Universidade pública e para todos os públicos

Por José Alves de Freitas Neto

 A realização de provas únicas (os famosos vestibulares) indica que a universidade, tão criativa em seu interior, é pouco original na seleção de seus futuros alunos. O imperativo de que o acesso deva ocorrer por um sistema universal de disputa de vagas mascara as diferenças escolares e sociais existentes e produz um ambiente muito homogêneo, perfil que contribui para o distanciamento. A universidade fechada em si mesma é um equívoco que remonta ao modo naturalizado de ingresso. Por quem e para quem é a universidade pública? A resposta é simples: para todos os públicos, de todas as rendas e de todas as experiências escolares. Ali, a experiência muda a vida dos mais vulneráveis socialmente, mas também das elites. Para além dos conhecimentos, aprende-se regras para a cidadania e o combate à cultura de privilégios. A universidade é um laboratório para o convívio democrático.

A importância da universidade pública para uma sociedade é inquestionável. A construção de espaços de saber, com diferentes características e historicidades, é a potencialização do atributo humano do pensar, do desafiar a sua condição de ignorância e enfrentar os desafios de seu próprio tempo. A universidade, dentre tantos atributos, preserva parte da experiência acumulada em todos os campos e, graças a ela, conhecimentos e valores novos são produzidos e legados a gerações presentes e futuras.

A universidade pública, com a plena acepção do termo, é aquela que pertence a todos e, por extensão, deve ter como objetivo máximo cumprir premissas republicanas e democráticas como a liberdade de pensamento, a liberdade científica e as plenas condições para realizar a sua função, sem qualquer forma de constrangimento ou cerceamento dos diferentes tipos de poderes. A universidade pública tem que ser autônoma para poder cumprir sua missão de produzir conhecimentos, saberes, ciências, tecnologias e impulsionar as artes e as culturas. Estar à serviço da sociedade significa pensar globalmente nos desafios existentes e, por conseguinte, não estar atrelada aos meandros do poder político, nem ser restrita a uma corrente de pensamento, partido, religião ou qualquer forma de organização ou corporação. De forma sucinta, a universidade deve respeitar diferentes engajamentos e, ao mesmo tempo, ser livre e plural.

Registradas essas premissas, emergem as questões que pretendo discutir neste texto: por quem e para quem é a universidade pública, especificamente, no Brasil? Quais conhecimentos circulam e como a universidade deve estar atenta às lógicas de preservação e transformação dos legados e produções realizadas até o momento? Dizer que as universidades são instituições de saber e poder não basta. É necessário pensar sobre quais são os saberes legitimados e por quem esses saberes são produzidos. A universalidade do conhecimento, representada pelas instituições universitárias, é falaciosa pois o acesso é bastante restrito.

A exclusão social, econômica e cultural é uma das características centrais da sociedade brasileira e, por extensão, as universidades públicas fazem parte desse sistema que se perpetua historicamente. A universidade pública, como um bem público, é desejada pelos estudantes e suas famílias, mas preserva as marcas da desigualdade que perpassa o sistema escolar como um todo. Mesmo que os dados de matrículas na educação básica apontem para o cumprimento do preceito constitucional do direito à educação, é sabido que a disparidade entre os estudantes é gritante e expressa as diversas desigualdades existentes no país (étnica, racial, social, regional, de gênero etc.). Sendo a universidade o cume de um complexo sistema, as marcas das exclusões tornam-se mais nítidas. O Brasil possui, pelos dados mais recentes, apenas 17% da população jovem matriculada nas universidades.

Políticas de inclusão e novas formas de acesso

A adoção de políticas de inclusão como cotas ou sistemas de bonificação, tanto para estudantes de escola pública como por critérios de renda e/ou étnico-raciais, em vigor desde 2003, alterou o perfil das universidades públicas. Porém, para além dos dados de ingressantes, há a percepção de que a matriz de seleção é basicamente pautada pelo desempenho em provas de conhecimento como o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e os vestibulares.

A manutenção desse modelo de provas está de tal forma internalizada e naturalizada que a simples indagação sobre os sistemas de provas parece ser um ataque a algum dogma que orienta a estruturação do acesso às universidades públicas. É claro que os vestibulares gozam de grande prestígio e respeitabilidade por serem ações extremamente sérias e conduzidas com a imparcialidade que se espera no acesso à universidade.

Entretanto, a realização de provas únicas ou excludentes indica que a universidade, tão criativa em seu interior e com práticas acadêmicas tão distintas, é pouco original na seleção de seus futuros alunos. O intervalo entre as potencialidades individuais e as questões sociais, por exemplo, passa ao largo dos sistemas de avaliação. A atuação em projetos comunitários, a noção de engajamento na vida pública e social, o desenvolvimento de alguma atividade de pesquisa prévia, a curiosidade intelectual, o domínio de outras habilidades e a prática da empatia são aspectos que parecem inexistentes para os sistemas de ingresso.

Dessa forma, por mais criativas que sejam as questões e as provas de seleção, o escopo é preponderantemente definido por conteúdos que favorecem os estudantes com práticas educacionais consolidadas e não necessariamente os que possuem maior autonomia ou criatividade para a vida universitária. Os conhecimentos, tomados como algo quase corriqueiro, nos chegam por lugares diversos e as intermediações com o mundo que nos cerca tornaram-se mais complexas que as apresentadas nas escolas. Um exame de seleção nos moldes atuais é limitado a procedimentos, conteúdos e proposições que apresenta. A capacidade de pensar, estabelecer relações, elaborar hipóteses e interpretar procedimentos científicos e processos sociais requer contínuas análises, críticas e aperfeiçoamentos.

