A vida secreta dos micróbios

Por Suzana Correa Petropouleas

 Com linguagem bem-humorada e simples, pesquisador e jornalista narram as descobertas e desafios acerca do um trilhão de minúsculas criaturinhas que nos rodeiam, nos habitam e nos afetam, da saúde emocional ao peso

Quando a filha de Rob Knight nasceu numa cesárea de emergência, o pesquisador e autor de A vida secreta dos micróbios: como as criaturas que habitam o nosso corpo definem hábitos, moldam a personalidade e influenciam a saúde muniu-se de vários cotonetes e pincelou o bebê – da cabecinha aos pés, passando pelos lábios e todo o rosto – com os micróbios coletados na mucosa vaginal de sua esposa e mãe da menina. “O nosso bebê precisava desses micróbios!”, escreve.

Se alguém entende a importância dos micróbios para a saúde, é Knight. O neozeolandês professor na University of California, em San Diego, é uma das maiores autoridades no assunto. O livro é fruto de esforços contínuos de conscientização sobre os desafios, as descobertas e a importância do mundo microbiótico para a saúde, e foi escrito em parceria com o premiado jornalista científico Brendan Buhler, após apresentação de Knight sobre o mesmo tema numa TED Talk.

“Embora mulheres diferentes tenham comunidades microbianas diferentes, durante a gravidez todas essas comunidades chegam a um mesmo estado”, conta. “Vamos supor que os primeiros micróbios do bebê venham do canal de parto e da vagina da mãe. O que acontece se alguém não nasce por aí?”.

Apesar de não existir comprovação científica sobre a eficácia a longo prazo de métodos pouco ortodoxos como o do autor (estudos-pilotos são feitos no laboratório do professor), sabe-se que bebês nascidos via parto natural e cesárea apresentam diferentes microbiomas imediatamente após o nascimento – e as cesáreas têm relações comprovadas com maiores taxas de doenças associadas ao microbioma e ao sistema imunológico. São questões como essas que movem as pesquisas de Knight e são o fio condutor do livro com Buhler.

Com linguagem acessível e bem-humorada, os autores explicam a atuação e a importância do microbioma humano para além da tradicional e já obsoleta visão das bactérias como seres predominantemente malignos, associados exclusivamente a enfermidades e moléstias das mais variadas.

A microbiologia dessas comunidades é uma área de estudo de rápida expansão e os resultados têm impressionado especialistas. Já é possível traçar relações diretas, escrevem Knight e Buhler, entre baixa diversidade de comunidades microbianas no intestino e a obesidade; e entre baixa exposição a bactérias de contato no solo a doenças que envolvem reações inflamatórias, como diabetes, artrites e depressão. As descobertas dos últimos anos têm sido possibilitadas pelo barateamento de custos e impulsionada pela identificação e mapeamento do genoma dos trilhões de micróbios que habitam nosso corpo – finalizado em 2016 pelo Projeto Microbioma Humano, que reuniu 80 instituições de pesquisa de todo o mundo.

“Eu acredito que a área mais promissora (e sub-estudada) é aquela que relaciona o microbioma intestinal com a saúde mental. É interessante, essa foi uma das coisas sugeridas por Francis Collins (um dos principais responsáveis pelo mapeamento) no lançamento do Projeto Microbioma Humano. Naquela época, muitas pessoas acharam que talvez ele precisasse checar sua própria saúde mental, mas evidências do papel que os micróbios exercem no eixo intestino-cérebro têm se acumulado rapidamente desde então (embora estudos em humanos ainda sejam raros)”, explica Knight em uma sessão de Pergunte-me Qualquer Coisa (Ask Me Anything, ou AMA) na plataforma americana Reddit – mais uma iniciativa do autor de divulgação científica sobre o assunto para o público não-especializado.

O estudo do microbioma humano é um passo além rumo à medicina personalizada, que permite prescrever recomendações e tratar doenças baseadas no genoma – e agora também no microbioma – de cada paciente. Um grande avanço uma vez que, do total de células em nosso corpo, 90% não são humanas – são células das bactérias, que estão principalmente nos intestinos.

