Se sujar não faz mal. Limpar demais não faz bem

Ruam Oliveira

Hábitos de higiene consolidados nos últimos séculos e a ampla presença de produtos de limpeza no cotidiano impactam diretamente o microbioma

Quem já imaginou que a mania de limpeza pode não ser boa para as pessoas? Deixar tudo limpinho, usando grande quantidade de produtos de higiene, pode colocar em desequilíbrio o microbioma humano, que é um conjunto de microrganismos como bactérias, vírus e fungos.

“Os microrganismos que vivem no corpo humano têm influências tanto positivas como negativas na saúde. Um exemplo da influência positiva é a produção de compostos importantes como vitaminas”, destaca a bióloga Luciana Campos Paulino, professora da Universidade Federal do ABC. Ela aponta que desequilíbrios nessas comunidades de microrganismos “podem estar associados ao desenvolvimento de diversas doenças e condições como obesidade, diabetes, problemas neurológicos e câncer”.

O microbioma humano é impactado por uma série de fatores externos, como alimentação, ambiente e hábitos de higiene.  No caso deste último, com todas as mudanças vivenciadas ao longo dos anos, vale ressaltar: limpeza em excesso não é recomendada.

Manter hábitos de limpeza e utilizar produtos de higiene são comportamentos sempre incentivados – seja por médicos, especialistas ou pais. O uso de produtos específicos em tarefas de limpeza cotidiana do corpo como escovar os dentes, aparar as unhas e tomar banho auxiliam a remoção de microrganismos indesejáveis – mas também podem matar aqueles importantes na defesa do corpo, deixando-o vulnerável a doenças. “A higiene pode fazer também com que sejamos colonizados com microrganismos resistentes às condições impostas. Isso é, não passamos de um mundo sujo a um mundo mais limpo, mas sim eliminamos tanto patógenos quanto não patógenos, de modo que podemos estar selecionando os mais resistentes”, diz Talita Gomes Lourenço, doutora pelo Instituto de Microbiologia Paulo de Goés na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O uso excessivo de produtos de limpeza pode aumentar as chances de doenças alérgicas, inflamatórias e até mesmo as autoimunes. Há poucos estudos que se debruçam sobre isso, mas alguns sugerem que hábitos da vida moderna têm reduzido a diversidade microbiana.

“Nossa espécie não seria o que é sem a participação desse grande número de microrganismos, que geram variados benefícios, como a ocupação de nichos, impedindo, dessa forma, a aquisição de bactérias potencialmente mais patogênicas”, defende o médico e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, Marcelo Jenné Mimica em artigo.

O alerta para os perigos da limpeza excessiva foi dado no início da década de 1990. “Começou-se a falar na ‘hipótese da higiene’, que, embasada por dados epidemiológicos, indicava maior prevalência de doenças autoimunes e inflamatórias nos países mais desenvolvidos, onde as taxas de sanitização são melhores”, explica Talita Lourenço.

Mudança de hábitos

Tomar banho uma vez por dia não era um hábito dos portugueses. No livro Passando a limpo: história da higiene pessoal no Brasil, o jornalista Eduardo Bueno conta que foram os índios que introduziram o costume durante a fase do Brasil colonial. “Nessa época, os europeus tomavam de um a dois banhos por ano, e apenas por recomendação médica”, escreveu. No livro Histórias da gente brasileira – colônia, a historiadora Mary Del Priore aponta que os padres jesuítas só trocavam de camisas às quartas-feiras e aos sábados, tão poucos eram os hábitos de higiene.

Os brasileiros estão entre os recordistas quando se trata de banho. Segundo pesquisa realizada pela consultoria Euromonitor, são até 12 por semana – diferentemente dos chineses, por exemplo, que se banham uma vez a cada dois dias.

E o slogan da marca de sabão em pó “se sujar faz bem”, seria correto, então? Não muito. É importante salientar que a diminuição na higienização pode, sim, facilitar que patógenos se multipliquem e causem doenças.

Sistema em transformação

O acesso a microbiotas saudáveis tem impacto positivo na saúde ao longo da vida, visto que o microbioma humano é um sistema em constante transformação. Alguns estudos apontam que sua construção começa antes do nascimento, na fase intrauterina, quando o feto recebe bactérias maternas. O tipo de parto também é fator de influência. Nos casos de nascimento por cesariana, os bebês apresentam comunidades microbianas mais parecidas com as encontradas na pele da mãe.

O ambiente, as pessoas com quem o indivíduo se encontra e convive e sua alimentação também ajudam na “colonização” do microbioma.

“Nos países desenvolvidos, o excesso de higiene pode estar provocando uma diminuição da diversidade dos microrganismos que são adquiridos pelo neonato, com consequente impacto na saúde a longo prazo”, afirma Lourenço. A microbiologista aponta que o conceito de higiene está enraizado entre limpeza e manutenção da saúde, por vezes confundido com esterilização. Por isso, ela defende que enxergar a higiene como a simples eliminação de micróbios não faz sentido.

A revista Microbiome fez uma revisão do termo “higiene” em 2017, e definiu como “ações e práticas que reduzem a disseminação ou transmissão de microrganismos patogênicos e, assim, reduzem a incidência de doenças”.

Higiene bucal

Além do banho, escovar os dentes é uma tarefa do cotidiano que tem grande influência no microbioma. Manter a microbiota oral equilibrada pode auxiliar na prevenção de diversas condições patológicas. Mas por que ela é tão importante? É por meio da cavidade oral que microrganismos entram no corpo e, por isso, é um dos locais com maior diversidade deles. Na cavidade estão presentes fungos, vírus e também bactérias, que podem vir por meio da alimentação, ou num simples ato de usar o fio dental ou de escovação.

Na tese defendida no começo do ano na UFRJ, “Caracterização do microbioma oral e intestinal de indivíduos com saúde e doença periodontal”, Lourenço retoma estudos que apontam para a possibilidade de doenças serem causadas por desequilíbrios na microbiota oral. Entre elas, doenças cardiovasculares e respiratórias, diabetes e artrite reumatoide. “A maioria das pesquisas sobre essa relação não foram capazes de determinar a causalidade, e se o vínculo entre essas doenças é de associações uni ou bidirecionais”, aponta a microbiologista.

“Nenhum estudo clínico em seres humanos avaliou a capacidade de agentes patogênicos orais induzirem um distúrbio no microbioma intestinal. Porém, estudos do nosso grupo de pesquisa indicam que indivíduos com doença periodontal possuem um microbioma intestinal menos diverso que indivíduos saudáveis, indicando distúrbios nessa comunidade”, afirmou.

A professora Luciana Campos Paulino ressalta, porém, que são necessários estudos mais específicos para elucidar a questão.

Ruam de Oliveira é jornalista (UPM) e aluno do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)