A carreira de Yvonne alcançaria seu ponto de plenitude na década de 80. Seu grupo (o grupo de cristalografia do Instituto de Física de São Carlos, USP) ampliou o leque de aplicações. Após a experiência acumulada nos Estados Unidos e na Inglaterra, Yvonne tinha o conhecimento necessário para trabalhar com amostras de plantas, minerais, metais, ácidos, cerâmicos, polímeros sintéticos e, claro, proteínas animais. Talvez o projeto mais marcante daqueles anos tenha sido o da crotamina, uma toxina do veneno da serpente cascavel tropical (Crotalus durissus terrificus). Para estudá-la, Yvonne e seus colegas decidiram utilizar uma técnica alternativa: o espalhamento de raios X em ângulos baixos (SAXS). Sua principal vantagem em relação à cristalografia era sua capacidade de aplicação em amostras não cristalinas. Apesar de seu desenvolvimento ter ocorrido já nos anos 30 (foi mais um dos produtos daquela época gloriosa de experimentação com radiação eletromagnética), foi apenas a partir dos anos 60 que a técnica SAXS realmente passou a ter importância. Isso se deveu à necessidade crescente de estudar a estrutura de substâncias que não formavam cristais em seu estado natural, como costumava ser o caso das proteínas. Por outro lado, sua desvantagem era a perda de resolução espacial. Vamos colocar alguns valores para dar uma ideia. A mediana da resolução obtida nas 135.762 proteínas registradas no Protein Data Bank até 2019, resolvidas por cristalografia de raios X, é de 0,205 nm. Claro, nem todos os experimentos são iguais. Os melhores têm uma resolução inferior a 0,1 nm; os piores, em torno de 0,5 nm. O átomo de hidrogênio (o mais pequeno e simples de todos, consistindo em um elétron e um próton) tem um diâmetro de 0,106 nanômetros (diâmetro de Bohr). Assim, naqueles experimentos de cristalografia de maior qualidade, as posições dos átomos de hidrogênio são resolvidas diretamente (podem «ser vistas»). O restante dos átomos, ao ter um tamanho maior (tomando como referência o diâmetro de Bohr, o Oxigênio: 0,120 nm; o Carbono: 0,134 nm; e o Alumínio: 0,286 nm), são ligeiramente mais simples de resolver. Bem, a resolução da SAXS oscila entre 1 nm e 5 nm, dependendo das condições. Atualmente, ambas as técnicas são frequentemente utilizadas em combinação. Para o caso do estudo de uma proteína, a cristalografia daria informação sobre sua estrutura em escala atômica; o SAXS, em uma escala superior, sobre suas conformações ao dobrar e desdobrar, ou ao se agregar a outras proteínas.
O grupo de Yvonne funcionava com um alto nível de produção. As colaborações com laboratórios estrangeiros os mantinham em contato com os avanços técnicos do campo, que por sua vez utilizavam para atender às necessidades de seus colaboradores locais: universidades, empresas, centros de pesquisa… O objetivo dos experimentos era sempre, mais ou menos, o mesmo: determinar a estrutura das amostras e vinculá-la com suas propriedades e com seu comportamento. Mudavam, como já vimos, os métodos para consegui-lo, em função do que fosse o objeto de estudo. Pode-se dizer que a cristalografia, e o resto das técnicas afins, estudam como «são» as coisas para explicar como se «comportam». Para o Brasil, dispor de um laboratório como o de Yvonne, com a capacidade de atender áreas tão distintas, tinha um grande valor. Além das contribuições àquela entidade abstrata que chamamos de «conhecimento científico», aqueles resultados tinham aplicação direta em várias das indústrias fundamentais do país, como a agropecuária, a de materiais ou a farmacêutica.
—Trabalhávamos muito em colaboração com mineralogistas, no estudo de componentes dos solos. A cristalografia combina bem com a espectroscopia. Uma dá a estrutura dos materiais e a outra, a composição. Já sabes que o Brasil tem uma terra fértil e rica em minerais. Somos líderes a nível mundial na pesquisa relacionada com a agricultura. Para mim, a EMBRAPA é um bom exemplo de como a ciência deve ser apoiada pelas instituições do Estado.
