Os resultados provenientes da cristalografia continuavam despertando grande interesse. Após quarenta anos, o campo não havia deixado de ser o que na gíria se conhece como um «hot topic». Fruto dessa fertilidade e de certos avanços técnicos, em 1971 nascia o Protein Data Bank (PDB), uma base de dados de domínio público destinada a armazenar as estruturas de todas as proteínas resolvidas, principalmente por meio de cristalografia de raios X. As proteínas são biomoléculas presentes em todos os organismos vivos e diretamente envolvidas nos processos químicos essenciais para a vida. É importante salientar que a atividade fisiológica das proteínas (a tarefa que realizam nos organismos) não depende apenas de seus grupos funcionais (dos componentes que a constituem), mas também, e em grande medida, das conformações tridimensionais que adotam. Assim, a informação fornecida pelo PDB era útil para diversas áreas da ciência, como a biologia molecular, a farmacologia, ou a química orgânica. Os cristalógrafos tinham a sensação de avançar, tal como dizem os manifestos científicos, por meio de um esforço coletivo, e Yvonne fazia parte desse movimento. Aquele grupo de cristalografia da Universidade de São Paulo que «fazia coisas interessantes» começava a ser reconhecido no âmbito internacional. Nesse mesmo ano, Yvonne passaria a fazer parte do Grupo Iberoamericano de Cristalografia.
—Recebi um convite para um congresso que seria realizado no Chile. Coincidiu com a época da fundação do Instituto de Física e Química de São Carlos (IFQSC). Sergio ia ser o primeiro diretor e o restante dos professores estávamos de mudança. Devo reconhecer que fui ao Chile sem grandes expectativas. Eu achava que na América Latina ainda não tínhamos condições para estabelecer uma rede potente de laboratórios de cristalografia. Mas uma vez lá, levei a melhor das surpresas. A falta de infraestrutura era enorme, mas o nível dos professores era muito alto. Além disso, notava-se que tínhamos vontade de trabalhar.
Nos anos seguintes, Yvonne acolheria alguns deles como professores visitantes e ajudaria outros a se estabelecerem como pesquisadores no Brasil.
Em 1972, em um congresso da IUCR realizado em Kyoto, Yvonne coincidiu com Dorothy Hodgkin e pôde conhecê-la pessoalmente. Dorothy havia sido agraciada com o Prêmio Nobel de Química de 1964, pela determinação das estruturas da penicilina e da vitamina B12.
—Lembro-me de que ela ministrou a sessão plenária e que eu adorei. Eu e todos os presentes. O que conseguiam fazer naquele laboratório era impressionante para a época. Em algum momento nos encontramos e ela me disse que também havia gostado da minha apresentação. Nós havíamos resolvido a estrutura de uma variante do ácido daqueles experimentos em Pittsburgh, e isso foi o que apresentei. Depois nos encontramos novamente e conversamos… A verdade é que tivemos uma boa sintonia. Eu a admirava, claro, mas isso não criou uma distância muito grande entre nós. Muito tempo depois, em meados dos anos 80, quando ela presidia as conferências Pugwash sobre ciência e assuntos mundiais, um dos eventos foi realizado aqui no Brasil, em Campinas. Estávamos em plena Guerra Fria, e as conferências Pugwash faziam campanha pela paz e pelo desarmamento nuclear. Parece que Dorothy estranhou minha ausência e perguntou por mim. Alguém me ligou para avisar e eu parti imediatamente. Foi uma alegria. Passamos alguns dias muito agradáveis juntas.
