4 – Professora Assistente, Formação em Cristalografia (1956-1961)

Yvonne completou a viagem de Rio de Janeiro até São Carlos acompanhada por seu filho e por sua mãe; levava mais de vinte e quatro horas. Sergio já estava lá à espera, em uma casa que havia alugado de forma provisória. São Carlos tinha apenas 40.000 habitantes e uma economia baseada no setor primário. Ao olhar ao redor, Yvonne encontrou um lugar tão desprovido de encanto que lhe pareceu impossível que pudesse ser o dela. Construções inacabadas se alternavam com terrenos baldios onde as ervas daninhas cresciam à vontade. O que mais a surpreendeu foi o frio dos entardeceres. Quando lhe avisaram que São Carlos era alta, ela não havia dado muita importância. Sergio e sua mãe se preocuparam em fazer Yvonne se sentir confortável. A barriga da segunda gravidez já se fazia aparente em sua figura.

—Por que vocês escolheram o nome Yvonne? —pergunto.

—Você tem razão —ela diz; quer deixar claro que não foi por vaidade—. Isso cria algumas confusões de vez em quando… Eu tinha outras ideias, mas minha sogra insistiu que a primeira menina deveria se chamar Yvonne, por uma questão de justiça. E assim foi. Agora eu gosto: Yvonne Maria, ou Yvoninha, como quase todos a chamam.

No início, o casal trabalhou em colaboração. Yvonne sentia que o tempo a atropelava um pouco. Estabelecer um laboratório experimental, com todos os seus protocolos e aparelhos, era uma tarefa mais difícil do que ela havia imaginado. Sobretudo, se o orçamento disponível é apertado. Conseguiram comprar alguns equipamentos com o dinheiro de boas-vindas que a EESC lhes facilitou. Outros pediram emprestados ou encontraram esquecidos em alguma sala. Então, sim, havia espaço de sobra. E haveria mais quando terminassem de construir os novos prédios do campus. Apesar de não disporem de tempo livre, sentiam falta da vida no Rio de Janeiro.

—No início, sim, devemos termos sentido um pouco isolados. Já não me lembro bem. Mas passou rápido porque logo nos tornamos sócios do São Carlos Clube e conseguimos trazer vários amigos para trabalhar aqui na EESC.

Imagino perfeitamente aquele jardim transformado em um ponto de encontro. O carvão aceso na churrasqueira e os pratos de carne circulando de mão em mão. Yvonne me confirma:

—Nos fins de semana podíamos nos reunir aqui dez ou vinte pessoas —diz-me, apontando para cá e para lá; para todos os lados—. Era ótimo! Agora estou convencida de que todas as universidades deveriam estar em cidades pequenas. Isso, para mim, foi um fator decisivo. Permitiu-me aproveitar muito melhor o tempo.

Entre as tarefas dos pesquisadores está a de participar em congressos. Lá, apresentam seus próprios trabalhos e assistem às apresentações de outros colegas, com o objetivo de se manterem informados sobre o progresso do campo. Também cumprem funções políticas. Nesses eventos, estabelecem-se colaborações, os professores mais autorizados delineiam estratégias em mesas redondas, e os recém-chegados são introduzidos na sociedade entre palavras amáveis e olhares críticos. Yvonne e Sergio pertenciam a este último grupo. Ainda não tinham grandes resultados para apresentar e assistiam às conferências como ouvintes envolvidos. Em uma delas, ocorreria uma confusão que marcaria suas trajetórias.

—Essa anedota já contamos tantas vezes… Mas foi assim. Estávamos convencidos de que o Dr. Schmolukowski que vinha a São Paulo era o mesmo da equação Einstein-Schmolukowski. E a verdade é que estávamos entusiasmados com a possibilidade de conhecê-lo.

Assim que o viram falando no palco, os dois começaram a rir. Como não haviam percebido? Roman Schmolukowski era o filho do famoso cientista polonês.