Além de dirigir a atividade científica e de ministrar suas aulas, durante os anos seguintes Yvonne coordenaria até quatorze eventos internacionais. Por sua parte, o grupo de cristalografia estava vivo: técnicos, secretárias, colaboradores, professores visitantes. A cada ano entravam novos alunos de iniciação científica, de mestrado ou de doutorado. E os que iam terminando, saíam, seguindo o conselho de Yvonne, para realizar estágios pós-doutorais em prestigiosas instituições do exterior. Ao voltar, vários deles conseguiram postos como professores no Brasil e estabeleceram seus próprios laboratórios, ampliando assim, um pouco mais, a rede local de cristalógrafos.
Sergio e Yvonne faziam parte da aristocracia científica no Brasil. Não chegavam a ser celebridades nacionais, como Sócrates, o futebolista, mas eram reconhecidos um pouco além dos círculos acadêmicos. Dentro deles, certamente, mencionar seus nomes era uma garantia. Em 1984, na celebração dos 30 anos de casados, muitos amigos compareceram, alguns deles pessoas notáveis, que se alegravam sinceramente por eles. Mas o casamento não estava tão bem quanto poderia parecer. Quando a pergunto, cautelosamente, sobre este assunto, Yvonne me responde com a mesma naturalidade de sempre. Observo-a falar, um pouco mais cativado, e tento esclarecer se o que ela está expressando são lembranças suavizadas pelo passar do tempo ou um reflexo direto das impressões daquela época. Sobretudo, tento entender de onde vem aquela elegância. Penso que provavelmente nunca se sentiu traída, que não tem dívidas pendentes, que a vida a tratou bem; simplesmente confia que farei bom uso do material… Enfim, digo a mim mesmo, espero estar à altura, quando chegar o momento, e volto a fazer-lhe outra pergunta.
—Sergio passava cada vez mais tempo fora de casa: viagens, congressos, seminários —conta ela—. Eu sabia perfeitamente que essa era a sua natureza. Assim como no trabalho científico, ele sentia uma atração inescapável por novos desafios, a necessidade de empreender novas conquistas.
Yvonne o observava, um pouco dolorida, compadecendo-se, numa atitude quase maternal, dessa insatisfação eterna que atormentava os homens. Ela havia observado em alguns amigos, todos homens, que por volta dos cinquenta anos começavam a se sentir vazios e se lançavam em busca de algo novo que os preenchesse.
—Eu acho que os seres humanos têm menos possibilidades do que acreditamos. Estamos muito determinados pela nossa genética, pela nossa educação, pela nossa infância… —explica ela—. Por isso não se pode culpar ninguém de maneira absoluta e definitiva. Nossas ações se devem a algo que é constitutivo do nosso caráter, a algum elemento fundamental da nossa psicologia. É isso que eu penso. Quero dizer, que o que fazemos é determinado pelo que já somos. E as pessoas, ao longo de nossas vidas, não mudamos tanto quanto dizem. Sergio era um empreendedor resoluto, um encantador e um curioso; e eu sabia disso, sempre soube, desde o dia em que o escolhi. Não tenho nada a reprovar. Tanto juntos quanto separados, nossas vidas foram muito boas.
Em certo ponto, para Yvonne, o casamento já não fazia sentido. Ela estava cansada de lidar com os mal-entendidos que aquela situação causava. Decidiram se separar por mútuo acordo. Não houve nenhum problema com arranjos financeiros; pelo contrário. Yvonne não teve medo. Já havia embarcado em inúmeros projetos aparentemente complicados e as coisas acabavam dando certo. Além disso, embora naquela época os exemplos de mulheres que haviam decidido dar aquele passo fossem escassos, eles existiam.
—Uma vez separados, sempre soube que poderia contar com ele para qualquer coisa importante. Isso eu tinha muito claro (ele, com sua atitude, deixou isso muito claro para mim), e é algo que faz a diferença.
Yvonne não se interessaria por outro homem novamente. Não se sentiu abandonada, não precisava de mais companheiros. De alguma forma, sentia-se completa com seu trabalho, sua família, seus alunos, seus colegas…
—Outro homem poderia causar uma perturbação muito grande na vida da família. Não valia a pena correr o risco. Para quê mudar algo que está equilibrado e bom?
A família havia crescido bastante. Seus filhos já eram adultos; Helena, a mais nova, tinha 25 anos. Por sorte, ficaram morando em São Carlos, e ali nasceram os netos de Yvonne; pouco depois, os bisnetos.
—Como você foi como mãe?
—Primeiro, vou te dizer que, para mim, a família é muito importante. Sempre dediquei muito tempo a ela. Tive a sorte de poder fazer isso. E como mãe, acredito que fui liberal. Tomei cuidado para não ser excessivamente exigente.
