Ao completar 70 anos, chegou a hora da aposentadoria para Yvonne; assim estipulava a normativa do funcionalismo. Por sorte, para os professores universitários, existia a figura do professor emérito, de modo que ela pôde conservar seu escritório, algum espaço de laboratório e alguns alunos para orientar. Yvonne diminuiu levemente sua presença, para se dedicar a atividades relacionadas com a divulgação e a educação em ciência, mas no Instituto de Física de São Carlos havia ficado patente seu legado: a estrutura do grupo de cristalografia. Nos anos seguintes, aquele projeto iniciado por ela quatro décadas atrás incorporaria novos membros e estenderia ainda mais seus laboratórios. Alguns deles, como o Centro de Biologia Molecular Estrutural (CBME), detinham a distinção de CEPID, que supõe o maior grau de importância dentro da rede de centros de pesquisa do estado de São Paulo. Claro, sua especialidade principal era a cristalografia aplicada a proteínas relacionadas com diversas doenças infecciosas ou o câncer. Por sua parte, Yvonne, além de continuar participando em alguns desses trabalhos de pesquisa, naquela época era solicitada para conceder entrevistas, ministrar palestras sobre os mais variados temas, ou assessorar no desenho de programas educativos.
Um dos projetos aos quais mais energia dedicaria tinha como objetivo implementar, em escolas públicas, um método baseado nas teorias Learning by doing («aprender fazendo») de John Dewey. Docentes do âmbito universitário, como Yvonne, produziam materiais didáticos e instruíam os professores do ensino fundamental e médio sobre como aplicar este tipo de metodologia em suas aulas. Em linhas gerais, a ideia consistia em substituir as aulas expositivas, nas quais o professor fala e os alunos ouvem, por outras em que se propõem problemas práticos, mais próximos aos que vão encontrar depois em suas vidas profissionais e pessoais, que devem resolver, muitas vezes em equipe. As fronteiras entre as diferentes disciplinas ficam difusas, já que os problemas são concebidos para serem resolvidos de modo «multidisciplinar». Até hoje, Yvonne considera que essas metodologias são eficazes, mas que devem ser aplicadas de maneira contínua e integral; caso contrário, acabam sendo como gotas de água no mar. Mas considera que sempre vale a pena: —Contribuir para uma melhor educação de poucos é melhor do que não contribuir para a de todos —me diz.
—E sobre a divulgação científica, em geral? —pergunto.
—Penso que, por enquanto, temos que nos contentar em ir preparando o terreno. A cultura é um assunto que está muito enraizado nos povos. É muito difícil mudar. Conheço muitas pessoas valiosas e competentes que dedicaram sua vida à divulgação e os resultados foram decepcionantes. Apesar da boa reputação que a ciência pode ter hoje, poucas pessoas sabem por que o ar-condicionado liga ao apertar um botão. Nisso não estamos tão distantes dos camponeses da Idade Média, que alimentavam as vacas porque sabiam que, se não, elas morriam. Nem mesmo os próprios cientistas sabemos muitas coisas além de nossos campos de trabalho.
Yvonne considera que o governo deve investir mais no sistema de educação pública, mas tem consciência dos limites materiais.
—O Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão e a herança dessa atrocidade temos hoje na forma de massas de gente sem uma educação adequada para as exigências do mundo atual. Esse é o germe dos principais problemas do país. Na Europa as coisas são diferentes… Meu avô, que emigrou da Itália sendo uma pessoa simples, sabia recitar de memória passagens da Comédia de Dante. Aqui temos que começar garantindo uma boa educação básica para todos. Que todos aprendam, pelo menos, a manusear bem a língua natural e as matemáticas básicas. Depois, temos que encarar a dura realidade de que não podemos ter as melhores escolas para todas as crianças. Os recursos de um país são sempre limitados. É necessário buscar aqueles mais talentosos para promovê-los e permitir que possam desenvolver suas capacidades. Disso depende, em grande medida, o destino de um país.
—Então, com o talento se nasce?
—Penso que sim. Pelo menos no que conheço, que é o âmbito acadêmico e científico, acredito que a capacidade de crítica de cada pessoa depende de sua natureza. Provavelmente isso seja um princípio que pode ser extrapolado para o resto das atividades. Acredito que os sistemas educativos ajudam a alcançar e manter um bom nível médio, o que é crucial para a sociedade, mas que não produzem gênios; muito pelo contrário: se estão mal desenhados podem chegar a desperdiçá-los.
—Parece que sua posição se aproxima do intelectualismo moral —digo, e no dia seguinte levo as cartas de Platão para ler um trecho da carta VII a ela—. Apesar de terem sido feitas todo tipo de análises, não podemos assegurar se a carta foi realmente escrita por Platão em pessoa, mas é provável que sim. De qualquer maneira, este trecho reflete bem essa doutrina ética da qual te falava. Olha:
«Na minha chegada, pensei que em primeiro lugar deveria verificar se Dionísio estava realmente incendiado como o fogo pela filosofia, ou se o rumor que havia chegado a Atenas a esse respeito carecia de fundamento. Pois bem, há um procedimento bastante discreto para realizar essa prova. (…) Consiste em explicar o que é a obra filosófica em toda a sua extensão, e quantos trabalhos e esforços exige. Porque se o ouvinte é um verdadeiro filósofo, apto para esta ciência e digno dela porque tem uma natureza divina, o caminho que lhe foi ensinado parece-lhe maravilhoso, pensa que deve empreendê-lo imediatamente e que não vale a pena viver de outra maneira. (…) Toda conduta contrária a esta não deixa de horrorizá-lo. Por outro lado, aqueles que não são verdadeiramente filósofos, que têm apenas um verniz de opiniões, como as pessoas cujos corpos estão levemente queimados pelo sol, quando veem que há tanto para aprender, o esforço que tem que ser feito e a moderação no regime de vida cotidiano que a empreitada exige, considerando-o difícil e impossível para eles, nem sequer são capazes de colocar em prática, e alguns se convencem de que já aprenderam o suficiente de tudo e de que não precisam de mais esforços»
—Interessante —diz Yvonne—. No Brasil dizemos que todo mundo pode sambar, mas nem todos vão ser aquele sambista… —brinca—. Eu acrescentaria, e isso é importante, que em todas as famílias podem nascer filósofos. Não devemos esquecer que dentro das favelas também há talento.
