Uma consciência 3.0 para as redações

Por Rogério Christofoletti

Tão logo passou o furacão, decidimos sair de nossos abrigos para observar os estragos. A internet, redes sociais, smartphones e tudo ao seu redor tinham varrido nossas certezas preservadas há décadas nas redações. A partir disso, sabemos todos, o jornalismo não foi mais o mesmo porque perdeu a primazia de informar, porque uma horda de amadores ocupou largos territórios e porque a economia da gratuidade chacoalhou (e fez despencar) muitos negócios na área.

Quando saímos para conferir os prejuízos, percebemos que não se tratava apenas de um furacão passageiro, mas de um processo longo e contínuo que devasta, mas também permite criar sobre os escombros. Compreendemos ainda que o jornalismo tinha sido assaltado não só por mudanças tecnológicas, mas, sobretudo, transformações culturais. Sem a exclusividade na prática de informar, jornalistas assistiram à corrosão das fundações do castelo da sua relevância. E quando fontes passaram a assumir alguns papéis da mídia, os jornalistas se assombraram, rechaçando a hipótese de início, e se curvando à realidade em seguida. Ninguém vai negar que as últimas duas ou três décadas têm sido inesquecíveis. Assombrosas e fascinantes também.

Na academia e no mercado, há quem busque novas palavras para cobrir algumas lacunas de sentido. Se antes falávamos de gatekeeping no jornalismo – a triagem do que precisa ser noticiado e do que vai ficar de fora – Axel Bruns (2005) sugeriu o derivado gatewatching, ação análoga, mas exercida por amadores, pessoas antes resignadas ao papel de “audiência”. O jornalista e guru midiático Jay Rosen (2006) se antecipou a corrigir: quem consumia conteúdos e também os produzia eram “aquelas pessoas que antes chamávamos de público”. Numa só palavra, entoada por alguns entusiastas: prosumers ou “prosumidores”, em bom português.

Se de imediato as redações, de um modo geral, rechaçaram a chegada dos amadores, logo, foi necessário converter a aversão em conversão. Sites de notícia abriram canais específicos para que o público participasse, enviando sugestões de pauta, fotos, vídeos, conteúdos que pudessem se encaixar na gramática jornalística. Emissoras de TV passaram a cadastrar cinegrafistas amadores em todas as partes, criando uma rede de colaboradores passível de ser acionada em pouco tempo quando necessário. Jornais, revistas e rádios também se renderam a iniciativas batizadas de “jornalismo cidadão”, “colaborativo”, “cívico”… De forma prática, os conteúdos passaram a encher as mesas das redações e alguns eram realmente muito mais relevantes jornalisticamente do que os produtos gerados pelos próprios profissionais. Percebeu-se que isso acontecia em tragédias socioambientais, zonas de conflitos bélicos e acontecimentos que não contavam com a cobertura de repórteres. Os amadores contribuíam com registros, flagrantes e testemunhos, e caberia às redações selecionar o material bruto, reembalá-lo em linguagem acessível e em formato sintético, e – não esqueçamos! – fazer a rigorosa verificação daquelas informações, antes de difundi-las publicamente. Parecia fácil. Parecia.

Quem investe em ética?

As diferentes formas de associação com os públicos permitiram à mídia ampliar sua capilaridade. Na realidade, nenhuma empresa jornalística pode espalhar repórteres em todos os bairros ou cidades. É impossível dispor de um jornalista em cada esquina. Mas se essas empresas contassem com a ajuda das pessoas comuns, seria possível alcançar os mais diversos rincões e receber informações frescas, específicas e atuais.

O raciocínio é linear, e, por isso, esconde ao menos três fatores que tornam a equação mais difícil: linguagem, técnica e ética. Isto é, os amadores podem se mostrar repórteres bastante espontâneos em certas situações, mas não adotam necessariamente as mesmas formas de comunicação que os jornalistas, nem dominam seus aparatos ou procedimentos técnicos, e muito menos têm os mesmos comprometimentos éticos que esses profissionais. Para atenuar essas dificuldades, algumas redações oferecem cursos e criaram guias e manuais de estilo para orientar os colaboradores no envio de conteúdos conforme algumas regras, que iam de cuidados estéticos – como a polidez nos textos e o enquadramento de cenas – a preocupações logísticas – como a resolução de fotos e a extensão mais apropriada de arquivos digitais. Entretanto, o aspecto ético foi simplesmente deixado de lado, como se fosse algo menos importante.