Em 1994, o IFQSC se dividiu em dois institutos: o de Física (IFSC) e o de Química (IQSC). Yvonne ficaria no primeiro e, após a insistência de vários colegas, seria nomeada sua primeira diretora.
—Você conhece aqueles versos de Jacques Prévert: «la chaîne où tout s’enchaîne»? —ela me pergunta; eu nego com a cabeça.
—«A cadeia onde tudo se encadeia»?
—Sim! —ela sorri—. O poder traz solidão porque as pessoas que te procuram geralmente o fazem com algum interesse. Eu não sei se muito poder é compatível com essa felicidade que eu busco; suspeito que não. Lembro-me de que alguns professores me pediam para viajar mais frequentemente a São Paulo, à reitoria. Segundo eles, isso repercutia no peso específico do IFSC na USP…
Apesar de seus receios iniciais, a experiência de Yvonne como diretora foi mais agradável do que ela esperava. Seus antigos colegas concordam que ela realizou uma boa gestão.
—Eu diria que você tem um caráter ideal para dirigir: determinação e ternura; força e delicadeza —aventuro-me a dizer-lhe—. Pelo menos é o que parece de fora…
—Isso eu herdei da minha mãe —ela responde, orgulhosa—; esse caráter tranquilo. No fundo, as decisões se resumem a como distribuir o orçamento. Mas é preciso ter muito cuidado. Só então pude conhecer, em primeira mão, o alcance que certos problemas têm. Além dos equilíbrios necessários para manter um grande número de pessoas coeso e esse tipo de questão. Está, por exemplo, o fato de os planos estratégicos serem feitos a curto prazo: se cada vez que muda o ministro, mudamos de rumo, é muito difícil progredir. Também a falta de incentivos no funcionalismo. É muito negativo ter gente trabalhando desmotivada. Justamente naquela época, observei como alguns dos meus colegas se aposentavam assim que tinham oportunidade. Isso eu nunca cheguei a entender. Abandonar assim sua ocupação para viver uma vida sem sal… Isso deve levar a um nível de frustração tremendo. Uma vez, na televisão, vi um documentário sobre uma tribo do deserto cujo chefe saiu para receber um grupo de estrangeiros, simplesmente para dizer: «Não! Não queremos nos comunicar com ninguém. Adeus!» Essa falta de curiosidade me parece indigna do ser humano. Há pessoas que foram educadas para bloqueá-la. É verdade que a curiosidade e o mundo intimidam… Mas é preciso vencer os medos. Se não, não podemos nos realizar.
Em 1998, em Brasília, o presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, entregaria a Yvonne a Ordem Nacional do Mérito Científico. No ano seguinte, ela seria eleita mulher do ano pela união cívica feminina de São Carlos. A partir desse momento, suceder-se-iam os prêmios e os reconhecimentos. Destacam-se a nomeação, no ano 2000, como membro titular da Academia Brasileira de Ciências, e a distinção Mulheres Notáveis em Química ou Engenharia Química concedida pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), em 2017. O mais recente foi o prêmio Joaquim da Costa Ribeiro, nomeado em homenagem ao seu antigo professor, que a Sociedade Brasileira de Física (SBF) lhe outorgou este ano de 2021 «por suas atividades de pesquisa pioneiras em cristalografia e por iniciar uma sólida comunidade científica nesta área no Brasil».
—Para que servem os prêmios? —pergunto.
—Eu tenho que reconhecer que, sem o apoio, o calor, o reconhecimento e a companhia das pessoas, não teria tido motivação para trabalhar tanto. Trabalhar sozinho deve ser muito duro. Não sei de onde tiram forças, por exemplo, os escritores. Eu sempre tive muitos colegas que me chamavam para colaborar. Agora me vem à cabeça uma anedota de algum tempo atrás… Foi em Belo Horizonte, numa defesa de doutorado da qual eu fazia parte da banca de avaliação. Ao término da parte formal do evento, começou uma festa, com banda de música e pista de dança, mas eu estava com as pernas cansadas, então, em vez de dançar, sentei-me numa cadeira um pouco afastada do tumulto. Pois por ali foram passando diferentes pessoas para se sentar ao meu lado e me perguntar sobre moléculas, técnicas, estruturas… A verdade é que me senti muito valorizada. Um dos professores me disse: «Yvonne, parece que você tem um confessionário», e eu respondi: «posso ajudar a resolver alguma dúvida, mas não absolver ninguém…» Esses momentos pagam todo o esforço empregado durante a carreira. Penso que os prêmios cumprem uma função equivalente.
