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Inconcluso
Carlos Vogt
 
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Os riscos ecológicos das plantas transgênicas: o que se diz e o que se entende.

Flávia Natercia


Os riscos potenciais que as plantas geneticamente modificadas oferecem ao ambiente têm sido apontados por cientistas, ambientalistas e entidades de defesa do consumidor, no Brasil e no mundo, como obstáculo ao cultivo em larga escala de plantas transgênicas. No debate travado na grande imprensa brasileira, esses riscos, não raro, são citados como possíveis fontes de efeitos, mais que indesejáveis, imprevisíveis para a saúde humana, a agricultura e a biodiversidade do planeta. E a imprevisibilidade serve de suporte para que se reivindique a suspensão da liberação do cultivo em larga escala, da comercialização e até mesmo do cultivo experimental de transgênicos.

Em um extremo do debate, encontram-se os "tecnófobos", para alguns "os novos Luditas" (Lewontin, 2001), que são contrários a qualquer aplicação da engenharia genética como técnica e proclamam a volta a uma alimentação "natural". Esta, porém, já não é mais possível. Como diria Bruno Latour, os alimentos constituem híbridos de natureza e cultura, embora a modernidade tenha em grande medida se fundado sobre uma falsa distinção entre essas duas esferas (Latour, 1994). No outro extremo, estão os "tecnófilos", que afirmam não haver nada a temer, uma vez que os organismos transgênicos são fruto de técnicas mais precisas e seguras de modificação genética do que os métodos convencionais. Como ocorre em diversas outras situações, a razão parece não estar em nenhuma dos dois extremos, e a diferença entre o que se diz e o que se entende talvez se encontre nas entrelinhas.

Em minha tese de doutorado, analiso as notícias publicadas sobre os organismos transgênicos, em dois períodos (1994/1995 e 1999/2000), nos cinco maiores jornais do país: Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Gazeta Mercantil, O Globo e Jornal do Brasil. Até o presente momento, foram analisadas 2284 matérias (entre notas, reportagens, artigos e entrevistas). Grande parte delas trata predominantemente de questões políticas, normativas ou econômicas, e não das questões científicas subjacentes, ainda que publicadas em seções dedicadas à ciência. Por isso, neste artigo, tratarei de um tópico que, acredito, não foi suficientemente explorado: não existe mais alimento natural, e uma das implicações disso é que certos riscos ecológicos dos transgênicos são previsíveis. Vejamos por quê.

Com razão, os biólogos moleculares afirmam que a engenharia genética aplicada à agricultura nada é senão uma nova forma de introduzir variabilidade no processo de melhoramento genético. E que o melhoramento, iniciado há cerca de 10 mil anos, já constituía uma forma de manipulação genética, mesmo não recebendo esse rótulo. Conseqüentemente, não é correto sinonimizar as expressões modificação genética e engenharia genética, como ocorre na mídia. De acordo com Cordeiro (2000), as plantas e animais domésticos atuais foram tão modificados geneticamente, que dificilmente sobrevivem sem intervenção humana.

Durante milênios, basicamente, o que se fazia era cruzar indivíduos diferentes da mesma espécie para obter híbridos com características desejadas. A redescoberta, no início do século, das leis de Mendel por Hugo de Vries, Karl Correns e Erich Tschermak von Seysenegg proporcionou ao melhoramento uma sistematização. A hibridização entre espécies diferentes pode ocorrer, sem intervenção humana, sendo maior a probabilidade de acontecer entre espécies "próximas", sobretudo entre as que pertencem ao mesmo gênero (o que indica uma separação mais recente de "caminhos evolutivos"). Mas grande parte dos cruzamentos entre espécies requer a intervenção humana para dar certo.

