Trabalhos abertos: de códigos de software às pesquisas na bancada

Por Maria Letícia Bonatelli

A forma aberta de realizar um trabalho impacta não só o desenvolvimento de um produto ou pesquisa, mas também a relação de trabalho.

Quando a internet surgiu, surgiram também os navegadores. Os primeiros navegadores, Mosaic e Netscape, surgiram no início da década de 1990, e não demorou muito para grandes empresas investirem, como a Microsoft, que criou o Internet Explorer. De código fechado, esse navegador dominou o mercado no fim da década de 1990.

Na prática, isso significava que a Microsoft detinha todo o conhecimento sobre a linguagem de programação por trás do navegador e, de certa forma, controlava o rumo da internet. Foi então que o Netscape decidiu abrir o código do seu navegador. Um grupo informal de pessoas, das mais diferentes profissões, decidiu utilizar o código do Netscape e construir um navegador melhor, mais competitivo. Cinco anos depois, foi lançado o Firefox, um navegador rápido, com bloqueadores de pop-ups e que era livre de vírus. O sucesso foi imediato.

Ao contrário do Internet Explorer, a construção do Firefox foi baseada nos princípios de trabalho aberto da Fundação Mozilla. O processo de decisão foi compartilhado, o código por trás do software era aberto e as pessoas eram convidadas a colaborar na execução do projeto. Além de quebrar o monopólio da Microsoft, tal forma de execução de projeto inspirou desenvolvedores e, na mesma época do lançamento do Firefox, diferentes tipos de páginas da internet sugiram.

Quem conta essa história é o Mark Surman, diretor executivo da Mozilla, no vídeo Mozilla and Working Open. Para ele, o mais importante não foi o sucesso que o navegador teve, mas, sim, a reprodução dessa forma de trabalho e desenvolvimento de projetos, que foram e ainda são adotados em diferentes contextos.

Out on the open

Dividir o processo de decisão, abrir os códigos e planejamento de um projeto, e convidar pessoas a participarem são atitudes comuns em ambientes colaborativos de trabalho e na internet. Existem muitos produtos que são desenvolvidos dessa forma, principalmente através de plataformas como GitHub, que oferece um ambiente para a hospedagem de códigos e é aberto à colaboração.

É possível encontrar diferentes repositórios de importantes programas de código aberto dentro do GitHub, como o sistema operacional Linux, o sistema de gerenciamento de banco de dados MySQL e o próprio navegador Firefox. Alguns dos programas, inclusive, são utilizados no dia a dia das pessoas, como o sistema operacional Android, utilizado em muitos celulares, e a criptomoeda Bitcoin, uma moeda digital descentralizada.

De fato, o trabalho de forma aberta tem raízes no Movimento de Softwares Livre/Aberto. Rafael de Almeida Evangelista, pesquisador do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp, explica no texto “O movimento software livre no Brasil: política, trabalho e hacking” as implicações desse movimento para a forma de trabalho nas empresas. O estilo de produção de software era semelhante ao de uma empresa manufatureira, onde há produção e comercialização do produto, porém, houve uma alteração nesse processo.

“No software livre, embora também estejam envolvidos em seu processo de produção trabalhadores contratados diretamente pelas empresas, que vendem sua força no mercado – formando parte importante do trabalho utilizado para a produção de softwares livres – o trabalho tido como modelo e simbolicamente ostentado como o mais característico da produção livre é de tipo voluntário, realizado no tempo “de folga” do trabalhador e fora dos espaços típicos de trabalho capitalista (não acontece nem na fábrica nem nos escritórios das empresas). Progressivamente, os softwares produzidos por esse modelo, e a própria ideia de modelo distribuído de produção, têm ganhado espaço nas grandes empresas de tecnologia”, descreve Evangelista.

Ainda hoje, muito do processo de produção de trabalho aberto é realizado por atividades separadas do emprego formal de uma pessoa. De certa forma, devido ao fato de os preceitos envolvidos nesse tipo de trabalho não se assemelharem com as políticas adotadas pelas empresas, geralmente fechadas ou restritivas quando à produção de tecnologia. Mas, para Chad Sansing, líder de prática de cultura aberta da Fundação Mozilla, os princípios de trabalho aberto podem ser aplicados, em diferentes níveis, dentro das empresas.

“Um projeto aberto maduro provavelmente tem um processo muito robusto e forte de governança, de compartilhamento do trabalho, e de diretrizes para a participação da comunidade” pontua Sansing. “É uma abordagem geral e um conjunto de metodologias para compartilhar realmente como você executa um projeto, compartilhar o que você faz”.

Dentro (ou fora) da universidade

Na ciência, trabalhar de forma aberta tem transformado a maneira como se faz pesquisa. Marcos Vinícius Carneiro Vital, professor da Universidade Federal de Alagoas, tem experiências com projetos abertos. “A crise da reprodutibilidade começou a ser algo falado para, principalmente, trabalhos de laboratório. Muitas vezes, alguém publicava um trabalho que parecia ser incrível e fenomenal, depois um monte de pesquisadores tentava reproduzir aquele trabalho e falhava”, comenta.

Mas por que tais reproduções falhavam? Vital explica que por muitos motivos: talvez não haja informação suficiente para reproduzi-lo, talvez a maneira como os dados foram tratados variaram. “Isso começou a levantar uma necessidade prática, no mundo científico, de ter mais abertura, porque isso aumenta a possibilidade de reprodutibilidade”, afirma o professor.

O movimento de ciência aberta preconiza não só a disponibilização de dados em acesso aberto, mas também do processo científico. O processo de geração de conhecimento pode ser acelerado quando as ideias são compartilhadas e debatidas abertamente. Há muita discussão dentro das universidades sobre como trabalhar de forma mais aberta, e muitos movimentos surgiram dessas discussões, como as revistas de preprints e de acesso aberto.

Mas tal movimento encontra também barreiras. “A maioria dos pesquisadores não quer mudar a forma confortável como já fazem a pesquisa. E existe um medo: como vou compartilhar meus dados, alguém pode pegar e roubar”, explica Vital. Esse medo pode estar calcado num desconhecimento do processo de abertura de dados, pois existem plataformas específicas onde os dados são compartilhados e a eles são atribuídas licenças que, a depender do estágio de desenvolvimento do projeto, podem ser mais ou menos restritivas.

O principal desafio está em como mudar a forma tradicional de trabalho nas universidades. “Nesse sentido, eu tento mostrar como essa forma de trabalho é possível e influenciar quem está no começo da carreira. É muito mais fácil, na formação de um estudante, você mostrar que existem todos esses caminhos possíveis para se trabalhar do que tentar mudar alguém que já trabalha há muitos anos com pesquisa”, afirma o professor.