Ao mesmo tempo em que as redações se adaptavam aos novos tempos, outros episódios afetaram o jornalismo. Organizações como o WikiLeaks – que antes eram consideradas fontes de informação – passaram a publicar conteúdos socialmente relevantes e capazes de influenciar comunidades inteiras. Governos, corporações e atores do terceiro setor começaram a difundir seus balanços e dados em meios próprios, dispensando a intermediação dos grandes veículos. Assessorias de imprensa se aproveitaram do enxugamento das redações para ocupar um generoso espaço no noticiário, por meio de conteúdos que travestiam publicidade de jornalismo. Hipnotizados pelos muitos avanços tecnológicos, meios de comunicação abraçaram gadgets e sistemas, acreditando piamente que veriam suas incapacidades e inconsistências solucionadas. Mesmo sem qualquer regulamentação jurídica ou técnica, drones começaram a ser usados para cobrir grandes manifestações ou aglomerações populares. Eram experiências, mas as potencialidades técnicas de linguagem eram muitas. Em terra firme, minúsculas câmeras foram acopladas a óculos, e repórteres puderam captar imagens de forma inédita, e inadvertida. Robôs foram programados para redigir textos curtos e imediatos, obtidos a partir de dados reunidos por algoritmos.

Narrado dessa maneira, mais parece que estamos tratando de um passado longínquo, idílico, e sem a indesejável intromissão humana. Como se a sociedade e o jornalismo evoluíssem naturalmente, e rumo a um aperfeiçoamento jamais visto. Na realidade, nem uma coisa nem outra. Essas ações ainda estão no gerúndio, algumas são concomitantes e mutuamente influenciáveis, e todas elas têm nossas impressões digitais. A adoção de uma tecnologia, a determinação de alguns caminhos ou a assunção de certos papéis são escolhas humanas. Por trás do sistema com S maiúsculo estão pessoas, por trás dos surpreendentes algoritmos também. A negligência, a imprudência, o descaso, o malfeito e o abandono do cuidado também. Neste sentido, é possível afirmar que nossas redações podem ter ficado mais limpas, menos ruidosas, mais bem equipadas, mas não necessariamente mais éticas. A mídia continua a errar, seja por imperícia ou por decisões equivocadas, quase sempre no plano moral ou deontológico.

Como se sabe, a qualidade jornalística também depende da honestidade e da integridade de como foram obtidas, processadas, embaladas e disseminadas as informações. Se o público descobre, por exemplo, que a reportagem que denuncia corrupção no governo foi resultado de uma lista de ilícitos ou práticas condenáveis – como a chantagem – seu valor social se esfacela consideravelmente. A credibilidade é uma condição insubstituível no jornalismo, e uma conduta ética é seu alicerce.

A modernização dos espaços de produção jornalística não acarretou em imediata melhora da qualidade integral dos produtos e serviços da mídia. Talvez porque os investimentos feitos só se traduzissem na atualização de máquinas, na adequação de mobiliário e na compressão-redução de etapas do processo produtivo. Não se ouve dizer por aí que uma empresa injetou recursos para se tornar mais correta jornalisticamente. Muito provavelmente porque o aspecto ético seja tratado como pano de fundo ou como uma preocupação menor. Como pano de fundo, é algo que flui sozinho, que se ajusta sem grandes interferências. Algo pouco preocupante leva ao amortecimento e à letargia.

E se fizéssemos diferente? Se deontologia estivesse entre os conteúdos dos cursos de reciclagem de nossas equipes? Se criássemos um conjunto de protocolos que incentivassem ações mais responsáveis, rigorosas e cuidadosas por parte dos repórteres? Se estabelecêssemos padrões éticos mais exigentes? Se sacrificássemos um pouco a pressa da divulgação para adicionar mais um ou dois ciclos de verificação das informações? Se alimentássemos uma atmosfera de crítica e autocrítica, visando ao aperfeiçoamento do conjunto de nossos times e a consequente melhoria da qualidade do noticiário? Se, ao mesmo tempo, cultivássemos um ambiente de cooperação contínua e de enaltecimento de boas práticas jornalísticas nas redações? Isso tudo levaria os conglomerados de mídia à falência?

Mais ventania

A proposta por trás dessas interrogações é a injeção de verbas e a construção de modelos para a formação continuada em ética jornalística e para o desenvolvimento de metodologias novas e próprias que aperfeiçoem o plano deontológico nas redações. Diante da invasão dos amadores, da perda vertiginosa de credibilidade dos meios convencionais, dos algoritmos e dos robôs, dos hoaxes e das fake news, devemos reagir e aprofundar nossos cuidados e preocupações éticas. Precisamos revitalizar nosso entusiasmo em torno desses temas porque eles assaltam nosso cotidiano diariamente.

Nas últimas décadas, as trepidantes mudanças tecnológicas provocaram profundas transformações culturais, o que invariavelmente afeta nossos valores, julgamentos e condutas. Cecília Friend e Jane B. Singer (2007) viram razões para acreditar que temos uma nova ética jornalística, sendo necessário não apenas observar as tradições que a fundaram, mas as necessárias transições. McBride e Rosenstiel (2014) reúnem um amplo arco de autores que revitalizam os debates na área, à medida que listam preocupações emergentes, que passam por checagem de dados, storytelling na era digital, jornalismo investigativo, correção de erros, gerenciamento de comunidades de leitores, diversidade e as tensões entre público e privado. A compilação de Drushel & German (2011) segue a mesma direção, sinalizando para o que chamam de uma “ética da mídia emergente”. Kellie Mayo (2013) se mostra mais cética, e enfatiza que os dilemas são os velhos de sempre, apenas embrulhados em novas embalagens, como no caso da confidencialidade. Ward & Wasserman (2010) não perdem de vista os públicos que participam cada vez mais dos processos jornalísticos, e defendem a abertura da ética profissional a novos sujeitos, antes restrita à categoria dos jornalistas. Nick Couldry (2010) reforça esse movimento.

É um debate infrutífero esse que pretende decidir se temos uma nova ou velha ética para o jornalismo. Mais importante que o rótulo é a atenção dos jornalistas frente aos desafios que se apresentam todos os dias. Neste sentido, precisamos de uma Consciência 3.0 para as redações, que nos permita ler cenários complexos, identificar eventuais riscos éticos (Christofoletti, 2016), mobilizar valores, tomar decisões e agir por reflexão, não por reflexo, como já disse certa vez Clifford Christians (1998).

A implementação de algo do tipo requer um conjunto amplo e perene de investimentos não apenas financeiros, mas, sobretudo, políticos. Tornar prioritárias as preocupações éticas é um gesto volitivo, de assunção de uma postura e um caráter de enfrentamento. Como qualquer ato político deve provocar resistências e impasses, desgastes e fadiga. A decisão de adotar a ética como um plano que não apenas contém os atos jornalísticos, mas os atravessa e os redimensiona, é uma escolha que revela coragem, e que pode gerar dividendos financeiros inclusive. Philip Meyer (2007) e Javier Restrepo (2016) repetem isso a todo o momento.

O jornalismo se legitimou historicamente como prática à medida que contribuía para o tecido social, fazendo costuras de reforço para a democracia, e alinhavando franjas em torno da cidadania. A ideia de quarto poder e a possibilidade de servir de instrumento comunitário para o desenvolvimento local ainda habitam o imaginário coletivo, mesmo que a mídia atual reiteradamente nos decepcione. A frustração ainda não é permanente e, enquanto há tempo, por que não disseminar no jornalismo um comportamento que ele tanto exige dos políticos e das corporações? Dar um passo na direção da transparência pode sinalizar à sociedade que o jornalismo está disposto a se manter aceitável, útil e relevante. Convenhamos, em todas as partes, a mídia ainda é muito opaca sobre quem a controla, quais são seus interesses políticos e econômicos, e em que circunstâncias produz o que difunde.

Num projeto de implementação de uma Consciência 3.0 nas redações – que consiste em tornar a ética uma preocupação central no jornalismo – as empresas jornalísticas poderiam se insinuar mais transparentes, gesto que contribuiria de forma contundente à democracia. Afinal, se rendesse contas ao seu público, a mídia teria mais legitimidade para fiscalizar e cobrar transparência de agentes públicos e empresariais. Mais uma vez, a atitude requer energia e coragem, mas ela é mais adequada a essa nova ecologia das mídias em que vivemos, e mais calibrada com o ambiente das novas mídias.

Se os jornalistas e seus veículos recorrerem a uma nova consciência, o jornalismo terá mais condições para enfrentar outras tempestades. Quem sabe até novos furacões…

Rogério Christofoletti é professor de legislação e ética em jornalismo na UFSC, líder do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS) e pesquisador do CNPq.

 

Referências

Bruns, A. Gatewatching: collaborative online news production. New York: Peter Lang, 2005.

Christians, C. Media ethics: cases and moral reasoning. New York: Longman, 1998.

Christofoletti, R. “Ethical risks, informers, whistleblowers, leaks and clamor for transparency”. Brazilian Journalism Research, vol. 12, nº 2, 2016, pp. 54-73.

Couldry, N. “Media ethics: towards a framework for media producers and media consumers”. In: Ward, S.; Wasserman, H. Media ethics beyond borders: a global perspective. New York/London: Routledge, 2010.

Drushel, B. E.; German, K. (ed.). The ethics of emerging media: information, social norms and new media technologies. Auckland: Continuum, 2011.

Friend, C.; Singer, J. B. Online journalism ethics: traditions and transitions. Armonk-London: M.E.Sharpe, 2007.

Mayo, K. New pressures on old ethics: a question of confidentiality. London: Reuters Institute for the Study of Journalism /Oxford University, 2013.

McBride, K.; Rosenstiel, T. (ed.). The new ethics of journalism: principles for the 21st century. Los Angeles-Washington, Sage-CoPress, 2014.

Meyer, P. Os jornais podem desaparecer? São Paulo: Contexto, 2007.

Restrepo, J. D. El zumbido y el moscardón. Volume II. Cartagena/Medellín: FNPI/Tragaluzes Editores, 2016.

Rosen, J. The people formely know as audience. 27 de junho de 2006. Disponível em <http://www.archive.pressthink.org/2006/06/27/ppl_frmr.html>

Ward, S.; Wasserman, H. Media ethics beyond borders: a global perspective. New York/London: Routledge, 2010.