Além dos cruzamentos, entre os "métodos clássicos" de modificação de plantas está a mutagênese não-direcionada. Mutações, isto é, alterações nas instruções genéticas podem ser induzidas nas células vegetais por meio de substâncias químicas ou radiação ionizante. As alterações induzidas geram tanto características desejáveis quanto indesejáveis. Essas técnicas foram responsáveis pela introdução de diversas características importantes na agricultura. A gama de variações úteis era limitada, mesmo assim mais de 150 variedades de planta com características induzidas por mutagênese foram liberadas. Outros métodos clássicos são a cultura de anteras e óvulos e o resgate de embriões. Existem também "técnicas celulares" de modificação de plantas: a variação somaclonal e a fusão de protoplastos.

Finalmente, com o surgimento das chamadas técnicas moleculares, tem início o que se convencionou chamar de engenharia genética. Essas técnicas envolvem o emprego de vetores (vírus, plasmídios bacterianos) ou a inserção de genes por métodos como eletroporação, microinjeção ou canhões de partículas (Commission of Life Sciences, 1989). Elas se tornaram exeqüíveis, principalmente, devido à universalidade do código genético. Essa universalidade faz da evolução dos organismos um tipo de bricolagem: conjuntos de instruções semelhantes, com ligeiras variações, são combinados de diferentes maneiras formando diferentes espécies. Em relação aos procedimentos anteriores de introdução de variabilidade, as técnicas moleculares são, de fato, mais sutis e precisas, embora ainda comportem imprecisões como a incerteza sobre o número de cópias do gene inserido e o local de inserção. Nos últimos anos, têm-se acumulado muitos avanços no sentido de aumentar o grau de controle sobre a inserção, a contenção e a expressão dos genes (Carrer, 1998; Zuo, 2001; De Cosa, 2001; Al-Kaff, 2000).

Portanto, tendo em vista as técnicas anteriormente empregadas, os transgênicos não parecem mais "artificiais" que os outros vegetais cultivados em larga escala pelo mundo. As variedades empregadas no cultivo convencional, ecológico ou orgânico também são frutos de um longo processo de modificação. Mas, como pondera Norman Ellstrand, professor de Genética da Universidade da Califórnia em Riverside, isso não significa uma "boa notícia" ? essa constatação não é sinônimo de "risco zero"?. É preciso compreender o que fica insinuado nas entrelinhas: em termos de riscos oferecidos ao ambiente, é possível buscar lições no passado, no histórico da introdução de variedades convencionais, por exemplo, na avaliação do potencial para o surgimento de "superervas daninhas".

A dispersão de genes de espécies cultivadas para espécies silvestres e ervas daninhas é potencialmente um problema ecológico de grande importância. No início da década de 1990, a visão mais difundida era a de que a hibridização entre as plantas cultivadas e seus parentes silvestres ocorria numa freqüência baixa. "Essa visão era sustentada pela crença de que os caminhos evolutivos discretos das plantas domesticadas e seus parentes silvestres levariam a um crescente isolamento reprodutivo e era sustentada pelos desafios enfrentados às vezes por cultivadores na obtenção de híbridos entre variedades cultivadas e silvestres" (Ellstrand, 2001).

De acordo com Hails (2000), a resposta para a questão "Transgênicos vão formar híbridos com seus parentes silvestres?" é 'quase certamente sim'. No entanto, a freqüência com que os cruzamentos vão ocorrer, bem como as conseqüências desses episódios, é variável. Entre os primeiros a reconhecer o problema, estão dois cientistas da Calgene, uma das mais importantes empresas de biotecnologia dos Estados Unidos responsável pelo lançamento no mercado do tomate de longa vida Flavr Savr (Ellstrand, 2001).