Um dos processos que reconfiguraram o pensamento do mundo ocidental durante os séculos XIX e XX foi a perda da centralidade pelos sistemas religiosos formais. Espaço que, em muitas ocasiões, foi ocupado pelas próprias ciências. Sem uma explicação totalizante do mundo, o homem se encontrava diante de um vazio que só as ciências eram capazes de preencher. Embora estas não pudessem oferecer respostas sobre o sentido da vida, pelo menos eram capazes de «salvar os fenômenos» do mundo natural. E de possibilitar seu domínio! Nas palavras de Karl Popper, um dos principais filósofos da ciência do século XX: «há um problema filosófico no qual todos os homens que refletem estão interessados: é o da cosmologia, o problema de entender o mundo, incluindo-nos a nós mesmos e ao nosso conhecimento como parte dele. Toda ciência é cosmologia, e tanto a filosofia quanto a ciência perderiam todo seu atrativo se abandonassem tal empreitada». A maioria dos cientistas responsáveis pela passagem do modelo clássico ao quântico (alguns deles nomeamos no terceiro capítulo) eram, antes de tudo, cosmólogos. Alguns, como Einstein, se declararam ateus, mas na hora de raciocinar tinham presente a ideia filosófica de Deus (ainda que fosse «o Deus de Spinoza»). Pretender dar uma explicação absoluta do mundo, equivale a «olhá-lo» pelos olhos de Deus. Pensar que as matemáticas são a linguagem com a qual o universo está escrito, implica uma ordem fundamental, uma perfeição, uma ausência de rupturas. Alguns dos mais famosos cientistas modernos, como Stephen Hawking ou Roger Penrose, defenderam este tipo de posturas. Se as ciências têm a capacidade de alcançar tão ambicioso objetivo é algo que, sem dúvida, ainda está por demonstrar. Mas esse já é outro assunto. Voltemos à nossa protagonista. Yvonne, criada em um ambiente católico e em contato próximo com outros cultos como o espiritismo, viveu a culminação dessa transição de uma concepção do mundo, se quiser, mais mitológica, para uma mais científico-técnica, baseada em probabilidades e em leis matemáticas.
—Ciência e religião são compatíveis? —pergunto.
—Não sei. Certamente não se pode afirmar que não sejam. Eu não estou ligada a nenhuma religião, mas gosto de entrar nas igrejas. Além disso, sinto a necessidade de ter esperança de que esta vida tão complicada, de alguma forma, faz sentido. Que tudo isso não é em vão. Porque se tudo acabasse com a morte, a vida seria demais sem consequência…
—Então, a ciência não basta?
—Eu penso que os avanços científicos, em medicina, por exemplo, por mais úteis que sejam, ficam aquém diante dos grandes anseios do ser humano. Além da ciência e do conhecimento, tem que haver algo mais transcendental que avance também.
—Algo que não pode ser alcançado através da razão?
—O progresso do conhecimento nos aproxima cada vez mais da verdade. Galileu preocupava-se com o movimento dos planetas ao redor do Sol; hoje nos preocupamos com os movimentos de todas as galáxias. Mas…
—Há algo mais?
—Eu preciso pensar que sim. Embora esteja convencida de que, de alguma forma, a ética está intimamente relacionada com o conhecimento racional. Que um maior grau de conhecimento leva, por necessidade, a uma sociedade mais virtuosa. O que quero dizer é que não sei se a ciência é capaz de resolver todos os aspectos de nossos dilemas, mas acredito que nos aproxima da solução.
—Alguns produtos da ciência foram prejudiciais, não?
—Produtos tecnológicos, sim. Às vezes também me pergunto se as novas invenções valem a pena. Todos conhecemos a história da bomba atômica ou dos plásticos indestrutíveis… Mas uma coisa está clara: não há volta atrás. O ser humano é curioso por natureza e a ciência não deixará de progredir.
—O conhecimento nos faz mais felizes?
—Não diria felizes; não sei se hoje somos mais ou menos felizes do que há duzentos anos. Diria que o conhecimento nos permite nos realizar. E já que me perguntou sobre religião, eu acredito que, se existe um Deus, ele deve estar muito contente com o que os seres humanos conseguiram com a nossa ciência.
Yvonne se cala, pensa por alguns segundos, e adiciona:
—Talvez também contrariado com os usos bélicos da tecnologia…