3 – Estudante universitária (1949-1954)

Decidida a retomar o caminho das ciências naturais, Yvonne inscreveu-se em um curso preparatório para o exame de acesso à carreira de Química. O professor que o ministrava chamou sua atenção desde o primeiro dia. Era Sergio Mascarenhas, naquela época um jovem de boa família que prometia muito.

—Eu acho que ele era um pouco travesso, sim… —conta-me Yvonne—. Sempre aparecia com alguma ideia nova na cabeça.

Após alguns meses, passaram de colegas de faculdade a namorados. Apesar de Sergio tirar boas notas, havia cultivado a fama de ser mais inteligente do que demonstrava. Tinha gosto pela cultura e suficiente carisma para que as pessoas o escutassem com prazer.

—Sergio gostava de contar suas histórias; e as contava muito bem…

Nenhum dos dois estudava apenas por estudar. Além do diploma, que provavelmente lhes garantiria um bom emprego, tinham certo interesse nas questões que o campo da Química levantava e uma confiança, um tanto ingênua, de que as veriam resolvidas muito antes de envelhecerem. Quem poderia ignorar a euforia que se respirava então nos ambientes científicos? A teoria da relatividade e, sobretudo, a mecânica quântica, eram tão recentes e, no entanto, tão palpáveis… Não só haviam mudado o paradigma, o marco teórico a partir do qual se interpretava o mundo, mas haviam sido capazes de transformar a própria realidade. Tinham se materializado na vida cotidiana das pessoas através de livros e filmes de ficção científica, de paradoxos sugestivos, de foguetes teleguiados, de protótipos de raios laser ou de ressonância magnética. Pela primeira vez, o arquétipo do cientista genial ultrapassava os limites da academia para se tornar um referente popular. Predominava a sensação de que quase tudo estava por fazer e de que os cientistas, com sua ciência, seriam capazes de submeter o mundo natural à vontade do homem.

Algumas décadas antes de tudo isso, no período compreendido entre 1900 e 1930, a discussão sobre a natureza da luz encontrava-se em seu ponto mais alto. O que era, realmente, a luz? Do que era composta? Questões, sem dúvida, muito antigas que, devido a desenvolvimentos técnicos como os tubos de raios catódicos ou as fontes de luz ultravioleta, de repente era possível enfrentar de uma maneira mais precisa. Antes de mais nada, convém destacar que as ciências estão imersas na história e que o progresso de seus campos ocorre de maneira problemática e acidental. Esses processos de construção do conhecimento, ao serem reconstruídos depois por historiadores ou apresentados por divulgadores da ciência (como eu), aparentam, de maneira enganosa, ter seguido um curso certo e retilíneo. Como se os cientistas envolvidos neles tivessem à disposição, em cada momento, toda a informação que nós temos agora; como se todos eles tivessem remado sincronizados na mesma direção, sem rupturas. A verdade é que as ciências avançam aos tropeços e que o método científico exemplar, aquele que é descrito nos livros didáticos, ocorre, se é que ocorre, em uma escala muito maior que a dos indivíduos: ao articular-se o trabalho de centenas ou milhares de pesquisadores, ao longo de períodos prolongados de tempo. Dito isso, vamos fazer história da ciência para ilustrar, de maneira esquemática, a maneira como Rudolf Hertz, Max Planck, Philipp Lenard, Albert Einstein, Robert Millikan, Arthur Compton, e muitos outros colegas, aplicaram o método científico ao problema da radiação eletromagnética.