Em sua apresentação em Kyoto, Dorothy Hodgkin mostrou os últimos resultados do seu laboratório. Eles conseguiram determinar a estrutura da insulina, após mais de trinta e cinco anos de trabalho. Isso representava um marco. Não só pelo fato de ser uma molécula complexa cujo estudo implicava a superação de uma série de desafios técnicos de grande dificuldade, mas também por ser um hormônio de importância capital para a fisiologia dos mamíferos. Mas vamos parar aqui por um momento. É mais ou menos simples entender que a cristalografia serve para determinar a estrutura de substâncias estáveis, como o quartzo ou o aço, mas como aplicar essa mesma técnica a substâncias biológicas que podem dobrar sobre si mesmas e adotar diferentes conformações? No caso da insulina: o que significa exatamente «resolver» sua estrutura? Vamos direto ao ponto para esclarecer que, em cristalografia, «resolver» um composto significa determinar a estrutura dos cristais que ele forma. Assim, no caso em questão, resolver significa determinar a estrutura dos cristais de insulina: as possíveis configurações que esta adota após ser cristalizada. Uma vez esclarecido este ponto, surge imediatamente uma pergunta. Se o que pretendemos é conhecer a forma das proteínas em seu ambiente natural e o processo de cristalização as modifica, ou pelo menos as torna rígidas: qual interesse pode ter determinar a estrutura desses cristais? A resposta curta é que depende: algumas amostras têm menor interesse, mas outras, no entanto, são enormemente reveladoras. Apesar de o estado cristalino parecer tão pouco fisiológico, às vezes essas conformações se aproximam em alto grau às que as proteínas apresentam em seus ambientes biológicos. No pior dos casos, a partir delas pode-se inferir, por exemplo, quais dos grupos mudam de posição e quais são fixos. Ou quais de seus átomos tendem a estar ocupados por ligações e quais estão disponíveis. No caso particular da insulina, havia uma forte conexão entre a estrutura observada nos cristais romboidais e sua atividade nos tecidos biológicos. Isso podia ser sabido graças aos abundantes estudos que já tinham sido realizados sobre seu comportamento. Como já mencionado, o trabalho científico não é tão simples nem tão linear quanto pode parecer nos manuais introdutórios. Existe uma ruptura decisiva entre «fazer» ciência e «fazer história da» ciência. Para chegar à culminação daquele trabalho, Dorothy Hodgkin e seus colegas se apoiaram no trabalho prévio de centenas de pesquisadores que já haviam caracterizado partes da estrutura da insulina, determinado completamente sua sequência de aminoácidos, identificado seus grupos funcionais e suas correspondentes funções, detectado a presença de íons de zinco nas amostras e otimizado os processos de cristalização. Sem contar a extensa lista de desconhecidos que, ao obterem resultados negativos, revelavam os caminhos que não deveriam ser seguidos.
—Li que a cristalografia é o campo em que mais cientistas mulheres se destacaram.
—Não sei se é o campo com mais… Mas sim, felizmente houve muitas mulheres; ainda há.
—Nomes tão destacados quanto Dorothy Hodgkin, Kathleen Lonsdale, Rosalind Franklin, Isabella Karle, Jenny Glusker ou Ada Yonath.
—Sim, sim. E a lista continua…
—Sabe-se por quê? —pergunto.
Yvonne tem uma explicação histórica:
—Naqueles anos, principalmente na Inglaterra, havia muitos intelectuais de esquerda ocupando posições influentes nas instituições acadêmicas. Eram de corte marxista e estavam comprometidos com a igualdade. Eles pensavam principalmente nos trabalhadores, mas isso também repercutiu sobre as mulheres. Aquelas que tinham talento, tiveram a possibilidade de exercitá-lo.
—Como você vê a situação das mulheres na ciência em geral?
—Eu penso que é preciso incentivar as estudantes para que não desistam das carreiras científicas por seguir a tradição ou por falta de exemplos. Uma vez dentro, acredito que já não existem tantas barreiras quanto há alguns anos. A verdade é que não sei de onde vêm essas estatísticas da diferença salarial. Refiro-me às que mostram que, mesmo ocupando exatamente o mesmo cargo, os homens ganham mais que as mulheres. Isso me surpreende, mas entendo que são verdadeiras. Talvez minha experiência pessoal tenha sido demasiadamente boa… Olha —diz ela, preparando-se para contar uma anedota—, há alguns anos, em um congresso, uma professora egípcia me disse que ela estava bem casada porque em seu país, se você queria ser pesquisadora, tinha que arranjar um bom marido: um que te permitisse!
Yvonne ri. Ela encara esse tipo de situações com humor. Depois fica pensativa para voltar a dizer:
—Talvez as relações seriam mais agradáveis se os homens não tivessem um caráter tão dominador. Refiro-me dentro e fora do ambiente de trabalho. Você imagina uma mulher dizendo ao marido que precisa ir para Singapura porque precisa aprender não sei quais técnicas que são importantes para sua carreira? «Vão ser só oito meses. Não se esqueça de que as crianças têm que comer verduras às terças e quintas. Boa sorte! Até logo!»
