O cérebro não é o ápice da evolução, cognição foi desenvolvida como meio de sobrevivência e plantas apresentam um sistema que pode ser considerado inteligente – eis algumas conclusões modernas sobre os sistemas nervosos
Adilson Roberto Gonçalves
Cognição é definida como os processos neuronais responsáveis pela aquisição, uso e retenção da informação. Os processos cognitivos mais comuns são percepção, aprendizado, memória, atenção e tomada de decisão, os quais podem ocorrer em animais, plantas e até em microrganismos. No artigo “The evolution of early neurogenesis”, de Volker Hartenstein e Angelika Stollewerk, a neurogênese e a evolução do sistema nervoso de diversas espécies são extensamente discutidas, constatando-se similaridade entre elas e também diferenças evolutivas que apareceram nos organismos.
Os sistemas nervosos de humanos, aves, artrópodes e moluscos são compostos por um cérebro – o qual pode variar em termos de zonas, tamanho e posição –, bem como por células especializadas chamadas neurônios, as quais compõem uma rede. Os especialistas afirmam que o tamanho do cérebro dos humanos é grande em comparação aos outros primatas. Daniela Rodrigues, professora do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, detalha que “há evidências de que este aumento esteja ligado ao bipedalismo (andar ereto) e à redução da arcada dentária; o cérebro dos humanos também difere dos demais primatas por possuir um córtex pré-frontal maior (região ligada à expressão da personalidade e ao comportamento social), mas bulbos olfatórios menores”.
Em contraste, explica a professora, “nas aves, o cérebro está deslocado para a região dorsal e caudal, dado o tamanho avantajado dos olhos, órgão crucial para o voo e que ocupa consideráveis espaços na cabeça”. O sistema nervoso das aves se desenvolveu em paralelo ao dos mamíferos. “Nesses animais também chama a atenção o hipocampo, estrutura cerebral responsável pela memória espacial”, continua Daniela. Algumas aves (as chamadas estocadoras) são capazes de fazer um voo eficiente e lembrar o local onde armazenam grãos por um período de meses.
Rodrigo Pavão, biólogo e professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da Universidade Federal do ABC, detalha a questão. “Tratando do sistema nervoso estruturado em gânglios ou centralizado, nós processamos informação modularmente, com circuitos distintos trabalhando em paralelo, com independência funcional. O encéfalo não é uma estrutura unitária, mas constituído de múltiplas estruturas envolvidas com diferentes funções, tais como sistemas sensoriais, sistemas motores, emoção e memória”.
A divisão cerebral é também distinta entre grupos de animais, refletindo processos de adaptação para sobrevivência. Daniela detalha que “os sistemas nervosos evoluíram de modo a possibilitar o processamento da informação recebida via aparato sensorial nos diferentes grupos animais, que varia de grupo para grupo”. Ela exemplifica: “um cérebro que processe as vibrações do substrato é de grande relevância para aranhas, enquanto que o processamento da luz se faz importante em visitantes florais diurnos”.
Comparados com outros grupos de animais, os sistemas nervosos de humanos são os mais similares entre si, pois seguem a organização básica compartilhada pelos vertebrados, com rombencéfalo, mesencéfalo e prosencéfalo. Alguns grupos de moluscos (polvos, em especial) e artrópodes também possuem sistemas nervosos elaborados e grande capacidade sensorial e de aprendizagem, além de exibir comportamentos flexíveis.
Rodrigo concorda que “quase todos os animais multicelulares exibem sistema nervoso, o que permite a comunicação rápida entre os outros sistemas do corpo, permitindo comportamentos coordenados (predação, escape, reprodução etc)”. Ele detalha que “animais com simetria radial (ex. cnidários) apresentam o sistema nervoso organizado em redes, com neurônios conectados de forma difusa, sem exibir gânglios; já animais com simetria bilateral têm sistema nervoso organizado ao longo do eixo do corpo, contendo nervos e gânglios”.
Gustavo Maia Souza é professor e coordenador do programa de pós-graduação em fisiologia vegetal do Departamento de Botânica, Instituto de Biologia da Universidade Federal de Pelotas. Ele explica que, como o ambiente natural (meio externo) apresenta flutuações constantes como temperatura, disponibilidade água e alimentos, ou radiação, há “necessidade vital de se acoplar à dinâmica do ambiente externo e esse acoplamento é realizado por um sistema de percepção-transdução de sinais-ação, gerando comportamentos que promovem uma conciliação dos sistemas vivos com seu ambiente variável, garantindo-lhes sua sobrevivência”. Esse acoplamento é melhor visualizado na figura a seguir, fornecida pelo professor.
