, riscos ambientais, sociais e econômicos.
Com a assinatura do AST, além das ameaças de mais desapropriações, os Estados Unidos não são obrigados a relatar ao Brasil o tipo de carga que transportam nos lançamentos, nem mesmo em relação à presença de materiais radioativos ou outras substâncias potencialmente danosas ao meio ambiente ou à saúde humana.
“Nós entendemos que existe a possibilidade de convivência das comunidades quilombolas e do CLA sem precisar remanejar mais nenhuma comunidade”, reflete Dorinete. Ela conta que é possível ver, de seus territórios, um foguete depois que ele é lançado, mas que não há partilha de conhecimento com as comunidades. O que eles sabem sobre o programa espacial é o que veem na televisão ou na internet.
Longa data
As comunidades remanescentes de quilombos estão no território desde antes da abolição da escravatura.
Em 1983, quando foi inaugurado o Centro de Lançamento, 312 famílias foram transferidas para agrovilas e, desde então, a ameaça de novos deslocamentos sempre pairou sobre as comunidades. “Como tudo que aconteceu na era do governo militar, houve muita truculência, tivemos vários direitos violados”, diz Dorinete.
Moradora da comunidade Canelatiua, ela relata que a vida nas agrovilas trouxe desafios como a distância da praia dificultando a prática pesqueira e terras que se revelaram inférteis e limitadas para a produção agrícola. Muitas famílias, por medo de serem transferidas para as agrovilas, migraram para São Luís “e com isso algumas pequenas comunidades praticamente deixaram de existir”, complementa.
De acordo com Danilo Serejo, em seu livro A atemporalidade do colonialismo – contribuições para entender a luta das comunidades quilombolas de Alcântara e a Base Espacial; as agrovilas são regidas por regras impostas pelos militares, que abrangem desde solicitações de reformas nas casas até a proibição de construção de novas residências e “a maioria das famílias que sofreram desapropriação na década de 1980 não receberam até hoje indenização. As ações correm ainda na Justiça”, aponta Danilo, que também é representante do Mabe, além de advogado e mestre em ciências políticas.
Diana Zatz Mussi é formada em geografia (USP), mestre em divulgação científica e cultural e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)