—Bom, eu consigo imaginar —digo para provocá-la.
—É? Isso é porque os escritores têm muita imaginação —Yvonne ri novamente—. O que quero dizer é que obviamente ainda falta um bom caminho para alcançar a igualdade, mas estamos no caminho certo.
—E qual é esse caminho?
—É necessário tomar ação. Não há outra maneira. Eu, há algum tempo, em todas as eleições, voto sistematicamente em mulheres, sempre que elas têm o mesmo nível de formação que os homens com quem concorrem.
—Homens e mulheres têm, em geral, naturezas distintas?
—Chegados a este ponto da história, é impossível distinguir entre os traços que vêm da herança biológica e os que vêm da herança cultural. Mas eu acredito que sim, que existem diferenças constitutivas entre homens e mulheres. Estão presentes nos cromossomos sexuais: você tem um par XY e eu, um XX. E isso está bem. O difícil é precisar como essas diferenças genéticas se materializam no caráter das pessoas. Conhecem-se, por exemplo, as diferenças nos níveis hormonais ou na capacidade de produzir tecido muscular. Mas, enfim, parece-me demasiado complicado traçar as conexões entre processos moleculares e um nível tão distante como é o dos indivíduos. Eu, pelo que vivi, penso que é diferente se relacionar com uma mulher do que com um homem. Parece-me que isso é evidente e não é mau que seja assim.
No final de 1972, Yvonne sairia para realizar uma estadia de seis meses no laboratório dirigido por William Lipscomb, na Universidade de Harvard. Lipscomb era conhecido por ter determinado a estrutura de alguns boranos (compostos formados por Boro e Hidrogênio) e, sobretudo, por ter oferecido teorias que explicavam suas ligações. Essas teorias eram extrapoláveis para outros compostos, ou seja, eram universalizáveis, de maneira que apontavam para a natureza de certos elos químicos. Devido a estas e outras contribuições, quatro anos depois, em 1976, Lipscomb receberia o prêmio Nobel de Química.
—Para acessar o grupo de um candidato ao Nobel não basta enviar uma carta cheia de ilusão e boas intenções. Nesses ambientes, valorizam-se mais as habilidades técnicas ou as habilidades sociais? É mais proveitoso saber Química ou saber se comunicar? —pergunto.
—Bem… —Yvonne pensa—. Eu diria que ambas são necessárias, mas que nenhuma das duas é suficiente. Todas essas mulheres que você citou antes tinham, sem dúvida, muito de ambas. Eu tive o prazer de conhecer cientistas geniais, daqueles de pensamento abstrato, mas no campo experimental, a capacidade de trabalhar em equipe é imprescindível; também a de saber explicar com precisão as coisas que você faz. Entre essas habilidades que os americanos chamam de «soft skills», eu destacaria o foco, o compromisso e a resistência à frustração.
—Como foi a experiência em Harvard?
—Infelizmente o trabalho não obteve resultados positivos, mas, ainda assim, minha estadia foi muito produtiva. Sobretudo, para detectar aqueles elementos que precisávamos em nosso laboratório no Brasil.