Como já mencionei, é enganoso apontar um objetivo claro para um projeto tão amplo, mas, para o caso, vamos supor que esse objetivo fosse determinar as propriedades fundamentais da luz. O primeiro passo consiste em projetar experimentos controlados, que permitam variar certas condições e medir certos efeitos. Por exemplo, um dos mais significativos, realizado no laboratório de Philipp Lenard, consistia em irradiar luz ultravioleta sobre uma placa metálica. Essa luz, por meio de uma troca de energia, arrancava elétrons dos átomos constituintes da placa, e esses elétrons, por sua vez, eram levados a circular por um tubo de raios catódicos. Como se vê, a abordagem era simples: um feixe de luz que, ao incidir sobre uma placa de metal, produz uma corrente de elétrons. Os instrumentos disponíveis permitiam medir com precisão suficiente a intensidade dessa corrente (a quantidade de elétrons circulando pelo tubo) e sua energia cinética (a velocidade com a qual estes se deslocavam). Para completar o experimento, bastava repetir essas medidas, variando de forma sistemática certas condições, como a intensidade ou o comprimento de onda da luz irradiada sobre a placa. Paralelamente, em outros laboratórios, realizavam-se diferentes experimentos também relacionados com a produção de radiação eletromagnética e sua interação com a matéria. Por exemplo, ionizando gases em vez de placas metálicas, ou correlacionando a temperatura de metais incandescentes com a cor que adquiriam. Uma vez coletados os dados, o próximo passo do método científico consistiria em formular uma teoria geral (uma equação matemática; uma lei) capaz de abrangê-los. Foi precisamente Einstein, em seu famoso artigo de 1905 «Heurística da produção e conversão da luz», que apresentaria uma teoria que explicava estes e muitos outros resultados, cuja relação não era de todo evidente. O revolucionário da equação proposta por Einstein era o fato de que, para se chegar a ela, era necessário considerar a luz como um conjunto de pequenas partículas individuais e não como um contínuo de ondas, como até então se assumia. Para alguns dos cientistas de linha de frente mundial, a ideia de Einstein, já sugerida sem muito convencimento um tempo antes por Planck, era inaceitável. E aqui chegaria o último passo do nosso método: fazer uso da lei proposta para realizar previsões (deduzir, do geral para o particular), que deveriam ser comprovadas por experimentos posteriores. Nas décadas seguintes, vários laboratórios dedicaram seus esforços para mostrar as fragilidades da teoria de Einstein. Uma das tentativas mais célebres foi, sem dúvida, a de Robert Andrews Millikan. Para ele, a explicação que Einstein dava em seu artigo parecia, a princípio, «uma hipótese audaciosa, para não dizer insensata». Mas a controversa equação resistiu a mais de dez anos de experimentos. No de maior relevância histórica, Millikan irradiou superfícies de sódio, em um esquema similar ao de Lenard, que, por meio de uma melhoria no desenho, fornecia medidas mais precisas. E, apesar de ter conseguido estimar a constante de Planck (h) com uma margem de erro sem precedentes, os resultados que obtinha ajustavam-se ocasião após ocasião à equação de Einstein. A partir de então, Millikan aceitaria sua utilidade sem reservas, mas atribuiria a um truque matemático que não correspondia com a verdadeira essência da coisa: neste caso, a luz. A seu ver, aquela fórmula era, simplesmente, uma magnífica ferramenta para realizar cálculos e estimativas. «A equação fotoelétrica de Einstein parece predizer exatamente todos os casos observados. No entanto, a teoria semicorpuscular pela qual Einstein chegou a ela, parece completamente insustentável», escreveria em um de seus artigos.

Esta era uma posição difundida entre os físicos da época. A essa altura, era incontestável que a luz era composta por ondas: fato que havia sido observado, de maneira manifesta, em incontáveis experimentos; experimentos ópticos mais diretos que os de Einstein, nos quais não havia necessidade de interpretações complicadas. Podiam-se apreciar as interferências das ondas de luz diretamente com os olhos, o mesmo comportamento que ocorria com as ondas de água em um tanque. De modo que não era possível que a luz estivesse formada, também, por partículas. Afirmar que uma coisa é uma coisa e ao mesmo tempo é outra significava contradizer os princípios mais básicos da lógica. E se resultasse que o mundo natural, o objeto de estudo das ciências, era intrinsecamente contraditório, então estas, baseadas na lógica, na geometria, e no rigor das matemáticas em geral, seriam totalmente incapazes de explicá-lo. Esta foi uma batalha que não se travou até a morte. Para os envolvidos, não estavam em jogo o sustento ou o território; nem sequer seus empregos. O que estava em jogo era, no máximo, um pedaço da verdade, e esta lhes pertenceria a todos mais ou menos igualmente uma vez que o assunto estivesse resolvido. De fato, quando em 1923 Arthur Compton apresentou os resultados de uma série de experimentos realizados com raios X nos quais ficava claramente evidente que estes apresentavam um comportamento corpuscular, os céticos o aceitaram com certa surpresa, mas com certo júbilo, também. Somente a partir desse momento, as principais instituições científicas (academias, editoras, universidades, etc.) declarariam que a natureza quântica da luz e sua dualidade onda-partícula haviam sido comprovadas. Havia ocorrido uma mudança de paradigma*.

Além de suas implicações teóricas ou filosóficas, o entendimento das propriedades fundamentais da radiação eletromagnética permitia manejá-la de maneira prática. Toda aquela pesquisa básica dava seus frutos em forma de produtos tecnológicos. Dentro do âmbito das próprias ciências, uma das aplicações resultantes mais relevantes seria a cristalografia.

—Você sabia que um pequeno defeito pode mudar a capacidade de condução elétrica de um material? —pergunta-me Yvonne; eu digo que sim—. A cristalografia estrutural foi uma revolução porque a organização da matéria em pequena escala está relacionada com suas propriedades em nível macroscópico. Além disso, como o Brasil sempre foi um país rico em minerais, a cristalografia tinha que se estabelecer aqui de um modo ou de outro.

