Startups para reiniciar e atualizar a indústria na versão 4.0

Por Camila P. Cunha

Em um cenário dominado por empresas de baixa intensidade tecnológica e conservadoras, a conexão entre grandes empresas e startups pode fomentar o ecossistema da inovação, reduzindo a inércia tecnológica e preparando o Brasil para competir no mundo da indústria 4.0

A quarta revolução industrial bate à porta e nela mundo físico e virtual estão cada vez mais indissociáveis. Robótica, simulação virtual, sensoriamento, análise de big data, realidade aumentada, manufatura aditiva (impressão 3D), computação em nuvem, internet das coisas (IoT) e cibersegurança passam a integrar a cadeia de valor de pequenas, médias e grandes empresas, alterando a comunicação entre seus diferentes elos – sejam eles humanos (fornecedores, produtores e consumidores) ou não (softwares, máquinas, equipamentos, aplicativos). O resultado dessa interação é a rapidez, a flexibilidade e a eficiência nas tomadas de decisão, que geram produtos e serviços com maior valor agregado e menor custo, além da possibilidade de customizar e readequar metas e estratégias on the go (expressão em inglês que significa “em movimento”), nunca antes vistas.

As mudanças são maiores “do quê”, “porquê” e “como” fazer, elas exigem profunda transformação do capital humano. Competir no mercado global significa trabalhar no modus operandi tipo fênix – pensar em como aniquilar seu core business (estratégia de negócio principal) e renascer das próprias cinzas. Por isso, empresas buscam incessantemente por novos modelos de negócio e inovação para sobreviver e prosperar e dependem de colaboradores em toda a hierarquia organizacional que pensem e ajam como empreendedores, com plasticidade suficiente para adaptar-se e reinventar-se em cenários de extrema incerteza e capazes de desenvolver novas habilidades e relações de trabalho impostas pela cultura digital.

“No novo mundo, não é o peixe grande que come os pequenos, mas o mais rápido que come os mais lentos”, disse Klaus Schwab, fundador e presidente-executivo do Fórum Mundial Econômico e escritor do livro A quarta revolução industrial (Editora Edipro), durante o Dubai Government Summit (2015). O exemplo mais emblemático dessa relação entre tamanho e velocidade é a Kodak, uma gigante e inovadora empresa da fotografia amadora até a década de 1990. A empresa, pioneira na criação de câmeras digitais, telas de OLED e do padrão RGGB já na década de 1970, foi incapaz de reconhecer que rolos de filmes se tornariam obsoletos e de acelerar o desmonte e a reconstrução do seu próprio core business com a fotografia digital. Empresas menores, mais dinâmicas e menos refratárias às tecnologias disruptivas (como Canon e Sony) ganharam os mercados e a falência da Kodak foi certa com o aparecimento dos smartphones.

“Se ficar o bicho pega, se correr [sou] bicho [que] come”

A indústria 4.0, catalisadora da transformação de toda a cadeia de valor, acirra o clima de competição por ganhos em eficiência e redução de custos comum ao setor industrial. A inércia frente à quarta revolução industrial é sinônimo de falência. O único caminho é a digitalização. O relatório de pesquisa elaborado pela Price Waterhouse Coopers (“2016 Global Industry 4.0 Survey – Industry 4.0: Building the Digital Enterprise”), com 2 mil empresas de nove setores industriais em 26 países, mostra que a tecnologia digital já ronda as agendas de estratégia e de pesquisa e desenvolvimento e as vantagens (em média) são surpreendentes: com aumento nos lucros em 2,9% ao ano, o equivalente a US$ 493 bilhões, e redução de custos na faixa de 3,6% ao ano (ou US$ 421 bilhões). Os investimentos somam quase US$ 1 trilhão com destaque para desenvolvimento de sensores e dispositivos de conexão, com preocupação da integridade dos dados e cibersegurança, além do treinamento e capacitação de pessoal para fomento do QI Digital, um dos grandes gargalos do mundo 4.0.

