Por Daniel Pompeu e Vinícius Nunes Alves, editado e revisado por Germana Barata
Uma das técnicas mais promissoras no combate à Covid-19 e a outras epidemias é a “tesoura genética” que edita material genético de vírus e bactérias
Manipulação genética. Imagem: Freepik
Lab-19, projeto de divulgação científica de um grupo de alunos do curso de especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp), engajados, como tantos, em contribuir para a disseminação de informações corretas e confiáveis sobre a epidemia de Covid-19 para públicos diversos. Ambos os autores são membros do Lab-19.
Em Gattaca, filme clássico de ficção científica dos anos 1990, somos apresentados a um mundo em que seres humanos têm seus traços genéticos escolhidos a dedo em laboratório. Apesar de ainda estarmos distantes desta realidade, técnicas de manipulação genética aprimoradas nos últimos anos estão ajudando a ciência a construir soluções para problemas atuais. Entre elas estão o sistema Crispr/Cas9, a “tesoura dos genes”, elaborada em 2012 que tem gerado entusiasmo em geneticistas, e as conhecidas técnicas de transgenia, quando há inserção de DNA de um organismo em outro. As metodologias estão sendo utilizadas na busca por soluções para epidemias como a do novo coronavírus (Sars-CoV-2) e aprimorar o combate contra as já conhecidas doenças virais transmitidas por mosquitos, as chamadas arboviroses.
No caso do sistema Crispr (em português: repetições palíndromas de clusters regularmente espaçadas), trata-se de um conjunto de sequências genéticas que pode ser associado a uma proteína sintética. Essa proteína é guiada por uma molécula de RNA para editar sequências específicas do DNA, suprimi-las ou expressá-las mais do que o normal, o que provoca mutações genéticas em um organismo. Entre as vantagens do Crispr sobre as ferramentas de modificação genética anteriores, estão sua eficiência, precisão e baixos custos para utilização.
Segundo Tábita Hünemeier, pesquisadora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), “a Crispr passou a ser usada em várias frentes, desde tentativas de tratamento até diagnósticos. Além disso, vem sendo usada em diversos organismos, e potencializou várias pesquisas em genética funcional”. O potencial do sistema, entretanto, tem limitações. A interação gênica é um fator a se considerar: nem sempre um único trecho do DNA age sozinho sobre uma característica. Em muitos casos, há uma complexa teia de relações genômicas por trás de uma manifestação fenotípica do código genético. Tábita ainda destaca que a Sherlock (sigla de uma modalidade da Crispr desenvolvida por pesquisadores do Reino Unido) é altamente sensível para identificar sequências do RNA de patógenos, sendo capaz de diagnosticar doenças virais de forma rápida e precisa. Em maio, os Estados Unidos aprovaram o uso do teste para detecção do novo coronavírus, como noticiou a revista científica Nature.
Uma pesquisa na perspectiva de tratamento de doenças através de edição gênica foi publicada na revista científica Cell em abril deste ano. Os autores testaram a Crispr em células que foram infectadas por H1N1 (vírus causador da gripe suína) e pela Covid-19. A ideia foi utilizar a técnica como uma tesoura que reconhece o genoma do vírus e faz um corte em seu material genético para impedir sua reprodução. O experimento foi bem sucedido em reduzir a infecção nas células testadas, contudo, ainda há o desafio de fazer com que as enzimas sintetizadas por Crispr sejam efetivas como tratamento em organismos vivos. A proposta apresentada no artigo é que essas enzimas sejam transportadas pelas vias aéreas até o pulmão, onde poderiam combater a porção dos vírus instalada no órgão.
O fator humano
As possibilidades de uso de Crispr se ampliam à medida que mais pesquisas são realizadas, inclusive sobre a possibilidade de uma aplicação polêmica: a edição de genes humanos. Essa aplicação é considerada terreno delicado por parte da comunidade científica, devido aos conflitos éticos que surgem a partir de alterações genéticas em embriões humanos, quando há a possibilidade de transmissão dos genes alterados a outras gerações.Há quem aponte que esse tipo de uso pode levar a humanidade a caminhos de seleção artificial pelo genoma possibilitada pela escolha de características que um ser humano vá desenvolver antes mesmo de ser gerado. Em entrevista concedida ao El País em 2018, o pesquisador espanhol Lluís Montoliu alertou que experimentos do tipo podem levar à eugenia.
Quadro retratando debate sobre o uso de manipulação genética do trailer de Gattaca, filme de ficção científica de 1997 dirigido e escrito por Andrew Niccol. O longa aborda uma sociedade futurista onde a manipulação de embriões com intenção de gerar “bebês perfeitos” é uma realidade. Imagem: Reprodução
Por outro lado, o uso de Crispr em células humanas que não sejam embrionárias já é feito para desenvolvimento de terapias genéticas. O primeiro caso em que a técnica é aplicada em um corpo humano foi relatado no início de abril por médicos que realizaram o procedimento no Instituto Casey Eye, em Oregon (EUA). De acordo com a empresa norte-americana Editas Medicine, que desenvolve a terapia, o fluido contendo o mecanismo de edição foi injetado no olho de um paciente na tentativa de reverter a cegueira causada por uma doença genética. Os resultados do tratamento ainda não foram divulgados.
Geraldo Aleixo Passos, coordenador do Laboratório de Imunogenética Molecular das Faculdades de Odontologia e Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, tem usado o sistema Crispr/Cas9 para estudar os mecanismos genéticos de doenças autoimunes. Em 2018, o grupo coordenado por Passos editou células de camundongos cultivadas em laboratório para entender a função de determinados genes no desenvolvimento dessas doenças, conforme aponta artigo científico publicado na revista Frontiers in Immunology. Quando veio a pandemia, o pesquisador e seus orientados resolveram voltar seu olhar para as possibilidades de combate ao novo coronavírus, publicando os resultados em formato preprint (ainda não revisado pelos pares).
Através de modelos bioinformáticos, Geraldo e sua equipe formularam a hipótese de que alterações no gene responsável pela proteína ACE2 poderiam desestabilizar o mecanismo de entrada do novo coronavírus em células humanas. A ACE2 age na regulação da pressão arterial, modificando o gene que influencia nesta função essencial. O trabalho também simulou mutações em uma região específica da ACE2, as quais impossibilitariam a infecção de células humanas pelo novo coronavírus sem prejudicar, aparentemente, as funções biológicas da proteína.
“O próximo passo é ir para a bancada do laboratório e testar o desenho molecular nas células”, explica Geraldo. Para o biomédico, ainda não está claro se esses conhecimentos podem gerar algum tratamento para o vírus no curto prazo, mas o trabalho é importante para avançar os conhecimentos teóricos sobre as interações genéticas e moleculares com o novo coronavírus. Nesse caso, o sistema Crispr/Cas9 tem sido usado como ferramenta de pesquisa, auxiliando no entendimento de interações entre células e patógenos e sua regulação pelo genoma humano. “Crispr já é uma realidade para as ciências biológicas, biomédicas e em curto prazo já teremos aplicações na medicina”, ressalta o pesquisador.
Arboviroses
De diferentes formas, a edição genética é considerada pelos pesquisadores como uma forte aposta contra infecções virais. Há pesquisas com a técnica que já testam mutações nos genes de mosquitos Aedes aegypti, vetor de doenças como zika, Chikungunya, febre amarela e dengue, sendo esta última com status atual de epidemia. Essas mutações têm o objetivo de realizar o controle das populações desses mosquitos ou torná-los resistentes aos vírus e, assim, limitar a transmissão de doenças aos humanos. Em 2018, por exemplo, pesquisadores da Universidade Johns Hopkins editaram genes do mosquito Anopheles, vetor da malária, para torná-los resistentes ao parasita e publicaram os resultados no periódico Plos Pathogens. A malária mata cerca de 400 mil pessoas por ano, de acordo com a ONU.
Mas o sistema Crispr/Cas9 não é a única técnica que figura em pesquisas desse tipo. Margareth Capurro, docente do Instituto de Ciências Biomédicas (IBC) da USP, tem dedicado sua trajetória a desenvolver mosquitos transgênicos com o objetivo de combater arboviroses. No caso da transgenia, a alteração no DNA é feita com a inserção de material genético de outras populações de mosquito para criar a nova linhagem desejada.
Em 2015, Margareth foi coautora de um estudo publicado na revista Plos Neglected Tropical Diseases, que descreve a liberação de cerca de 185 mil mosquitos Aedes aegypti geneticamente modificados na cidade de Juazeiro (BA). Os mosquitos, todos machos da linhagem transgênica OX513A (desenvolvida pela Oxitec, empresa de biotecnologia do Reino Unido), ao cruzarem com as fêmeas, dão origem a larvas que não se desenvolvem até a idade adulta. Ao longo de um ano após o experimento piloto, a população de Aedes aegypti foi reduzida em cerca de 90% na região. Após a interrupção do estudo, a população do mosquito voltou a se estabelecer, como já era esperado pelos autores da pesquisa.
A pesquisadora entende que, junto ao desenvolvimento de vacinas e investimento em saúde pública, é preciso que tecnologias inovadoras de controle do mosquito comecem a ser adotadas em larga escala para diminuir a incidência de mortes e complicações de saúde associadas a arboviroses. “Há 60 anos ou mais, busca-se diferentes vacinas, tratamentos para a malária. Hoje existe tratamento, mas tem muita gente que ainda morre por falta de diagnóstico precoce”, lembra Margareth. De acordo com ela, para que novas tecnologias sejam desenvolvidas e aplicadas é preciso uma articulação da ciência junto à todos os outros setores da sociedade. Seja na atual pandemia, ou mesmo nas próximas que a humanidade poderá enfrentar.
Daniel Pompeu é jornalista pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pós-graduando no curso de especialização em jornalismo científico do Labjor-UNICAMP.
Vinícius Nunes Alves é biólogo pela UNESP (Botucatu) com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais pela UFU. Atualmente é pós-graduando no curso de especialização em jornalismo científico do Labjor-UNICAMP e colunista do jornal Notícias Botucatu.