—Mas este não ficava atrás. Adoramos o seu trabalho. Ele estudava o papel dos defeitos em materiais sólidos. Chamamos de defeitos porque introduzem irregularidades na estrutura, mas às vezes podem ser benéficos. Podem, por exemplo, aumentar a resistência à fadiga de um metal ou diminuir sua fragilidade. Curioso, não? Só é questão de entender como e por quê.

Sergio aproveitou a pausa para o café para se aproximar e falar com ele e, após trocarem algumas ideias, Roman o convidou para realizar um estágio em seu laboratório na Universidade de Pittsburgh.

—Foi uma feliz confusão —conta-me Yvonne—. Roman nos tratou com tanta gentileza… Lembro-me de que tinha uma risada explosiva. Nenhum de nós teve dúvidas. Então, comecei a procurar um grupo que pudesse me interessar. E que me aceitasse, claro! O que mais me chamou a atenção foi um que trabalhava em metalurgia. E Pittsburgh era conhecida como a cidade do aço: o que poderia dar errado? —brinca.

Eles escreveram os respectivos projetos, aplicaram e conseguiram uma bolsa Fulbright cada um. Mas, uma vez lá, Yvonne se decepcionou ao verificar que, no seu laboratório, os equipamentos não estavam totalmente operacionais, e o ambiente não era o mais motivador. Seus colegas lhe pareceram meio depressivos. Um pouco desequilibrados, até. A situação que encontrou era bem distante de suas expectativas.

—É preciso ter cuidado —diz-me—. Sobretudo, no início. Eu sei que muitos jovens abandonam suas carreiras devido a uma má primeira experiência. No meu caso, tive sorte.

Nas primeiras semanas, simplesmente tentou se acostumar. Afinal, aquela experiência era algo passageiro, mais uma anedota em sua vida. Decidiu matricular-se em alguns cursos de seu interesse, para que sua estadia fosse o mais frutífera possível e lá comentou levemente o problema com seus colegas. Estes, em geral, disseram-lhe que nem tudo estava perdido e recomendaram que tentasse mudar de laboratório.

—Eu não imaginava que isso fosse possível. Uma vez escrito e aprovado o projeto…

Yvonne fantasiou com essa ideia e sondou discretamente o terreno. Nunca esqueceria as palavras do professor G.A. Jeffrey, que a princípio se absteve de intervir, mas que uma manhã lhe disse: «I have a desk for you».

—Todos esses anos me convenceram da importância de flexibilizar a burocracia. Eu acredito que essa é a única maneira de possibilitar o progresso —diz-me—. E isso vale para qualquer disciplina. As regulamentações excessivas amarram o talento das pessoas.

Assim, Yvonne chegou a um laboratório de nível mundial especializado em cristalografia. Para a Química e a Física do estado sólido, um cristal é, simplesmente, um material que possui uma estrutura interna regular. Ou seja, os átomos que o compõem estão distribuídos de forma organizada no espaço: apresentam simetrias e padrões que se repetem. A maior parte da matéria sólida encontra-se em estado cristalino. Sais, metais, minerais ou semicondutores são apenas alguns exemplos. Também algumas moléculas biológicas, como vitaminas, proteínas ou o DNA, cristalizam sob determinadas condições. O padrão elementar (o grupo de átomos) que se repete nos cristais é conhecido como cela unitária. A regularidade estrutural desses materiais faz com que sua interação com ondas eletromagnéticas de tamanhos semelhantes ao raio de seus átomos (λ~0,1 nanômetros) origine padrões periódicos de difração. Os raios X têm, precisamente, comprimentos de onda dessa ordem de magnitude. A técnica consiste em irradiar a amostra com raios X e girá-la para capturar os padrões correspondentes às diferentes orientações. São medidas indiretas, já que não formam imagens como nossos olhos ou como as câmeras fotográficas. Por isso, é necessário realizar uma análise posterior («processar os dados»), para inferir ou «resolver» a estrutura subjacente.