“Startup não é uma versão em miniatura de grandes empresas. Startup é uma organização temporária em busca de um modelo de negócio escalável, repetível e lucrativo”, cita Steven Blank, empreendedor serial de startups do Vale do Silício, na Califórnia, e professor da Universidade de Stanford, Estados Unidos, no prefácio de seu livro The startup owner’s manual: the step-by-step guide for building a great company (Editora K&S Ranch).

No ecossistema da inovação, os peixes menores e mais velozes são as startups. O movimento lean startup, criado por Eric Ries, um dos pupilos de Steven Blank, também empreendedor do Vale do Silício e blogueiro, está revolucionando a forma de pensar e fazer startups. O método é uma ode aos conceitos básicos da experimentação, banindo planos de negócios detalhados e flexibilizando o antes rígido e retilíneo processo de desenvolvimento de produtos ou serviços. Neste novo sistema, a etapa de desenvolvimento ocorre simultaneamente à interação com o consumidor final de forma continuada e reiterada, em que novas ideias, intuição e aprendizado são as engrenagens de um círculo virtuoso. Empresas como a General Eletric (GE), Qualcomm e Intuit já incorporam a metodologia em seus processos de inovação e manufatura, gerando valor e excelência para os seus negócios. Esses exemplos ilustram a necessidade de as grandes empresas equilibrarem a experiência, com longos anos de sucesso no mercado, com a mentalidade ágil e desprendida das startups.

Mecânica das startups no mundo corporativo

A lógica hoje é “se não pode vencê-los, junte-se a eles”. Grandes conglomerados industriais e multinacionais já veem como obrigatória a interação com startups. De acordo com o relatório “#500CORPORATIONS: how do the world’s biggest companies deal with the startup revolution?”, entre as 500 maiores empresas listadas pela Forbes Global 2000 Ranking, aproximadamente 52% têm algum tipo de relacionamento com startups, e a percentagem aumenta em direção ao topo da lista. Outro dado interessante é que, entre unicórnios – empresas que começaram como startups e valem um bilhão de dólares, chamadas assim por serem figuras míticas e de raríssimas aparições (como Uber, Airbnb, SpaceX, Spotify e Pinterest) –, 61,7% receberam financiamento de pelo menos uma grande corporação durante a sua trajetória bilionária.

Empresas como Volkswagen, Samsung, Intel, Microsoft, Roche, Novartis, Johnson & Johnson, Google e Merck, com grandes investimentos no setor de pesquisa e desenvolvimento, já trabalham com startups em diferentes frentes: investimentos (microcrédito, empréstimos, fundos de capital de risco (venture capital); programas e eventos para startups (conferências, competições, hackathons e patrocínios); infraestrutura física e humana para incubadoras e aceleradoras; serviços de suporte variados (contábil, jurídico, técnico, mentoria); e espaços de trabalho conjunto (conhecidos como co-working).

No Brasil, não é diferente, empresas nacionais que figuram na lista, como o Itaú Unibanco Holding (#38), Bradesco (# 62) e Banco do Brasil (# 132) também interagem com startups via incubadoras, co-workings ou laboratórios de inovação.

A interação entre startup e indústria é do tipo mutualística. De um lado, as grandes empresas emprestam a credibilidade de suas marcas consolidadas no mercado; os canais de fornecedores, distribuidores e consumidores bem estabelecidos; a abundância de capital para investimentos de risco e sua expertise para validação de novos modelos de negócio. De outro lado, as startups estimulam e inspiram mudanças culturais na demanda por agilidade nas atividades operacionais e nos processos de tomada de decisão, redução da aversão ao risco e dos custos associados a inovação, além de aumentar a atratividade das grandes empresas frente as novas e antenadas gerações (Y e Z).

Deu match na indústria brasileira

A indústria nacional está descolada da realidade internacional. O relatório “Sondagem da Inovação”, realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em parceria com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), referente ao primeiro trimestre de 2017, aponta que mais de 70% das 354 empresas abordadas no levantamento pensam em inovar como forma de atender às exigências de seus clientes, reduzir custos e aumentar a participação no mercado, e somente 25% associam o processo ao desenvolvimento de produtos e novos mercados.