—Mas como definir? —pergunto— O talento…
—Tem que gerar resultados visíveis. Deve ser durante o ensino fundamental, quando os professores têm um contato mais próximo com os alunos. Estes devem estar atentos para perceber quando uma criança demonstra ter um dom. O problema é que neste país só há uma categoria de talento que é buscada sistematicamente: a do jogador de futebol. E olha, pelo menos nesse campo, tivemos bons resultados.
No campo da biologia estrutural, o último grande avanço havia chegado, de maneira um tanto inesperada, pela mão da DeepMind, uma empresa especializada em inteligência artificial. Em um artigo publicado na revista Nature em colaboração com o Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL), mostravam os impressionantes resultados do seu módulo Alphafold. Conseguiram prever mais de 350.000 estruturas, incluindo cerca de 20.000 proteínas humanas, unicamente a partir de sua sequência genética (de uma lista de bases como esta: AAATGGTACTCA…). Afirmam que em questão de poucos anos terão resolvido até 100 milhões de estruturas. Para compreender a magnitude do avanço, lembremos que a função das proteínas está vinculada à sua estrutura, de maneira que muitas doenças estão diretamente relacionadas com ela, e que, por meio de técnicas experimentais, como a cristalografia, o estudo de uma única proteína pode levar meses ou anos de trabalho. Claro, as proteínas resolvidas com cristalografia e armazenadas no PDB foram a base que serviu para treinar esses algoritmos e são imprescindíveis para verificar, depois, seus resultados. Quando pergunto sobre o Deep learning, Yvonne se mostra satisfeita. Apesar da distância que a separa dessa ramificação computacional abstrata, não parece ter receios em relação aos últimos avanços tecnológicos, por mais acelerados que sejam. Não acredita que o mundo possa mudar a tal ponto que ela não se sinta parte dele.
—O que me preocupa é que tenhamos nos tornado uma extensão das máquinas que manejamos —diz Yvonne—. Que o trabalho tenda a ser mecânico e carente de criatividade.
E é que, em questão de algumas décadas, havíamos passado da época dos grandes cosmólogos, para uma em que o fundamentalismo científico e o prestígio da ciência começam a ter que enfrentar um íntimo sentimento de vazio. A essa sensação, da qual Yvonne fala, de termos nos tornado meras peças passivas de um sistema de produção de conhecimento que progride sem direção. Roberto Calasso expressou isso da seguinte maneira: vivemos imersos na «era da inconsistência», onde parece que o raciocínio não serve para dizer nada consistente sobre o mundo atual e seus problemas.
Yvonne não provoca aquela atração hipnótica dos piratas. Ela transmite a sensação de que, em geral, as coisas são possíveis. A verdade é que se está bem ao seu lado.
—Sirva-se mais, se quiser —diz-me—; você sabe que nesta casa o café nunca é forte demais.
Imagino-a perfeitamente, quarenta anos atrás, como anfitriã naquele jardim, rindo das piadas dos convidados. Ainda faz a manicure a cada quinze dias, arruma-se para as entrevistas e, se há algo que a incomoda, tenta não reclamar. Nota-se que ela está muito bem acompanhada, que seus netos e bisnetos a visitam com frequência.
—Todos os seus filhos ainda vivem em São Carlos? —pergunto.
—Yvoninha e Paulo, sim. Helena e Sergio Roberto, faleceram.
Guardo silêncio; não sabia.
—Sim, faleceram. Infelizmente, tive que viver duas vezes a pior experiência que uma mãe pode ter.
Hesito se devo perguntar mais, mas Yvonne facilita para mim. Conta-me, emocionada, sem traumas, sem perder a compostura, como foi, e ao tentar anotar as datas exatas, percebe que não se lembra.
—É incrível como funciona a memória. Desde então, não houve um único dia em que não pensei neles. Todos os dias da minha vida me lembro de quão bons eles eram, de sua graça… E, no entanto, não consigo lembrar o ano.
—A morte assusta?
—A minha? Não, a minha não. Sou consciente de que a qualquer momento um resfriado ou qualquer outra pequena doença pode se complicar —diz-me, mais tranquila—. Já vivi bastante, e vivi muito bem. Pude compartilhar o tempo com pessoas maravilhosas e consegui fazer algumas coisas das quais estou orgulhosa. Agora, com 90 anos, já não tenho tanta vitalidade.
Digo-lhe a verdade: que parece ainda estar muito apegada ao mundo. Alegre, desperta, interessada, com toda a intenção de caprichar em cada detalhe. Além disso, o tempo lhe esculpiu uma aparência resoluta e elegante, como a de uma grande matriarca. E ela, que de alguma forma já esperava minhas palavras, agradece-me e, com um sorriso benevolente nos lábios, diz-me:
—No último relatório do departamento, na seção de objetivos, simplesmente escrevi: «Continuar fazendo o que estou fazendo até agora…»