Mas as espécies cultivadas variam enormemente quanto ao seu potencial de cruzamento com as espécies silvestres. Em um extremo, encontram-se aquelas propagadas exclusivamente por partes vegetativas como a bananeira; no outro, existem as que se reproduzem obrigatoriamente por cruzamento entre indivíduos diferentes. Isso depende, entre outros fatores, de características do pólen e da forma como ele é levado de uma planta a outra. O pólen de milho, por exemplo, pode percorrer distâncias superiores a 100 m pela ação do vento. No caso da soja, o grão de pólen tem maior densidade: a única maneira de dispersá-lo sem ajuda do homem é por meio de insetos. Mesmo desse modo, a dispersão do pólen da soja é extremamente limitada (Borém, 1999). A probabilidade de escape gênico é também maior no caso de introdução de uma variedade no centro de irradiação de sua espécie, ou seja, o local de onde ela surgiu.

Quando, porém, o grupo de Ellstrand se lançou à tarefa de medir o grau de hibridização espontânea (sem intervenção humana) entre Raphanus sativus (wild raddish), uma erva daninha importante na Califórnia, e a cultivar (variedade domesticada) da mesma espécie, descobriu que pelo menos um dos alelos (versões de um mesmo gene) presentes somente na cultivada tinha passado para a erva silvestre. Além disso, num experimento posterior, o grupo verificou que os híbridos produziam cerca de 15% mais sementes que as plantas silvestres. Conclusão? Nesse sistema, o vigor do híbrido favoreceria a disseminação de alelos característicos da planta cultivada na população natural (Ellstrand, 2001).

E, para surpresa de muitos, o caso do Raphanus sativus não representa uma exceção. O grupo realizou experimentos similares com o sorgo. E constatou que, também nesse caso, havia uma taxa de hibridização natural entre duas espécies: Sorghum bicolor (cultivada) e Sorghum halepense (silvestre). Nesse caso, não foram encontradas diferenças significativas de aptidão, ou seja, o grau de sucesso relativo na sobrevivência e reprodução. Outros grupos de pesquisa fizeram medições e experimentos com outras plantas cultivadas como o girassol, o arroz e a canola, e encontraram resultados semelhantes. De exceção, a hibridização passou a ser encarada como regra entre pelo menos as 13 espécies mais importantes em termos de cultivo comercial no mundo (Ellstrand et al.,1999).

O fluxo de genes das plantas cultivadas para seus parentes silvestres cria ao menos dois problemas a serem administrados: o surgimento de novas ervas daninhas ou de ervas mais difíceis de combater; a hibridização de uma cultivar com uma espécie rara pode levar a segunda à extinção em questão de poucas gerações. A contribuição potencial de uma planta transgênica para a formação de uma supererva daninha depende, em parte, do tipo de característica inserida. No caso da primeira onda ou transgênicos da primeira geração, entre os genes de interesse preferencialmente inseridos nas plantas estavam "instruções" para resistência a insetos ou herbicidas. Os dois tipos, em tese, são capazes de favorecer a reprodução de ervas daninhas. Mesmo que um aumento da capacidade de produzir sementes não se traduza necessariamente num maior potencial invasivo, os biólogos moleculares que lidam com essas características deveriam se preocupar com possíveis efeitos indesejáveis em populações naturais.

Existe, ainda, a possibilidade de fluxo gênico entre plantas cultivadas, que parece representar um risco ainda maior de integração do gene no genoma do híbrido e nas gerações seguintes. Já foi relatado um incidente de aquisição de tripla resistência na canola em Alberta, no Canadá. As plantas se tornaram resistentes a três herbicidas: Roundup, Liberty e Pursuit, sendo que no caso do último não se tratava de um "transgene", e sim de uma característica obtida por técnicas "clássicas" (indução de mutação).

O autor conclui, acertadamente, que os produtos do melhoramento genético não são absolutamente seguros, e não se deve esperar que as plantas transgênicas igualmente o sejam. Entretanto, o escape de genes das variedades cultivadas para o ambiente representaria, em termos de manejo, um desafio maior que o de substâncias químicas indesejáveis. Uma molécula de DDT "permanece uma única molécula ou se degrada, mas um único alelo tem a oportunidade de multiplicar-se repetidamente pela reprodução, que pode frustrar tentativas de contenção" (Ellstrand, 2001).

