Por Beatriz Pastre
A crise iniciada em escala celular em dezembro de 2019 com um novo vírus já se impõe em escala global com vários dilemas cruciais – muitos dos quais não são novidade nenhuma. A Covid-19 sobrecarrega os corpos e, no caso do corpo social, o desafia em todas as dimensões, da econômica à psicológica.
O capitalismo se generalizou, tornando-se a corrente que nos une. Um sistema internacionalmente integrado. As cadeias de produção das empresas espalhadas pelo globo, com os países centrais captando cada vez mais lucros ao se aproveitar do baixo custo de produção dos países periféricos e estabelecendo nas cidades centrais a parte mais rentável da produção – aquelas que chamamos de alto valor agregado –, como o marketing e o desenvolvimento. Assim, estando tão profundamente enredado nas estruturas fundamentais da sociedade, não é inesperado o pânico causado quando o vírus ataca e emperra o sistema econômico.
Sistema que é baseado na desigualdade. E que atingiu um desenvolvimento tecnológico exponencial: sua forma de crescimento quebrou barreiras de maneira eficiente para dominar as relações do homem com seus iguais, com a natureza e com seu futuro. A capitalização da vida nos leva a monetizar nosso tempo, natureza, as outras espécies. As desigualdades são expostas quando lazer, educação e saúde são privilégios. Essa ideia é resumida pelo economista Bruno Conti: “O sistema econômico capitalista não funciona com base no atendimento às necessidades humanas. Tem uma lógica própria, sem qualquer relação com o bem-estar da humanidade.”
Em artigo publicado no El País, Jamil Chade recupera dados referentes à situação pré pandemia no mundo: a “normalidade” significava que 821 milhões de pessoas ― aproximadamente uma em cada nove pessoas no mundo ― estavam subnutridas. Em 40% dos países do mundo existiam menos de 10 médicos por cada 10.000 pessoas. Apenas 60% das pessoas em todo o mundo contavam com uma pia, com sabão e água, em casa. Ou seja, 3 bilhões de pessoas viviam sem instalações básicas para simplesmente lavar as mãos em casa. Um terço de todas as escolas primárias carecia de água potável e saneamento. Um em cada quatro centros de saúde no mundo não tinha água.
Os contornos da desigualdade são traçados entre os países centrais e periféricos mas também no âmbito de cada estado nacional. No Brasil, homens brancos ganham 70% mais que mulheres negras para realizar o mesmo trabalho (Ipea) e dedicam quase a metade do tempo que as mulheres aos trabalhos domésticos (PNAD contínua, 2018).
Segundo o filósofo francês Bruno Latour, “é justamente seu caráter globalizado [da produção] que torna tão frágil o famoso desenvolvimento”. Com o alcance do novo coronavírus, vimos esse sistema desmoronar pouco a pouco. Crise de saúde pública instalada, empresas paralisaram suas linhas de produção, escritórios tornaram-se estabelecimentos fantasmas, o trabalho entrou nos lares.
A extinção de muitas atividades econômicas, a reinvenção de outras e o grande número de demissões afetam diretamente condições mínimas de vida, como moradia, alimentação e higiene básica. No Brasil, existem 38,8 milhões de trabalhadores na informalidade (PNAD contínua, 2019) enquanto 6 em cada 10 crianças vivem na pobreza (Unicef). De forma que sistemas de saúde saturados, escolas paradas resultando na falta de merenda, diminuição do trabalho intermitente e a ausência de uma renda mínima gestam as consequências dessa pandemia.
Meio ambiente sob pressão
Em 25 anos, a extensão de floresta tropical por habitante no mundo caiu pela metade. A compressão dos habitats animais resulta em uma maior disputa por território, não somente entre os animais silvestres, mas também com os seres humanos. Se cada vez mais limitamos os lares naturais, cada vez mais nos colocamos em contato com esses animais, facilitando a transmissão de patógenos. Além disso, a comercialização e o consumo de carne de animais silvestres se mostra associada diretamente à pandemia da Covid-19. Não por acaso os pangolins e os morcegos foram os primeiros apontados como intermediários do vírus. De acordo com um estudo feito em 2017 e publicado pela revista Nature, “quase todas as pandemias recentes são originárias de animais, principalmente animais selvagens”.