As startups aparecem como figuras ainda pouco conhecidas e compreendidas: 70% das empresas nunca interagiram com startups e pouco mais de 60% desconhecem o seu conceito formal. Segundo Elisa Carlos, gerente de inovação da ABDI, “estamos em um momento de transição. É natural que, no início, somente os visionários (early-adopters) tenham familiaridade com o tema. Existem tantas barreiras para a indústria transpor na contratação de uma startup, que o conceito formal não é o grande empecilho”.

“Os drivers da indústria 4.0 no Brasil serão as startups”, afirma Rosana Jamal, executiva do setor de alta tecnologia e co-fundadora da Baita Aceleradora, e acrescenta que “as empresas não estão preparadas para contratá-las e modificar sua cultura. Fora do Brasil, muitas empresas têm programas específico para startups. Há dois anos o Brasil começou com as formas mais básicas de interação, as competições e hackathons. Mas isso não é, efetivamente, trabalhar com startups”.

Pioneira na sistematização de dados da indústria com foco em inteligência, a ABDI deu o próximo passo com a criação do Programa Nacional Conexão Startup Indústria. Segundo Elisa Carlos, “o programa tem âmbito governamental, e se posiciona como um laboratório de modelagem de estratégias de inovação para a indústria nacional, gerando insumos técnicos para os nossos pares e para a própria ABDI”, e acrescenta “a iniciativa é ampla e engloba, além do concurso, patrocínios e apoio para outros programas do ecossistema, que tenham como objetivo conectar startups e grandes empresas”. Iniciativas como 100Open Startups, Scaleup Indústria da Endeavor, Programa Liga AutoTech, para citar alguns exemplos, estão entre os apoiados.

“Acreditamos que startups, scaleups e spin-offs são potenciais ofertantes de tecnologia de ponta e em parceria com a grande indústria podem reposicionar o Brasil na cadeia global de valor. Queremos que o Brasil seja um exportador de inteligência. O Programa Nacional Conexão Startup Indústria é considerado pelo governo como uma ferramenta de política nacional para indústria 4.0 a ser lançada em breve”, afirma Elisa Carlos, gerente de inovação da ABDI.

Elisa conta que “o programa nasceu de uma provocação entre Guto Ferreira, presidente da ABDI, e o então ministro do MDIC, Marco Pereira: por que e como a indústria brasileira lida com a inovação disruptiva? O projeto foi idealizado seguindo o modelo de gestão de Steven Blank, com a montagem de um grupo de trabalho do tipo minimum viable philosophy, diferente do resto da ABDI. Nós nos comportamos como uma startup, aprendendo rapidamente e tomando decisões a partir da experimentação. Definimos hipóteses e validamos com nosso público antes de definir estratégias e projetos”.

A primeira edição do programa teve início em março de 2017 e recebeu inscrição de 46 indústrias, 311 startups e 19 instituições de apoio (incubadoras e aceleradoras públicas ou privadas). “As empresas podem escolher até quatro startups, com competência tecnológica, para trabalhar em uma demanda pré-estabelecida. As startups escolhidas são premiadas com R$ 80 mil para o co-desenvolvimento de uma prova de conceito ou projeto piloto junto à indústria, respeitando o foco em escala e universalidade da inovação. Na próxima etapa (rodada de negócios), a indústria deve escolher uma das soluções propostas. A startup escolhida é premiada com R$ 200 mil para a entrega do piloto final. O processo é acompanhado de perto pelo time da ABDI em parceria com a Softex para sistematizar o aprendizado sobre comportamentos, dificuldades e melhores práticas”, disse Elisa.

