Sobre as práticas colaborativas entre arqueólogos e povos indígenas

Por Fabíola Andréa Silva

Crescem a cada dia os conflitos nas terras indígenas e áreas de entorno. Testemunhamos a violência da grilagem nessas terras, o crescimento ilegal da exploração de madeira e garimpo nas mesmas e o avanço desenfreado do agronegócio para dentro de seus limites. Neste cenário, o ataque ao meio ambiente é notório, e este se torna ainda mais evidente quando se considera os grandes  empreendimentos hidrelétricos e a mineração em grande escala; ambos levados a cabo, especialmente, nas proximidades das terras indígenas e das áreas de proteção ambiental.

Nosso país está testemunhando um momento de extrema intolerância e violência para com as populações indígenas. Cotidianamente, elas vêm sendo desrespeitadas, por diferentes setores da sociedade civil e pelo próprio Estado, no que se refere aos seus direitos conquistados, ao longo das últimas décadas. Diante disso, essas populações estão cada vez mais preocupadas com o destino de suas terras e com o futuro de suas próximas gerações. Neste contexto de incertezas, elas começam a vislumbrar na pesquisa arqueológica colaborativa mais um caminho para reafirmar a sua identidade, sua autodeterminação e garantir a soberania sobre seus territórios e patrimônios culturais.

Assim, nos últimos anos, tem aumentado o número de pesquisas colaborativas em terras indígenas, desde a formulação e apresentação da proposta de trabalho, a definição dos parâmetros e logística da pesquisa, até a busca pela construção de um conhecimento multivocal sobre o patrimônio cultural existente nessas terras. A meu ver, isto é tanto o resultado da atual conjuntura política e econômica, como da diversificação e multiplicação das nossas instituições de ensino e pesquisa em arqueologia, e da ampliação do número de pesquisadores com posicionamentos teórico-metodológicos diversos, e que têm se preocupado em fazer uma reflexão crítica de suas práticas e pressupostos científicos (Silva, 2012).

É importante lembrar que, nas Américas, se faz uma arqueologia pré-colonial do “outro”, da alteridade, e que a representação deste “outro” é construída a partir da visão do cientista social, ainda hegemonicamente orientada por uma ideologia universalista, ocidental moderna. Como apontam alguns autores, a “arqueologia oficial ocidental” promove a fetichização do registro arqueológico (Haber; Shepherd, 2016:2) e “uma naturalização da distância” entre o objeto da arqueologia e seu sujeito (Haber 2010). Ou seja, promove a ruptura entre o passado ameríndio e os povos indígenas atuais (Gnecco; Rocabado, 2010).

Os movimentos das populações nativas – não apenas nas Américas, mas em outros continentes – têm imposto novos desafios a essa “arqueologia oficial ocidental”, redimensionando o que sempre se constituiu em um monólogo científico/arqueológico para um diálogo entre diferentes modos de saber. Alguns autores chamam a isto de um movimento de “descolonização da arqueologia” e propõem o exercício de uma “arqueologia relacional (que se relaciona com outras visões, outras histórias, outros mundos)” e que invista “na transformação da disciplina e na sua maneira de enredar-se com as gentes” (Gnecco; Rocabado, 2010: 45). Hoje, no Brasil, diante da conjuntura que estamos vivendo – no âmbito das políticas econômicas e ambientais e dos trâmites da legislação indigenista e do patrimônio arqueológico – é urgente se engajar nesse movimento.

Crescem a cada dia os conflitos nas terras indígenas e áreas de entorno. Testemunhamos a violência da grilagem nessas terras, o crescimento ilegal da exploração de madeira e garimpo nas mesmas e o avanço desenfreado do agronegócio para dentro de seus limites. Neste cenário, o ataque ao meio ambiente é notório, e este se torna ainda mais evidente quando se considera os grandes  empreendimentos hidrelétricos e a mineração em grande escala; ambos levados a cabo, especialmente, nas proximidades das terras indígenas e das áreas de proteção ambiental.

Penso que a intensificação da parceria com os povos indígenas pode fazer com que a arqueologia se torne cada vez mais uma disciplina que promova a denúncia e o combate às políticas colonialistas e neoliberais de gestão dos bens culturais e das terras e seus recursos, em nosso país. Além disso, esta colaboração também poderá levar ao rompimento da dicotomia entre arqueologia pré-histórica e histórica, construindo uma perspectiva de arqueologia que busque compreender a complementaridade das histórias de longa e curta duração dos povos indígenas, ou seja, que invista seriamente em entender a profundidade e o devir das histórias indígenas em nosso país. Enfim, uma arqueologia que promova um entendimento mais “inclusivo” sobre as relações dos povos indígenas com o que nós arqueólogos chamamos de registro arqueológico e, ao mesmo tempo, possibilite entender como essas relações se traduzem nas suas trajetórias históricas e nos seus processos de continuidade e transformação sociocultural.

No cenário mundial atual, o arqueólogo está entre os principais agentes responsáveis pela valoração do patrimônio cultural, sendo que sua expertise é fundamental nos debates sobre o gerenciamento dos bens culturais e preservação do meio ambiente e no entendimento das trajetórias históricas dos povos indígenas. Sua atuação profissional se expande para o campo das políticas públicas e, muitas vezes, ele adquire o papel de facilitador ou de mediador nas relações entre os diferentes sujeitos envolvidos nestas questões relativas à herança cultural (Fairclough; Harrison; Jameson Jr.; Schofield, 2010).

Fabíola Andréa Silva é professora e pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de São Paulo.

Referências bibliográficas

Fairclough, G.; Harrison, R.; Jameson Jr.; John, H.; Schofield, J. (Eds). The heritage reader. London: Routledge, 2010.
Gnecco, C.; Rocabado, P. A. “Qué hacer? Elementos para una discusión”. In: C. Gnecco, C.; Rocabado, P. A (Eds.). Pueblos indígenas y arqueología en América Latina. Bogotá: Universidad de los Andes, 2010. pp. 23-47.
Haber, A. “Arqueología indígena y poder campesino”. In: C. Gnecco; P. A. Rocabado (Eds.). Pueblos indígenas y arqueología en América Latina. Universidad de los Andes: Bogotá, 2010. pp. 51-61.Haber, A.; Shepherd, N. “After ethics. Ancestral voices and post-disciplinary worlds in archaeology: an introduction”. In: Haber, A.; Shepherd, N. (Eds). After ethics. Ancestral voices and post-disciplinary worlds in archaeology. London: Springer, 2016. pp.1-10.
Silva, F. A. “O plural e o singular das arqueologias indígenas”. Revista de Arqueologia, vol. 25:24-42. 2012.

 

Imagem: Mamiraua/Aline Fidelix