Os especialistas em educação, há muito, apontam para variáveis amplas como o acesso à escolaridade, o grupo social ao qual está inserido, as experiências culturais vivenciadas pelos estudantes e outros temas que explicam, apesar dos esforços de homogeneização da cultura escolar, a heterogeneidade de resultados em experiências educacionais aproximadas.

A educação é um campo em disputa no qual aspectos como cultura dominante e a emergência de outros saberes e protagonismos estimulam embates e reconfigurações contínuas. Essas disputas se refletem na composição do currículo, nas chaves interpretativas do que queremos ensinar, promover e excluir do cenário escolar. As recentes discussões sobre a reforma do ensino médio são um aperitivo sobre o que cabe ou não na formação escolar e que tipo de formação se pretende oferecer nas escolas. E, de forma análoga, a questão perpassa os vestibulares e exames de acesso às universidades.

É certo que apresentarmos essas críticas ao modo tímido como realizamos essas discussões não significa dizer que tudo o que vem sendo feito está equivocado. O acesso à universidade demanda práticas básicas como leitura, escrita, raciocínios lógicos, premissas científicas e formação histórico-cultural que estão presentes na formação inicial. Sem que esses pontos sejam contemplados as universidades não conseguiriam desempenhar suas atividades. E, no caso das universidades públicas, responsáveis por mais de 90% da pesquisa realizada no país, tais exigências são ainda mais necessárias.

Um caminho, iniciado pela Unicamp em 2019, é a diversificação das formas de acesso. Mesmo que preservando a estrutura de provas de conhecimento, os grupos possuem perfis diferenciados.

O Vestibular Unicamp, com sua tradição e com provas mais contextualizadas, é a principal forma de acesso e nele se aplicam as bonificações para os estudantes de escola pública de ensino fundamental II e ensino médio, assim como parte das cotas para autodeclarados pretos e pardos.

A utilização do Enem para aproximadamente 20% das vagas permite o acesso de estudantes de políticas de ação afirmativa (escola pública, negros e indígenas) e, colateralmente, a presença de estudantes que venham de cidades menores do estado de São Paulo, onde não são aplicadas as provas do vestibular, e de outras partes do país, considerando-se que o Enem possui grande amplitude geográfica e numérica.

A realização de um vestibular específico para estudantes indígenas significou que 2% dos ingressantes em 2019 viessem com outra bagagem cultural, repertórios e experiências. A metade dos estudantes indígenas veio do Amazonas.

A criação de um edital específico para medalhistas olímpicos contemplou estudantes com outro tipo de envolvimento e demanda em sua experiência escolar. As olimpíadas científicas estão cada vez mais consolidadas no cenário educacional e, para surpresa da Comissão de Vestibulares (Comvest), os aprovados não tinham um perfil elitizado do ponto de vista socioeconômico, nem mesmo um predomínio regional das unidades mais ricas da federação. A quantidade de estudantes do Nordeste é bastante visível nesse segmento, bem como a representatividade dos estudantes autodeclarados pretos e pardos foi semelhante às obtidas no vestibular. A nota dissonante do ponto de vista da inclusão, considerando-se que a maior parte das competições é na área de matemática, exatas e tecnológicas, é a baixa presença de mulheres entre as pessoas inscritas e, consequentemente, aprovadas nesta modalidade.

A continuidade do ProFIS (Programa de Formação Interdisciplinar Superior) e a seleção dos candidatos por escola indica que, mesmo com uma prova única (Enem), pode-se diversificar nos perfis de escolha, considerando-se que são contemplados, no máximo, dois estudantes por escola pública da cidade de Campinas. A heterogeneidade social de uma única cidade é visível nos resultados de quase uma centena de escolas.

Todos os públicos na universidade pública

A defesa da universidade pública, para ser mais efetiva, pressupõe a presença de todos os grupos em seu interior. O imperativo de que o acesso deva ocorrer por um sistema universal de disputa de vagas mascara as diferenças escolares e sociais existentes e produz um ambiente muito homogêneo. Esse perfil contribui para o distanciamento entre a universidade e os diferentes grupos sociais. A universidade fechada em si mesma é um equívoco que remonta ao modo naturalizado de ingresso.

Para as perguntas que me propus (por quem e para quem é a universidade pública?) a resposta é simples: para todos os públicos, de todas as rendas e de todas as experiências escolares. Para evitar a homogeneidade excludente do passado não se pode produzir um espaço que não seja o da convivência entre grupos diferentes. A experiência na universidade pública muda a vida dos mais vulneráveis socialmente, mas também das elites. Na universidade, para além dos conhecimentos, aprende-se regras para a cidadania, para o combate à cultura de privilégios e, sendo exitosas as experiências, constroem-se novos olhares para diferentes problemas. A universidade é um laboratório para o convívio democrático.

A produção de conhecimento sobre as grandes pautas nacionais e globais pressupõe ouvir vozes dissonantes, reconhecer perspectivas divergentes e criar novas proposições com um olhar crítico e respaldado pelos diversos campos de saber que coexistem nas universidades. A heterogeneidade dos procedimentos e o olhar de novos estudantes, pesquisadores e professores é algo a ser valorizado e estimulado dentro dos centros produtores de conhecimento. A criatividade, a reflexão, o debate respeitoso e o intercâmbio de ideias são algumas das premissas para a universidade produzir conhecimentos cientificamente relevantes, socialmente impactantes e culturalmente transformadores.

José Alves de Freitas Neto é professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest) da Unicamp. Autor de Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana (Annablume) e coautor de A escrita da memória (ICBS) e História geral e do Brasil (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).