Yvonne voltou a São Carlos convencida de que, se quisessem realizar contribuições à ciência, precisavam de mais recursos. A prioridade era a automação na coleta e no processamento de dados. Um ano atrás, ela tinha enviado uma carta circular aos físicos, químicos e mineralogistas brasileiros que trabalhavam em projetos relacionados, convocando-os para uma reunião informal. Daquela reunião, que teve lugar em São Carlos, surgiu a Associação Brasileira de Cristalografia. Provavelmente aquela consolidação do campo e da comunidade ajudou para que Yvonne recebesse um auxílio da FAPESP, graças ao qual pôde comprar um difratômetro automático Enraf-Nonius Cad4 e um computador PDP11. Naquele momento, era o único instrumento daquela categoria em toda a América Latina. Ser beneficiária daqueles recursos implicava grandes responsabilidades: administrá-los, dirigir um grupo de pessoas em crescimento e prestar contas em forma de resultados. Poucas noites ela ia dormir sem deixar alguma tarefa pendente. Cada vez que se comprometia com um projeto, era consciente da enorme distância que separa o que se escreve no papel e sua realização. Mas as coisas iam bem por aquele caminho. Não havia motivos para mudar de rumo. De fato, com o objetivo de continuar integrando a cristalografia brasileira no panorama internacional, propôs a alguns membros da IUCR a realização de uma escola (que se chamaria Latinamerican School on Direct Methods) em São Carlos. Quando estes aceitaram, Yvonne encarregou-se de fazer sua parte: conseguir o financiamento e organizar a logística do evento. A escola superou as expectativas. Tanto os participantes latino-americanos quanto os europeus adoraram o tratamento recebido, o calor, a comida, a música… Professores e alunos participaram de um concerto de cravo e órgão em uma fazenda da região onde uma antiga tulha fora transformada em salão de música. E, para finalizar as atividades, teve um jantar no jardim da própria casa da Yvonne. Eu, que em 2014 fui parte de uma dessas escolas, posso imaginar bem os participantes estrangeiros saindo de São Carlos em direção ao aeroporto de São Paulo, com uma unânime sensação: “temos que voltar a este lugar”. Apenas uns meses depois, Jerome Karle, futuro prêmio Nobel, nomearia Yvonne como membro do comitê de educação da IUCR.
Finalmente, Yvonne completaria essa fase de formação avançada com uma estadia de dez meses no grupo de Thomas Blundell, na Universidade de Londres. Thomas era mais jovem que Yvonne, mas tinha tido uma carreira meteórica. Foi, precisamente, um dos estudantes envolvidos na culminação dos trabalhos referentes à insulina no laboratório de Dorothy Hodgkin. Naquela época, em 1979, Thomas era o diretor do departamento de cristalografia do Birkbeck College.
—Gostei dos ingleses. Pareceu-me um povo pragmático e maduro para tomar decisões. Cordiais, com bons modos… Ao caminhar pela rua, tinha a sensação de que todo mundo estava disposto a parar para me ajudar.
—O espírito dos povos determina a qualidade da sua ciência?
—Da sua ciência, da sua arte e do seu destino. De tudo. Por exemplo, os portugueses têm sido historicamente menos ambiciosos que os espanhóis; isso se reflete na música e na pintura. Eu acho que um certo grau de nacionalismo pode ser positivo, pois fornece ao povo força e um sentimento de pertencimento e realização.
A Yvonne não se incomodava com aquele ritmo frenético da ciência.
—Uma boa ideia —diz-me—, em cinco ou seis meses, já se tornou uma trivialidade.
Seu projeto em Londres consistia em determinar a estrutura molecular da ocitocina, um hormônio do sistema nervoso cuja presença no cérebro modula o comportamento social das pessoas. Haviam sintetizado pela primeira vez em 1955. Ao término de sua estadia, tinham avançado, mas não conseguiram terminar o trabalho. Ainda assim, sete anos depois, quando finalmente conseguiram, tiveram a cortesia de considerar suas contribuições e a incluíram como co-autora no artigo publicado em 1986 na revista Science.
—Yvonne —digo—, tudo isso parece bom demais para ser verdade. Você não teve nenhum desentendimento ao longo da sua carreira? Alguma grande decepção?
—Deixe-me ver —diz ela, solícita—, deixe-me pensar… Sim… Alguns desentendimentos; poucos… Lembro-me de um. Justamente quando estava em Londres, alguns professores do IFQSC tiveram uma falta de generosidade comigo e com os membros do grupo de cristalografia. Você sabe que nas universidades há uma luta constante por espaço; eu acredito que isso aconteça em todas as universidades do mundo. Bem, estando eu do outro lado do oceano, aproveitaram para nos tirar uma sala muito querida (a «salinha da cristalografia»), que os alunos usavam para se reunir e discutir. No início, senti-me traída e, depois, impotente, porque, pela primeira vez, não era capaz de corrigir a situação. Fiquei, por um par de dias, pensando em redigir uma carta muito dura, criticando a conduta desses professores. Felizmente, decidi deixar para lá. Depois, ao meu retorno, a relação foi um pouco tensa, mas com os anos tudo acabaria esquecido.
—Entendo… —digo.
—É um desentendimento, não é?
—Bom, sim. Já vi coisas piores.
—Claro. Eu também as vi e ouvi, mas a verdade é que não as vivenciei.