“Esse sistema de processamento de informação envolve uma cadeia de transdução de sinais frequentemente, mas não exclusivamente, de natureza química (hormônios e neurotransmissores) e/ou elétrica que formam um sistema de alta eficiência em termos de velocidade e distância de transporte de informações”, explica o professor.
Inteligência das plantas
Gustavo estuda as “plantas como sistemas cognitivos inteligentes”. Ele afirma que foi construída uma “nova perspectiva sobre a fantástica capacidade de as plantas interagirem com toda a complexidade ambiental em seu entorno”. Ao que alguns experimentos indicam, as plantas possuem mais do que “simples respostas mecânicas aos estímulos externos”, segundo o pesquisador, mas “capacidade de lidar com as adversidades ambientais de forma eficiente e inteligente, exibindo evidências de características cognitivas como memória, aprendizagem, capacidade de solucionar problemas, e comunicação”. As conclusões surpreendem e os estudos são tratados com a devida cautela para não serem confundidos com pressupostos pseudocientíficos.
As plantas são submetidas a uma variedade de estímulos, que variam no tempo e no espaço e, por não se movimentarem, precisam enfrentar os desafios impostos pelo ambiente. “Esse estilo séssil de vida promoveu um caminho evolutivo que fez com que se tornassem organismos modulares (sistema sem organização central) e com um mínimo de especialização de células e tecidos, se comparadas a animais superiores, fazendo com que estejam aptas a perceber, interpretar e reagir aos diversos estímulos ambientais, integrando os sinais recebidos de suas diferentes partes, folhas, raízes e flores”, afirma.
Gustavo defende que isso significa inteligência, definida como “a capacidade de um agente em solucionar os problemas que lhe são impostos pelas contingências externas, tomando decisões que lhe confira a capacidade de se ajustar à novas situações frequentemente imprevisíveis; essas respostas podem ser armazenadas em diferentes mecanismos de memória (armazenamento de acúmulo de substâncias químicas induzidas pelo estímulo; alterações em rotas de expressão gênica e vias metabólicas alternativas; alterações epigenéticas no DNA e/ou cromossomos) que podem perdurar por tempos variados, inclusive produzindo uma memória transgeracional. Quando essa memória permite respostas futuras mais eficientes, há um sistema de aprendizagem estabelecido”.
Ápice da evolução e extinção de outras inteligências?
Daniela explica que a ideia de o cérebro representar o ápice da evolução não está mais em voga. “O cérebro é, de fato, uma estrutura muito complexa, única e incrível, mas isto não o torna um ápice, ou algo superior ou inferior a qualquer outra estrutura única existente nos seres vivos”, diz.
A ideia de uma estrutura ou grupo primitivo também está em desuso, pois remete a algo mal-acabado, inferior, o que nos induziria às falsas noções de melhora dos seres vivos, bem como de progresso na evolução. Estruturas ou grupos podem ter surgido em períodos de tempo mais remotos em comparação a outras, mas isso não os faz primitivos ou derivados ou evoluídos (evoluídos todos são, pois são parte do processo evolutivo). “Em suma”, conclui Daniela, “a natureza não é composta por espécies primitivas ou evoluídas, mas por espécies cujos grupos surgiram em diferentes momentos do processo evolutivo e que possuem estruturas únicas e adaptadas às pressões seletivas que passaram e continuam passando”.
Rodrigo também não crê que a concepção de cérebro sofisticado como ápice da evolução faça sentido, pois a ideia está associada à concepção errônea de evolução como processo linear e serial. Ele concorda que “a estrutura do sistema nervoso varia muito nos diferentes grupos animais, refletindo a variedade de estratégicas de interagir com o ambiente. Cérebros grandes e complexos surgiram independentemente em muitos grupos. Cérebros pequenos e simples apresentam muito sucesso. Independentemente da complexidade dos sistemas nervosos, os grupos estão sobrevivendo e se reproduzindo, indicando que tanto sistemas nervosos simples quanto complexos são adaptativos”.
“Não existe um ápice evolutivo, seja qual for. Evolução é um processo contínuo e auto-organizado, que teve um começo (origem da vida) mas, talvez, não tenha um fim; é um contínuo devir. O cérebro é uma das soluções para processar informação em alguns tipos de sistemas cognitivos. Certamente, não foi a primeira, nem a única para resolver o problema de sobrevivência”, aponta Gustavo.
Adilson Roberto Gonçalves é formado em química e pós-graduado em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp