Técnicas recentes no estudo da evolução ajudam a esclarecer a origem do homem e a ocupação no planeta

Por Luanne Caires, Maria Letícia Bonatelli e Graciele Almeida

A origem humana sempre despertou interesse nas áreas de filosofia, ciência e religião. No entanto, entender onde surgiu o homem e como ocupou os continentes é um verdadeiro desafio e requer abordagem multidisciplinar para interpretar dados que podem ter mais de 200 mil anos

A origem humana sempre despertou interesse nas áreas de filosofia, ciência e religião. No entanto, entender onde surgiu o homem e como ocupou os continentes é uma questão difícil e marcada por controvérsias.

Atualmente, a hipótese científica mais aceita é de que a espécie humana moderna (Homo sapiens) surgiu na África, há cerca de 200 mil anos e de lá se dispersou para outras regiões em várias ondas migratórias. Mas, antes do homem moderno, outros hominídeos já ocupavam o planeta e a história dessa ocupação e das interações entre as diferentes espécies moldou o destino do homem e de seus parentes hominídeos.

Segundo informações da Human origins program (Programa origens humanas) do Museu Nacional de História Natural Smithsonian, Estados Unidos, entre um e dois milhões de anos atrás um dos primeiros hominídeos – o Homo erectus – deixou a África e se dispersou para várias partes do mundo, especialmente em direção ao leste asiático. Pequenos grupos desses hominídeos ocuparam ambientes com características bem diferentes entre si, o que favoreceu sua diversificação e o surgimento e dispersão de novas espécies, como o Homo neanderthalensis no Oriente Médio e na Europa. Essa distribuição está no centro do debate sobre as diferentes origens e migrações do homem moderno.

Representações de Homo erectus (esquerda) e Homo neanderthalensis (direita). Fonte: humanorigins.si.edu

Como obter informações do homem moderno e sua dispersão

Estudar a ocupação do homem moderno nos distintos continentes é um verdadeiro desafio e requer abordagem multidisciplinar para interpretar dados que podem ter mais de 200 mil anos. O pesquisador Mathias Mistretta Pires, do Departamento de Biologia Animal da Unicamp afirma que existem três abordagens mais utilizadas para estudar a colonização na Terra: o estudo dos registros fósseis do Homo sapiens e o estudo dos materiais produzidos por esses indivíduos, ambas na arqueologia; assim como o estudo do material genético das populações atuais, na área da genética.

Os fósseis são importantíssimos, por serem evidências diretas da presença em uma determinada área. Já os materiais produzidos – como ponta de flecha, cerâmica – são evidências indiretas e, por isso, frequentemente não são utilizados como única evidência para comprovar a passagem do homem moderno, ou de qualquer outro hominídeo, por uma região.

Segundo Pires, após um arqueólogo encontrar um fragmento de fóssil ou um pedaço de cerâmica, ele irá estimar a idade do material, através da datação de rochas magmáticas ou carvão na região onde o material foi encontrado. Esse procedimento é feito porque, muitas vezes, o fóssil foi mineralizado e isso impossibilita a datação.

Já a partir do material genético das populações atuais, os cientistas conseguem inferir o movimento de dispersão das populações do passado, pois os eventos reprodutivos que deram origem a uma pessoa ficam, de certa forma, marcados no DNA. “Olhando para as características do material genético, é possível ter uma ideia de quais populações são mais aparentadas com as populações atuais”, afirma Pires. A técnica mais utilizada é o sequenciamento de DNA, sendo possível utilizar genes ou regiões específicas para realizar esse estudo (DNA mitocondrial ou gene Y) ou ainda, mais recentemente, com as novas técnicas, sequenciar o genoma todo de um organismo.

Em busca da origem do homem moderno

A mitocôndria é uma organela celular que tem DNA próprio e é apenas passada da mãe para seus descendentes. Por meio dela, foi possível realizar um estudo sobre o ancestral comum das populações atuais. Análises genéticas de DNA mitocondrial coletadas a partir de amostras de diferentes grupos étnicos ao redor do mundo apontam para a origem do homem moderno no continente africano. Apoiado por esses achados, alguns pesquisadores defendem uma origem única entre 100 mil e 200 mil anos atrás no continente africano, a partir do qual o homem teria migrado para a Ásia e a Europa, substituindo as outras espécies de hominídeos que ali habitavam.

Essa não é a única proposta para a origem do homem moderno. Embora com pouco apoio no meio científico, há a hipótese da origem multirregional, segundo a qual o Homo erectus, espécie de hominídeo mais antiga que o homem moderno, saiu da África há cerca de dois milhões de anos e se dispersou para outras regiões do globo. Essas populações regionais independentes teriam, então, evoluído e gerado o homem moderno com suas variantes.

No entanto, a hipótese mais aceita atualmente sobre a origem do homem é uma visão distinta das duas anteriores: a hipótese da hibridização, segundo a qual existe uma origem no sudeste africano seguida do cruzamento do homem moderno com outros hominídeos após a saída da África. Segundo Pedro da Glória, pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos, da USP, o modelo de origem africana era o modelo principal nas décadas de 1980, 1990 e 2000, mas com o sequenciamento do DNA nuclear dos neandertais, em 2010, descobriram que existe uma porcentagem pequena, em torno de 1 a 4 %, de DNA neandertal no Homo sapiens moderno. “Houve então um deslocamento. Hoje a maioria das pessoas não é tão radical a ponto de acreditar na teoria de origem única africana, mas fazem uma concessão a essa hibridização pequena, tanto com neandertais quanto com os denisovanos, que é uma espécie próxima à neandertal e que também deixou marcas no DNA de Homo sapiens moderno. Ambos deixaram marcas no DNA de humanos modernos de todos os continentes, menos na África”, explica da Glória.

A diáspora do homem moderno

Além do debate sobre a origem do homem, a comunidade científica discute as controvérsias sobre suas rotas da diáspora pela África e pelo resto do mundo. Até recentemente, os estudos apontavam que uma pequena população do homem moderno teria deixado a África entre 80 mil e 60 mil anos atrás e ocupado o continente asiático, e que toda a humanidade que reside nos outros continentes seria descendente dessa população. Logo após a ocupação da Ásia, os homens teriam chegado à Austrália há cerca de 50 mil anos e à Europa há aproximadamente 40 mil anos, segundo a Human origins program.

No entanto, um estudo sobre diversidade genética e craniana sugere uma migração anterior, iniciada por volta de 130 mil anos atrás, para o sul do continente asiático, demorando cerca de 80 mil anos para chegar à Austrália. O estudo foi realizado no Centro Senckenberg de Evolução Humana da Universidade de Tübingen, na Alemanha, em parceria com a Universidade de Ferrara e o Museu Nacional de História Natural de Paris.

Modelo de dispersão do homem a partir da África há 130 mil anos. Apenas as populações australiana e melanésia mantêm um sinal biológico forte de rota à sudeste. Extraído de Reyes-Centeno e colaboradores (2014), PNAS.

Essa migração teria originado os povos aborígenes australianos, da Papua-Nova Guiné e da Melanésia (ilhas na Oceania), deixando marcas genéticas e anatômicas semelhantes nessas populações. Uma segunda diáspora, que era considerada única até então, teria originado os demais habitantes nativos do sul da Ásia ou propiciado uma mistura genética tão profunda com os grupos da primeira diáspora que fez com que esses povos, como os negritos do sudeste asiático, perdessem os rastros genéticos ancestrais. “Essa proposta é relativamente recente e é uma possibilidade sim. Mas ela não é 100% aceita. Ela ainda está sendo testada. Sabemos que o Homo sapiens moderno apareceu por volta de 190 mil anos na África, então há 130 mil anos é uma data plenamente possível para o Homo sapiens sair e ocupar outros continentes. Só que ainda não há evidência certa dessa rota, principalmente porque não basta ter evidência material [como dentes e artefatos] de Homo sapiens moderno, é preciso ter evidência de comportamento cognitivo moderno, simbólico”, afirma da Glória.

A ocupação do continente americano

Outra controvérsia relacionada à trajetória do homem pela Terra diz respeito à ocupação do continente americano. Até recentemente, a hipótese mais aceita era a de que a retração de geleiras no final da última glaciação, há pouco mais de 10 mil anos, formou um estreito de terra que ligava a Ásia à América do Norte e hoje corresponde ao estreito de Bering. Por esse estreito, populações saídas da Sibéria chegaram ao local onde hoje é o Alasca há pelo menos 13 mil anos, data dos vestígios mais consolidados que indicam a ocupação humana no continente americano. Com a elevação do nível do mar que seguiu o derretimento das geleiras, o estreito foi submerso pelo mar de Bering.

Estreito de Bering. Fonte: Google Maps.

No entanto, ao avaliar a viabilidade desse estreito como passagem, pesquisadores da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, em parceria com grupos de pesquisa do Reino Unido, Estados Unidos e Canadá, descobriram que antes de 12,6 mil anos atrás, o local não havia sido colonizado por plantas e animais. Com isso, não haveria alimento disponível para as populações asiáticas durante a travessia, impossibilitando o longo e difícil percurso. Este estudo se baseou na análise de sedimentos retirados do fundo de lagos canadenses que se situam na região onde o estreito existiu e na análise do DNA de plantas e animais encontrados nesses sedimentos. Os resultados desse trabalho reforçam a hipótese de que os primeiros grupos a colonizar a América tenham percorrido a costa do oceano Pacífico navegando entre as ilhas, devido ao ainda baixo nível do mar e à orla livre de gelo. Apenas posteriormente uma nova onda migratória teria passado pelo estreito de Bering.

Sobre a chegada do homem ao nosso continente, da Glória destaca: “A ideia do corredor terrestre no estreito de Bering foi caindo por terra na década de 2000, quando perceberam que havia registros arqueológicos no continente americano muito mais antigos do que a abertura desse canal”. Entretanto, a elevação do nível do mar teria destruído ou submerso os registros dessa travessia.

De fato, apesar de os estudos apontarem para a chegada do homem ao continente americano cerca de 13 mil anos atrás, novas pesquisas realizadas vêm mostrando um tempo ainda maior.

O trabalho da arqueóloga Niède Guidon foge das teorias tradicionais da ocupação do continente americano e aponta para a presença do homem no território brasileiro por um período ainda maior.  Um dos achados da equipe da arqueóloga é um dos esqueletos mais antigos já registrados no Brasil, que data de 9.800 anos atrás, no Parque Nacional da Serra da Capivara, na região de Raimundo Nonato, no Piauí.  A equipe também encontrou dentes humanos que datam de 15 mil anos e pinturas rupestres presentes no parque, com datação de 35 mil anos, desafiando as teorias mais aceitas sobre a chegada do homem no continente americano.

O Brasil não é o único país a apontar evidências da chegada do homem na América em um período anterior proposto pelas teorias tradicionais: há vestígios de assentamento humano  encontrados no sítio de Mesa Verde no Chile de 18.500 anos, o que mantém em aberto o debate sobre a migração humana e ressalta a necessidade da busca por mais evidências, aliada a avanços nas técnicas de análise.

Graciele Almeida de Oliveira tem graduação em química (USP) e doutorado em ciências – bioquímica. É graduanda no curso de licenciatura em educomunicação (USP) e pós-graduanda em jornalismo científico pelo Labjor.

Luanne Caires é graduada em biologia (USP). Atualmente cursa mestrado em ecologia (USP) e é aluna da especialização em jornalismo científico no Labjor.

Maria Leticia Bonatelli tem graduação em biologia (Unicamp), mestrado e doutorado em ciências (Esalq-Usp) e é pós-graduanda em jornalismo científico no Labjor.