O estudo dos micróbios para além do DNA humano é importante também porque é ali que reside uma gigantesca parte de nossa diversidade biológica. Knight e Buhler explicam que, embora todos humanos tenham 99% de DNA idênticos entre si, quando se trata da semelhança entre os micróbios intestinais esse número cai para 10%. Em um adulto mediano, 1,3kg do peso corpóreo corresponde aos micróbios que o habitam.

Os autores também inserem no livro os novos estudos que têm indicado o potencial de soluções inovadoras e eficazes, como o transplante fecal para tratamento de diarreias fatais (como a causada pela C.difficile) e obesidade, realizados apesar dos desafios para a pesquisa em humanos e o cultivo dessas culturas (pouquíssimos micróbios crescem em laboratório, aprende-se na obra). O uso indiscriminado de antibióticos e seus efeitos negativos para o equilíbrio do microbioma, da infância à morte, também são temas de capítulo do livro.

Num claro esforço de divulgação e educação científica, os autores buscam traduzir conceitos e questões complexas da microbiologia de maneira didática e divertida – como a diferença entre micriobioma e microbiota e a história da teoria do germe de Leeuwenhock e Pasteur. No apêndice “Saiba mais: a ciência (e a arte) de mapear o microbioma”, são explorados conceitos como de árvore filogenética e métodos rebuscados de pesquisa como análise seccional cruzada e estudos longitudinais, contextualizados a partir dos desafios mais recentes nos estudos dos micróbios e apresentados pelos autores ao longo do livro. O tom de conversa entre amigos e a linguagem informal facilitam a compreensão por leitores dos mais diversos níveis de conhecimento e interesse científico.

Em 2015, Rob Knight co-fundou o “American gut project”, descrito como o maior projeto baseado em financiamento coletivo a reunir cidadãos e cientistas no estudo da flora intestinal no continente americano. Sua experiência em bioinformática também o ajudou a co-fundar a iniciativa de detalhamento e sequenciamento genético das comunidades de micróbios do mundo todo, pelo “Earth microbiome project.

É marcante também o esforço dos autores em capacitar o leitor para explorar as fascinantes questões expostas pelo livro por conta própria. Como entender as novas pesquisas sobre o uso de uma bactéria no tratamento da doença de um familiar, como diabetes e depressão? Como selecionar e interpretar os estudos disponíveis? Knight convida o leitor a se informar e dá dicas sobre como selecionar as fontes de informação: “Ao pesquisar se os micróbios podem curar doenças, devemos procurar pelos resultados positivos de muitos estudos, sobretudo aqueles que encaram o problema de ângulos diferentes. Descobertas desse tipo costumam ser mais sérias, assim como as descobertas de estudos com mais sujeitos”, escreve.

Quanto às recomendações de probióticos, atualmente muito em moda em blogs de lifestyle e saúde recheados de achismos e suposições, Knight explica ao leitor a dinâmica de ensaios randomizados e sugere: “Vale a pena perguntar ao médico ou ao farmacêutico se eles têm para recomendar probióticos baseados em ensaios randomizados controlados (ou seja, a mais robusta das pesquisas). Se não, é possível procurar as últimas pesquisas em revistas científicas (até o momento em que escrevo, não existem fontes que reúnam informações voltadas para os pacientes)”, indica, ressaltando a ausência de mais fontes de informações sobre o assunto digeríveis para o público não-especializado.

A obra reflete a preocupação do pesquisador em promover o engajamento cívico na ciência, também presente no projeto American Gut pelo uso do conceito de citizen science, descrito na plataforma do projeto como “projetos que dão as boas-vindas à participação do grande público na descoberta e compartilhamento de conhecimento científico”. O projeto recebe amostras fecais de voluntários de todo o continente americano para análise e mapeamento dos micróbios intestinais. Mediante pagamento de cerca de 100 dólares, os doadores recebem online a análise de seu microbioma.

A relação de benefício mútuo entre os pesquisadores e cidadãos – tão comum na simbiose entre humanos e micróbios, objetos de estudo da área – é essencial também para os avanços dos estudos.

Suzana Correa Petropouleas é aluna da pós-graduação em jornalismo científico do Labjor (Unicamp) e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).