A legislação chinesa permite que 54 espécies selvagens sejam criadas em fazendas, comercializadas e consumidas, incluindo texugos, crocodilos, hamsters e tartarugas. Esses animais são vendidos em mercados como o de Wuhan, epicentro da pandemia, ficando confinados ao espaço de suas gaiolas e inevitavelmente entrando em contato com os outros animais, também transportados e consumidos de maneira irregular. Essa relação entre a indústria da carne, a maneira como a consumimos e doenças de origem animal não se restringe aos mercados chineses, exemplo disso são os diversos casos de E.coli nos EUA: em abril de 2019 a bactéria atingiu cerca de dez estados, sendo o contágio associado ao consumo de carne bovina in natura.
No Brasil, entre agosto de 2018 e julho de 2019 foram desmatados 9.762 km² da floresta amazônica (INPE); no primeiro semestre de 2019, foram registradas 160 invasões a terras indígenas.
Vírus como força de mudança
O filósofo Emanuele Coccia propõe a ideia de que o vírus é uma força anárquica de metamorfose. Coccia pensa “não somente no narcisismo que torna o ser humano mestre da natureza, mas também naquele que nos leva a conceder ao ser humano um poder destrutivo incrível e exclusivo sobre os equilíbrios naturais”. É por ele, continua o pensador, que “continuamos a nos enxergar como especiais, diferentes, excepcionais, inclusive na contemplação do dano que infligimos a outros seres vivos. Contudo, esse poder de destruição, do mesmo modo que a força da geração (de uma vida), está distribuído equitativamente entre todos os seres vivos”.
Ao tentar solucionar as urgências resultantes da pandemia, qual abertura daremos à ação estatal? Qual o limiar aceitável de controle e coordenação da vida privada, e de renúncia à individualidade pelo bem público? Em cima de quais condições estamos negociando?
A visão neoliberal que ganhava força há pelo menos 40 anos está se mostrando incapaz de trazer soluções para as milhões de mortes e os milhões de desempregados através do livre mercado. Assim como nas crises do início do século XX, as crises financeira (2008) e sanitária (2020) deste século põem em evidência as estruturas do mundo passado e forçam a discussão urgente dos estados futuros.
Os momentos de crise criam essa via de mão dupla para com o estado, se em um sentido ele é visto como um ponto de segurança e resposta para crise, de outro ele também tende a estender seu domínio para a vida particular dos indivíduos. Como em 2001, após o atentado de 11 de setembro, quando o governo americano aprovou o “USA Patriot Act”, lei que reforça o poder de agências de segurança (CIA, FBI, NSA) e diminui os direitos de privacidade ao permitir a espionagem de qualquer mensagem eletrônica considerada “suspeita”. A crise da Covid-19 já criou abertura para, por exemplo, o primeiro ministro húngaro Viktor Orbán, defensor da “democracia iliberal”, declarar estado de emergência e assim governar com plenos poderes.
Jamil Chade levanta a questão crucial: Será que convém ao mundo retornar à tal situação pré-pandemia? Para ele, “o inimigo invisível nos exige fazer perguntas incômodas. Não vamos precisar de pacotes de resgate. Mas um plano de ressurreição, que exigirá a humildade de líderes, planos, dinheiro e novas prioridades. Vai exigir coordenação entre países rivais, partidos rivais, ideologias rivais. Enfim, um novo pacto social, capaz de conduzir o mundo a um compromisso para reduzir suas desigualdades. Caso contrário, estaremos apenas estabelecendo uma nova base para a próxima pandemia”.
Beatriz Pastre é graduanda em ciências econômicas pelo Instituto de Economia da Unicamp e professora de história no cursinho popular Marielle Franco.