No laboratório, Yvonne trabalhou sob a supervisão de Bryan Craven. Ele havia chegado da Nova Zelândia poucos anos antes, mas já era um renomado cristalógrafo no departamento. E aquele departamento, era um dos mais avançados do mundo em cristalografia. Eles não se limitavam a observar diferentes amostras, mas também trabalhavam no desenvolvimento de métodos experimentais, como a melhoria dos aparelhos, especialmente das fontes geradoras de raios X, ou em métodos de cálculo que agilizassem a análise dos padrões.

—Ainda não haviam aparecido os computadores. Analisar aqueles padrões era um trabalho artesanal. Para nos ajudar a calcular, usávamos cartões com séries de números, que eram guardados em duas grandes caixas de madeira: uma para as operações com senos e a outra para as operações com cossenos.

Durante sua estadia, Yvonne aproveitou para revisitar a bibliografia fundamental. Desde aqueles artigos que estabeleceram as bases da mecânica quântica, até os mais contemporâneos que tratavam sobre a difração e a produção de raios X. A elegância com que os artigos daquele período são escritos causa admiração entre os cientistas modernos. Neles, pode-se perceber uma constante vocação cosmológica: apesar de aqueles cientistas antigos trabalharem no concreto, nunca deixavam de considerar o todo, o geral. Quando falavam da luz, falavam também do mundo.

—Há alguns textos que você lê e te dão força para seguir adiante.

—E o que será que eles têm? É porque são simples e claros ao mesmo tempo?

—É porque te fazem sentir inteligente; e segura. Inteligente porque algumas frases ou equações bastam para você ser capaz de compreender coisas que, aparentemente, são muito complicadas. E seguro ao perceber que existe uma estrutura no universo. Uma estrutura que, de fato, podemos medir.

No entanto, em contraste com o esplendor dos artigos teóricos, o trabalho experimental era árduo e estava cheio de obstáculos. No laboratório, as leis se confrontam com as limitações técnicas, com os erros de medição, com as fragilidades das teorias e com a complexidade dos fenômenos. Em cristalografia, os modelos utilizados nas análises representam cristais ideais, perfeitamente simétricos e regulares, sem defeitos nem bordas. Às vezes pode acontecer de dois modelos se ajustarem igualmente bem às medidas. Especialmente, se estas são ruidosas; e muitas vezes o são.

—As principais limitações da cristalografia são que nem todas as substâncias cristalizam naturalmente e que a resolução da técnica depende do grau de perfeição dos cristais. Os defeitos empobrecem as medidas.

—Isso deve ter sido frustrante. Pelo menos no início…

—Não, não, nada de frustrante. Eu sempre gostei do trabalho no laboratório. Às vezes você não obtém resultados; outras vezes tem sorte. Mas gosto de estar focada e tentar avançar pouco a pouco. Além disso, as coisas perfeitas estão mortas por necessidade.

Durante aquele ano de trabalho em Pittsburgh, Yvonne teve a sorte de obter um resultado inesperado. Acontece que o ácido que haviam escolhido estudar não era um composto comum. Continha uma molécula de água e uma ligação por ponte de hidrogênio bifurcada, algo que se supunha que deveria existir na natureza, mas que até então nunca havia sido observado. Os resultados foram publicados, em coautoria com Bryan Craven, na prestigiosa revista Acta Crystallographica.

—Eu nunca fui de ter ideias brilhantes, como alguns dos colegas que tive. Mas soube ser constante e não perder o foco.

—A maioria dos cientistas que conheci se destaca mais pela capacidade de trabalho do que pela genialidade —digo a ela—. Pelo menos pela minha experiência, o dia a dia do cientista moderno é bastante prosaico.

—Pois é. Criaram-se muitos mitos ao redor da nossa profissão. Pelo que vejo, você pretende desmistificá-los. Não é? Acho bom —diz; e me deseja boa sorte—. A constância no trabalho é a única magia que existe.