Alguns dos primeiros materiais a serem resolvidos por essa técnica foram o grafite, o magnésio e o aço. Mas o uso da cristalografia não estava limitado à matéria inorgânica. Em algumas décadas, já se aplicava de maneira sistemática também a amostras biológicas. Em 1951, no laboratório de Rosalind Franklin, foi tirada a primeira imagem do padrão de difração de raios X de fibras de DNA cuja interpretação levou à famosa estrutura de dupla hélice. Da escala micrométrica (a dos microscópios e das células inteiras) atingia-se assim até a de seus componentes nanométricos. O «ver para crer» começava a se tornar um lema. Precisamente nesse mesmo ano, outro professor, Elisiário Távora, de quem Yvonne guarda uma boa recordação, ensinava na aula do terceiro ano da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sobre teoria e prática da difração de raios X. Começou por esboçar a tessitura que proveria os fundamentos da mecânica quântica: os problemas da formulação clássica, os experimentos e as impressões de Planck, o átomo de Bohr e, claro, a extraordinária história de Einstein, Compton e Millikan. A de Millikan impressionou Yvonne. Se os seres humanos tinham criado uma metodologia capaz de escrutinar a realidade com tal agudeza e grau de verdade que, por mais que alguém se empenhasse em demonstrar suas hipóteses, se os experimentos fossem realizados com suficiente rigor, a realidade se pronunciava por meio deles, de uma maneira tão contundente que não deixava lugar para dúvidas… Se uma metodologia assim existia e era, de fato, a Ciência, então ela queria aprender a manejá-la e embarcar em seu projeto.

—Eu continuo acreditando que o progresso do conhecimento nos aproxima cada vez mais da verdade —diz-me enquanto se ajeita na sua poltrona—. Por outro lado, tenho menos fé, por exemplo, nas ciências jurídicas. Se até os próprios juízes dizem que a lei deve ser «interpretada». Se não é possível saber o que realmente é verdade, talvez seja confuso chamá-las de ciências. Não é mesmo? Ao menos a Química produz resultados objetivos; ainda que só dentro de um determinado conjunto de experimentos, mas são inquestionáveis. Podemos nos entender com um professor da China, da Espanha ou da Macedônia falando sobre eles…

Um dos meus principais objetivos nessas conversas com Yvonne era precisamente entender qual era a ideia de ciência que ela tinha. Por isso fiquei satisfeito, no meu papel de jornalista, com aquela resposta tão contundente, segundo a qual: «as ciências, para ser ciências, devem oferecer resultados objetivos». Porém, a definição de ciência é algo problemático; um problema que em filosofia se denomina como «problema da demarcação» e que tentamos resolver há mais de 3000 anos. Suponho que por isso, Yvonne não ficou satisfeita com suas palavras e algumas semanas depois trouxe o assunto novamente. Estávamos conversando sobre as Conferências Pugwash e o desarmamento nuclear, quando ela me disse:

—A respeito daquilo que eu falei sobre as ciências jurídicas…

Eu assenti com um sorriso cúmplice; não podia evitar pensar que Yvonne, apesar dos seus mais de 90 anos, ainda conservava aquele gosto pelas coisas bem-feitas e aquela capacidade de foco.

—Eu fiquei pensando mais um pouco —continuou—, e cheguei à conclusão de que a minha afirmação foi pejorativa e pouco adequada. Eu preferiria que você não a incluísse no seu texto. Porque de fato, o termo «ciência», de uma maneira mais geral, deve ser entendido como conhecimento. Tem-se a necessidade de qualificar como ciências os três ramos do conhecimento: ciências exatas, ciências biológicas e ciências humanas. As ciências jurídicas seriam parte desse terceiro. E todos são de imenso valor para o desenvolvimento da humanidade. Isso é o que eu realmente penso.

Eu fiquei em silêncio. Infelizmente, naquele dia não tínhamos tempo para entrar de novo naquele complicado assunto. Mas Yvonne ficou tranquila. Percebeu que agora eu tinha compreendido melhor a sua postura. Por algum motivo, parecia confiar em mim; parecia confiar nas pessoas em geral.

Naquela época, os cientistas, além de serem pessoas admiráveis e admiradas, eram poucos e gozavam de boas condições de trabalho. Yvonne começou a prestar mais atenção nos que trabalhavam em sua faculdade. Fez algumas perguntas, fez alguns cálculos, e o caminho pareceu-lhe viável. A partir daquele momento, sem pressa, mas sem pausa, cada um de seus passos estaria orientado a se tornar uma cientista. Provavelmente ainda não sabia, mas essa determinação seria a virtude que impulsionaria o sucesso de sua carreira profissional.