Outros riscos ecológicos têm sido avaliados em estudos científicos, a serem aprofundados em outra ocasião, como a emergência de resistência entre os insetos-alvo, efeitos nocivos sobre populações não-alvo de insetos e o surgimento de novas linhagens virais. (Re)Conhecer tais riscos, porém, não é o mesmo que levantar barreiras definitivas ao cultivo comercial de plantas transgênicas. Muito pelo contrário: reduz a margem de imprevisibilidade e representa um primeiro passo para que eles sejam corretamente estudados, avaliados, monitorados e administrados.

A quantidade de perguntas carentes de resposta ainda é bem grande (Wolfenbarger e Phifer, 2000), o que deve motivar o prosseguimento das pesquisas, e não sua interrupção. Não se deve ignorar os benefícios potenciais dos transgênicos de segunda e terceira geração, enriquecidos nutricionalmente ou transformados para produzir remédios, hormônios e vacinas. Por último, cabe lembrar que a esfera técnica não esgota o assunto; a discussão científica nunca deve ser dissociada do debate mais amplo sobre as conseqüências econômicas, políticas, sociais e culturais.

Flavia Natércia é bióloga, mestre em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas e doutoranda em Comunicação Social na Universidade Metodista de São Paulo, na área de Divulgação Científica e Políticas de C&T.

Referências bibliográficas:

  • Al-Kaff, Nadia et al. Plant rendered herbicide-susceptible by cauliflower mosaic virus-elicited suppression of a 35S promoter-regulated transgene. Nature Biotechnology, vol. 18, 2000: 995-999.
    Borém, Aluízio. Escape gênico ¾ os riscos do escape gênico da soja no Brasil. Revista Biotecnologia, ano II, no 10, setembro/outubro 1999: 101-107, disponível na URL: http://www.biotecnologia.com.br
  • Carrer, Helaine. Transformação de cloroplastos ? quais as vantagens em se modificar esta organela? Revista Biotecnologia, ano I, no 5, março/abril 1998: 52-54, disponível na URL: http://www.biotecnologia.com.br
  • Commission of Life Sciences. Field testing genetically modified organisms: framework for decisions. National Academy Press, 1989, disponível em http://www.nap.edu
  • Cordeiro, Antônio Rodrigues. Plantas transgênicas: o futuro da agricultura sustentável. História, Ciências, Saúde e Manguinhos, vol. VII (2), jul.-out. 2000: 499-502.
  • De Cosa, Brandy et al. Overexpression of the Bt cry2Aa2 operon in chloroplasts leads to formation of insecticidal crystals. Nature Biotechnology, vol. 19, 2001: 71-74.
  • Ellstrand, Norman C. When transgenes wander, should we worry? Plant Physiology, vol. 125 (4), 2001: 1543-1545, disponível em http://www.plantphysiol.org
  • Ellstrand, Norman C.; Prentice, Honor C. & Hancock, James F. Gene Flow and Introgression from domesticated plants into their wild relatives. Ann. Rev. Ecol. Syst., vol. 30, 1999: 539-563.
  • Hails, Rosie S. Genetically modified plants: the debate continues. Trends Ecol. Evol. 15, 2000: 14-18.
  • Jacob, François. O rato, a mosca e o homem. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
  • Latour, Bruno. Jamais fomos modernos & ensaio sobre antropologia simétrica. São Paulo, Editora 34, 1994.
  • Lewontin, Richard. It ain´t necessarily so & the dream of Human Genome and other illusions. New York, The New York Review of Books, 2001.
  • Wolfenbarger, L.L. & Phifer, P.R. The ecological risks and benefits of genetically engineered plants. Science, vol. 290, 2000: 2088-2093.
  • Zuo, Jianru et al. Chemical-regulated, site-specific DNA excision in transgenic plants. Nature Biotechnology, vol. 19, 2001: 157-161.

Atualizado em 10/05/2002

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