Um conto e duas cidades: nazismo à moda do nosso século

Por Ana Carolina Rigoni Carmo e Danillo Avellar Bragança

“Foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós.”

Charles Dickens

Dessa vez foi um homem normal, branco, norte-americano.” As palavras de uma apresentadora do mainstream da mídia de massa no Brasil já são desconfortáveis quando o enquadramento da câmera aponta só para ela, mas chegam a desagradar o mais resiliente dos espectadores quando logo em seguida mostra o analista internacional convidado assentindo com a cabeça o que acabou de ser dito – ou, pelo contrário, saciá-lo profundamente.

Tem alguma coisa aí entre o consumidor, o imediatismo da notícia e a necessidade da informação com a qual a ciência parece não conseguir lidar. Quando o conhecimento científico é atacado com essa força e não consegue reagir é que as coisas passam a perder seu rumo e as sociedades humanas parecem cada vez mais indefesas perante qualquer argumento mais radical que, eventualmente, apareça no interior delas.

A moderação é uma virtude, dizia Aristóteles. Diante não do que parece mais uma relação dialética, entre duas coisas claramente distintas entre si, mas de uma total incapacidade de diferenciação, onde prevalecem a mistura, a liquidez indissociável, em que a treva e a luz, a esperança e o desespero, o tudo e o nada, passam a ser a mesma coisa, é que esses discursos mais radicais brotam como ameaça a tudo e a todos.

O neonazismo persistente de nossos dias parece, entre outras coisas, um efeito direto desse cenário. Talvez o principal dos elementos que diferenciem o nazismo do século XX e o dos nossos dias seja precisamente o aleatório. No modo randômico, carente dos valores da moderação, da equidade e de seus filhos diretos (tolerância, democracia), as sociedades humanas já parecem ratear profundamente. Diante da velocidade em que se desdobram os escândalos, sem a ciência, sem uma referência inegavelmente mais isenta que outras matrizes do conhecimento, a natureza humana parece maximizar seus vícios, aglutinar em torno de si o que há de pior e promover para o diferente aquilo que de mais cruel pode existir.

Tome dois exemplos: cidade ocupada por homens armados até os dentes, com histórico profundo de segregação racial e social; e cidade-espetáculo, imediata, luminosa, viciada e avassaladoramente desigual. A primeira dessas cidades está de fato ocupada pelas forças militares de defesa que, em tese, deveriam servir a outros propósitos. A última dessas cidades não ostenta em si a figura do fuzil, da violência, mas é possível sentir como a tensão entre a violência e o entretenimento ali viraram parte do espetáculo.

A primeira dessas cidades tem um profundo histórico de escravagismo. Homens negros internalizados forçadamente construíram essas cidades a partir da poeira imunda de suas ruas. No entanto, suas casas não ficam nas partes imunizadas dessa cidade, que foram reservadas às famílias que lhes possuíam, enquanto instrumento – famílias donas do espaço e do poder. O domínio dessas famílias era tão grande que não atuava somente sobre a morte desses homens, mas sob suas vidas, em todos os aspectos biológicos de sua existência, decidindo quem sobrevive, e quem não.

A segunda dessas cidades recebeu massas enormes de imigrantes de outras cidades do mundo, fugindo de condições piores. Os imigrantes também construíram essa cidade a partir do pó, do deserto, da areia, e também foram incorporadas a ela sob a condição de subalternos, costumeiramente enforcados se eventualmente reclamassem o estatuto dessa condição.

Em comum entre elas, o radicalismo. Em um mundo de confusão, confundimos também costumeiramente o que é radicalismo e o que é resistência humana. Em comum entre elas os afetos reprimidos, os direitos reprimidos, a vida em sociedade comprimida ao máximo do limite possível. Limites são domínios pessoais, e cada um dos indivíduos lida com eles de alguma forma – alguns chegam ao máximo daquilo que a vida é, em sua pura existência negativa, apática, desesperançada.

Em comum entre elas, também, líderes incomuns. Populistas de novo tipo, ditadores pós-modernos. Como entender a fusão de líderes religiosos em líderes políticos, ou a conversão de empresários de sucesso bastante questionável em gestores populistas? Como compreender a existência de lideranças avessas às virtudes da moderação e da equidade e de suas filhas diretas, a liberdade, a democracia e os valores coletivos?

No que parece mais inovador, o nazismo dos nossos dias não entrega o que promete. Se os discursos são de fato radicais porque destemperados, desmedidos, violentos, são também profundamente conservadores, resistentes à coletividade, ao contato. Passam da recusa e da ameaça simbólica à violência patológica em questão de instantes. Seu objetivo é a imunização, como bem traz o pensador italiano Roberto Esposito, ao falar do ímpeto biológico do organismo em, preventivamente, proteger-se do agente patógeno que lhe ameaça. O outro é sempre um agente potencialmente destruidor. Quando está tão próximo, o organismo cria em si mesmo ou recebe externamente elementos para a sua proteção. Quanto mais próximo, mais fortes são as doses de imunização. Seu princípio ativo é o mesmo da ameaça que, em tese, está à espreita pela sua destruição. Imuniza-se o organismo pondo a ameaça para dentro, neutralizando-o quando possível ou suprimindo-o, sendo a última das opções a chave para compreender esse neonazismo.

A supressão violenta do outro, após sua internalização forçada. Sua existência é desejável no início. Sua vida é o locus absoluto da experiência biopolítica, levada ao extremo de uma vida que não merece ser vivida por qualquer outro, senão pelo outro. Sua morte, raramente um erro. A morte é um cálculo frio, racional, gestionado. O neonazismo manifesta-se menos em sua verve estética, iconoclasta ao extremo, até porque esse domínio já fora incorporado pelo sistema capitalista em que vivemos desde o seu início.

O neonazismo dos dias de hoje se manifesta precisamente nessa potência da destruição, na dosagem, preventiva ou decisiva, sobre o outro. No mundo do ineditismo e do instantâneo, o discurso violento já contém, em si, muito, mas pode se transformar imediatamente em ação, rápido como um choque anafilático. O outro é a representação do patológico, diz Canguilhem, e se não for possível recuperá-lo diante dos padrões, seu destino deve ser o descarte, o isolamento.

Seus principais instrumentos são: 1) o descredenciamento da ciência, da história e do saber escolar como referências; 2) a utilização do direito de exceção para desqualificar a norma e conduzir o processo dúbio de normalização do considerado patológico ou, por fim, a sua eliminação; 3) a violência legitimada pela subjetividade da ameaça, acoplada a valores já utilizados antes, como o nacionalismo e o conservadorismo religioso; 4) a acelerada supressão da vida em comum, substituída por uma existência vigiada, controlada, rigidamente gerida no interior do arcabouço de poder; 5) uma liderança carismático-midiática, fundida entre o liberal e o fascismo, potencializada pela internet e pela avançada tecnologia da difusão da mentira; e 6) a militarização da existência.

Naturalmente, há outros elementos aqui que podem ser apontados. Cada um dos seis itens apontados acima cabe, em maior ou menor escala, nas cidades que apontamos acima. Dificilmente conseguiríamos encerrar aqui o tema. Ainda menos que cidades são essas, afinal de contas. Os exemplos podem ser São Paulo, Cidade do México, Las Vegas, Charlottesville, Rio de Janeiro. Cidades maiores ou menores em tamanho, capacidade econômica, número de habitantes. Se temos alguma razão no que debatemos aqui, potencialmente, qualquer cidade do “ocidente tardio”, quer dizer, das cidades do “Novo Mundo”, podem se enquadrar aqui. Acreditamos que o neonazismo, deste modo como debatemos aqui, seja um fenômeno das sociedades jovens dos países deste hemisfério, formadas às pressas e sob o signo da dominação e da ocupação descontrolada. Isso não quer dizer que o Ocidente tradicional esteja em quadro diferente, ou que as grandes cidades africanas e do Extremo Oriente, não compartilhem de problemas parecidos.

Se não conseguimos nominar as cidades diante de tanta confusão, os líderes descritos acima não podem esconder-se no anonimato, no desconhecimento, na discrição. É preciso saber seus nomes. Tudo o que dizem é imediatamente midiatizado, ampliado, compartilhado por hordas de bots e homens automatizados, máquinas ou seres de carne e osso, e de vontade de destruição até o talo. Seus nomes são cravados na tábula rasa das timelines tanto por seus apoiadores quanto por seus detratores, à exaustão das nossas paciências e dos limites de nossa lógica.

São os messias do nosso tempo. Messiânicos na imunização e na destruição. Cavaleiros do apocalipse com nome de desenho animado e cabelo de desenho animado. Ostentam consigo uma liberalidade fascista, mas se doem com uma gravura de nu em exposição de museu com clara restrição etária. Num momento, até porque a política e a economia a tudo permeiam, os grupelhos neoliberais e os líderes fascistas convergirão, tentando cooptar a agenda que emerge do esgotamento da ciência, da vida em sociedade e das qualidades do progresso.

Este artigo acadêmico com traços de ensaio não propõe, em qualquer hipótese, a resignação. É preciso criar novas formas de vida, ressignificar as estratégias dos paradigmas biopolítico, da exceção e do imunitarismo em novas modulações políticas. É preciso investigar mais e mais, subsidiar essas investigações de recursos e novos elementos semânticos, novas acepções da ação política, doses cavalares de resistência com algum grau de agressividade, dado o estado das coisas como estão – e como ficarão se nada for feito.

Danillo Bragança é mestre em relações internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutorando em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor das redes pública e privada do estado do Rio de Janeiro, nos ensinos básico e superior.

Ana Carolina Rigoni Carmo é doutora em educação, arte e história da cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Professora de filosofia do Colégio Pedro II.

Referências bibliográficas

Agamben, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1991.

Canguilhem, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

Dickens, C. O conto de duas cidades.  São Paulo: Estação Liberdade, 2010.

Esposito, R. Bíos: biopolítica e filosofia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017.

Foucault, M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Graham, S. Cidades sitiadas.  São Paulo: Boitempo, 2016.