Pelo momento, para Sergio e Yvonne, a vida no Rio de Janeiro era luminosa, e as responsabilidades que assumiam, opcionais. Sergio havia passado parte de sua adolescência em um rigoroso internato e, pouco depois de sair, havia encontrado uma companheira que demonstrava, a cada gesto, que nunca o abandonaria. Eram jovens, tinham amigos, família e a vontade de mirar alto. Certa manhã, o professor Joaquim da Costa Ribeiro teve a cortesia de saudar Yvonne pelo seu nome.

—Senti-me tão lisonjeada… Ele era muito famoso, no Brasil e no exterior, por ter descoberto o efeito termoelétrico. E eu, apenas uma aluna… Não esperava, mas assim foi.

Yvonne revisou, com mais atenção, os principais trabalhos publicados por Costa Ribeiro e tentou se aproximar dele. Não lhe foi difícil conseguir uma vaga em seu laboratório. Recebeu uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no valor de um salário mínimo, destinada à iniciação de alunos no trabalho de pesquisa científica. Yvonne envolveu-se no maior número de tarefas possíveis. Seus colegas gostavam de trabalhar com ela, porque era uma jovem decidida e sua companhia era agradável. Aqueles primeiros contatos não foram nada traumáticos. Pelo contrário, Yvonne teve a sensação de que aquele tipo de trabalho se ajustava bem às suas capacidades. Após se familiarizar um pouco mais com aquele ambiente, percebeu que tinha certas lacunas no manejo da linguagem matemática. Sergio, ao saber de suas preocupações, propôs que ambos se matriculassem no curso de Física, e assim fizeram, no horário noturno, para poder cursá-lo simultaneamente.

—Até que ponto seus professores determinaram sua carreira?

—Acho que determinaram bastante o rumo que tomei dentro da ciência. Mas que, de qualquer forma, eu teria sido cientista.

Em 1954, recém-formados, casaram-se na igreja de Santa Terezinha. Passaram a lua de mel em um antigo mosteiro em Salvador da Bahia no qual se alojava o CRINEP da Bahia, a convite do Anisio Teixeira, que por então já era um renomado educador no Brasil. Ali deram aulas em troca da hospedagem. Ao voltar, compraram um belo apartamento no bairro de Ipanema com a parte da herança que uma avó de Sergio havia deixado. Ali nasceu o primeiro filho deles, Sergio Roberto; Yvonne tinha apenas 24 anos. Os meses seguintes ela lembra como sendo muito agitados.

—Apesar de estarmos perto de terminar alguns projetos, tive que diminuir quase completamente minha presença no laboratório, porque demorava uma hora para ir e outra para voltar, e o bebê queria que eu estivesse sempre com ele. Se o deixava deitado no berço, ele reclamava com seus choros —diz, e sorri ao lembrar desses momentos—. Eu sempre tive muito amor pelos meus filhos.

Para o casal Mascarenhas, era o momento de buscar um trabalho fixo, em tempo integral e com registro em carteira. Não demoraram muito para encontrar. Naquela época, o Brasil sofria com a escassez de professores universitários titulados e, além disso, o sistema de ensino superior estava em plena expansão. Curiosamente, foi o pai de Yvonne quem trouxe a melhor oferta. Em uma de suas viagens, coincidiu por acaso com o diretor da recém-formada Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), vinculada à Universidade de São Paulo (USP), e este comentou que estavam procurando professores. O senhor Francisco falou de sua filha e de seu genro, e na semana seguinte ambos receberiam uma proposta informal. Alguns anos antes, a reitoria da USP havia optado por um plano descentralizador que distribuiria campi universitários por diferentes regiões do estado. Políticos e empresários de São Carlos empreenderam uma campanha enérgica para que sua cidade fosse uma das escolhidas e os vizinhos se mobilizaram, ilusionados com a possibilidade de abrigar uma escola de engenharia, privilégio até então reservado às grandes cidades. Em alguns de seus muros apareciam pintadas de cal, nas quais se lia: «Viva a Escola» ou «Nós queremos a Escola». Finalmente conseguiram: em 1953 seria inaugurada a primeira turma de alunos da EESC/USP. Três anos depois, quando Yvonne e Sergio comentaram a proposta com seus colegas do Rio de Janeiro, a maioria concordou que mudar-se para lá, para aquela cidade pequena e isolada, da qual nunca tinham ouvido falar, significaria um suicídio intelectual. Mas, após uma visita e diante das condições e das promessas decididas do diretor, o professor Theodoreto de Arruda Souto, o casal decidiu aceitar a oferta.