As empresas BRF, Caterpillar, Dow Chemical, Embraer, Ericsson, Libbs, 3M, Natura, Votorantim Cimentos e Whirpool fecharam negócio com 27 startups e cinco instituições de apoio (Baita Aceleradora, Liga Ventures, Parque São José dos Campos, Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife e Associação Paranaense de Cultura). Depois, “o desafio para o crescimento das startups está na aceleração tecnológica, ou seja, transformar uma proposta de produto em produto real”, comenta Rosana Jamal. “A conexão entre startup e indústria deve ser feita com cuidado. A ânsia por dinheiro pode ser uma armadilha, transformando valor em serviço de desenvolvimento de produto”, avalia. Neste sentido, as instituições de apoio têm papel crucial para mediar a interlocução entre ambas as partes (startups e empresas) em suas várias dimensões. “O problema é alinhar os interesses das startups com a indústria. O foco da Baita é ensinar a indústria a trabalhar com startups e as startups a trabalharem com a indústria”, explica Jamal.

As empresas participantes do programa foram classificadas como visionárias, possuindo departamentos e processos voltados para inovação e histórico de relacionamento com startups. Entre as startups, 74% já celebraram contratos com grandes empresas, o que pode indicar certo grau de amadurecimento. O programa está agora na rodada de negócios, em que a indústria está escolhendo as melhores soluções para a sua cadeia de valor. A próxima etapa será validar se a solução desenvolvida é escalável, ou seja, funciona para outros potenciais clientes. Para 2018, espera-se que a ABDI disponibilize mais um relatório de acompanhamento das atividades desenvolvidas no âmbito do programa e um novo concurso nomeado Fasttrack, direcionado para gestores de inovação que nunca trabalharam com startups.

Academia para a prática da inovação

O papel das universidades no ecossistema de inovação do país é inquestionável e precisa ser ressaltado. Órgãos universitários, como a Agência de Inovação da Unicamp, Inova, responsável por patentes e parcerias com empresas e pelo fortalecimento do elo com empreendedores, e o Parque Científico e Tecnológico da Unicamp, sob gestão da Incubadora de Empresas de Base Tecnológica (InCamp), ilustra bem esse papel. “Em Campinas existe um forte movimento empreendedor ao redor da universidade. De acordo com a Inova, são 485 empresas-filhas, criadas por empreendedores vinculados a universidade – alunos, ex-alunos, ex-docentes, incubados na Incamp – ativas no mercado, que empregam 29 mil pessoas. O faturamento anual das empresas-filhas somado supera os R$ 3 bilhões, quase o dobro do orçamento da universidade. Destas, 32% têm negócios com foco em tecnologia da informação, 28% em consultoria e 19% em engenharia”, comenta Newton Frateschi, diretor-executivo da Inova e professor do Instituto de Física da Unicamp. “Essa rede de empreendedores contribui para uma imagem positiva da região, dentro e fora do país, e funciona como um catalisador para a chegada de novas startups e a aproximação de grandes empresas, em busca de parcerias. O faturamento das empresas-filhas, somado, é também um demonstrativo de que o dinheiro investido no ensino superior público de qualidade retorna para a sociedade em forma de riquezas, emprego e renda”, avalia.

A universidade atrai empreendedores e forma recursos humanos altamente qualificados, que em um ambiente de sinergia são agentes de mudança cultural e tecnológica. Segundo o professor, “esse movimento empreendedor inspira novas iniciativas. Hoje, além da incubadora, que foi criada em 2001, há disciplinas optativas de empreendedorismo na Unicamp, e a própria Agência de Inovação é responsável por organizar competições”.

“O Desafio Unicamp, competição de modelos de negócio para alunos de graduação e pós-graduação, e o Programa Inova Jovem, direcionado para alunos de colégio técnico e ensino médio regular, comprovam o interesse crescente dos estudantes por empreendedorismo. Além de fomentar um olhar atento às oportunidades de negócio e impactos reais no mercado”, avalia Frateschi.

Estimular o surgimento de startups dentro e fora das universidades e ajudá-las a interagir com grandes empresas é o caminho para a industrialização 4.0 do Brasil. “Queremos ver a tecnologia na rua. Para isso, precisamos de pontes. Nosso papel é ser ponte”, finaliza Rosana Jamal.

Camila P. Cunha é engenheira agrônoma (Esalq/USP) e doutora em genética e biologia vegetal (Unicamp). Atualmente é pós-doutoranda no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).