Editorial:

Clones e medos crônicos
Carlos Vogt

Reportagens:
Clonagem ainda é técnica em desenvolvimento
Clonagem terapêutica ainda é promessa
Leis restringem pesquisas com células-tronco
Quem defende a clonagem humana
Polêmica também envolveu primeiro bebê de proveta
Clonagem humana é debatida por juízes brasileiros
Políticos tentam regulamentar mundialmente a clonagem
Clonagem já tem amplo uso na agropecuária
Técnica não é novidade na agricultura
Clonagem sob o olhar da religião
Artigos:
Nada contra a clonagem
Bernardo Beiguelman

Clones na mídia
Hélio Schwartsman

Humanos ao amanhecer
Ulisses Capozoli
Seres Híbridos & Clones: da literatura para as telas, das telas para a realidade
Edgar Franco
Poema:
Clones
Carlos Vogt
 
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Clonagem humana é debatida por juízes brasileiros

Todos os indivíduos oriundos por clonagem,
serão outra coisa além de uma metástase
cancerosa - proliferação de uma mesma célula,
tal como acontece no câncer?
(Jean Baudrillard - A Transparência do Mal)

Estamos na era das tecnologias de reprodução em série. Produtos industriais, imagens, sons podem ser copiados e dar origem a cópias idênticas. Empresas que detêm o biopoder, não satisfeitas em produzir linhagens novas de animais, plantas e micróbios, também querem reproduzir seres humanos. O anúncio dos mais recentes progressos na técnica da clonagem gerou uma reação em cadeia de norte a sul do planeta. Paira no ar as maiores esperanças e as piores ameaças. De certo, apenas uma imensa incerteza e inúmeros questionamentos.

Dentre eles, dois campos se sobressaem, o da ética e do direito. A utilização da tecnologia genética reprodutiva tem um impacto direto sobre a sociedade, a família e os critérios de vida e morte. A questão que a clonagem do primeiro embrião humano trouxe é que o ser humano, ao ser objeto de manipulação genética, passa a ser também projeto e não mais somente sujeito de direitos. Isso mexe profundamente com os fundamentos da moral e da deontologia (tratado dos deveres) que embasam os códigos jurídicos que regulam a conduta humana.

Como o direito implica valores e o homem não pode viver sem limites e sem regras, é opinião geral que a justiça tem um papel reservado na regulação dessa matéria tão controversa. Para Eduardo Leite, advogado membro do Conselho Executivo da International Society of Family Law, o direito deve, seguramente, intervir no campo das técnicas biomédicas, quer para legitimá-las, quer para proibir ou regulamentar.

Para José Fagundes Jr., advogado membro da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB/SP, compete ao direito, trabalhando as questões biotecnológicas e da engenharia genética, a missão de criar leis que tratem desses avanços, além de aperfeiçoar institutos como a responsabilidade objetiva, onde os envolvidos nos processos deverão se pautar, por razões óbvias, no mais amplo conceito do que seja o respeito à dignidade do homem, devendo ser descartadas condutas eticamente incompatíveis com essa condição, como, por exemplo, experiências com seres humanos que resultassem em aberrações.

Outra questão bastante presente na preocupação dos juristas, é que como a justificativa terapêutica da genética que promete curar muitos males, será cada vez mais difícil aceitar os imperfeitos, deficientes e incapacitados. Segundo Matilde Carone Conti, advogada especialista em saúde pública, na história da humanidade a discriminação genética sempre esteve presente, pessoas com doenças ou enfermidades são isoladas e até mesmo já chegaram a ser eliminadas. Assim, não é possível permitir que na sociedade futura surja um novo sistema de classes, no qual os seres humanos serão diferenciados pelos seus genes, pois caminharíamos para uma genetocracia que nos afastaria dos valores éticos. O princípio da igualdade vigora entre as pessoas e cada indivíduo tem direito ao respeito à sua dignidade, qualquer que seja sua característica genética.

No processo de clonagem, prossegue Matilde, ficam pervertidas as relações fundamentais da humanidade: a filiação, a consangüinidade, o parentesco, a progenitura. Uma mulher pode ser irmã gêmea de sua mãe, faltar-lhe o pai biológico e ser filha do seu avô. Por isso, a manipulação da vida deve ser feita dentro do marco referencial da cidadania, com preservação da liberdade da ciência a partir do paradigma ético da responsabilidade, servindo de guia para as questões conflitivas e para aquelas novas situações que, certamente, vão surgir em decorrência do desenvolvimento da clonagem.

O seminário internacional Clonagem humana: questões jurídicas, realizado em 12 e 13 de novembro passado, foi o primeiro na América Latina e reuniu juristas, médicos e pesquisadores de vários países do mundo, em Brasília, para discutir o assunto. O evento, promovido pelo Conselho da Justiça Federal e realizado no auditório do Superior Tribunal de Justiça, bateu todos os recordes de inscritos e teve o objetivo de refletir sobre os aspectos legais da clonagem humana e servir como preparação para a futura repercussão política do assunto. Os estudos sobre as implicações jurídicas da clonagem caminham de forma mais lenta do que as pesquisas da ciência médica.

Em geral, a opinião dos juristas é que a investigação científica é moralmente neutra, o que não possui neutralidade é a utilização que dela se venha a fazer, os fins e os interesses a que serve, as conseqüências sociais de sua aplicação. A liberdade de investigação encontraria, indubitavelmente, segundo eles, as suas fronteiras, onde a experiência científica colide com os interesses, valores ou bens jurídicos tutelados constitucionalmente.

A liberdade de pesquisa é a regra mas, para os juristas não deveser plena, total, irrestrita: deve sofrer as limitações imprescindíveis para a integridade e a preservação da pessoa, na sua dignidade. Tais limites devem estar, no entanto, devidamente fundamentados e não podem ser inspirados por preconceitos morais, religiosos, ou por sentimentos inconsistentes de medo em relação à biotecnologia moderna.

Veja quais foram os principais documentos internacionais voltados para a ética na pesquisa com seres humanos

A ética não estaria atrasada em relação à ciência, ao contrário são fartos os estatutos que amparam e delineiam o campo de atuação das pesquisas, certos cientistas é que buscariam praticar ciência dentro de um contexto desatrelado de responsabilidade social.

A questão não seria de vazio legal ou brechas de escape, porque estas, para os juízes, vão existir sempre, em razão da velocidade dos fatos contrapor-se ao tempo de normatização dos mesmos. As pesquisas não deveriam ser paralisadas mas deveriam respeitar sempre os limites éticos. A legislação brasileira sobre a clonagem precisa estar em sintonia com as mais modernas tecnologias disponíveis, respeitando sempre os princípios da dignidade humana e evitando, com isso, que a vida do homem passe a ser algo descartável na busca incessante de novas descobertas científicas.

O ex-senador e jurista Josaphat Marinho em palestra proferida no seminário, disse que no seu entendimento, as leis brasileiras não permitem a clonagem. Desde a Constituição até o projeto de Código Civil aprovado recentemente pela Câmara, a clonagem não é permitida. A pessoa não pode dispor do corpo em vida, salvo para a hipótese de doação de órgãos. "Eu não sou contra as pesquisas, eu as elogio, mas saliento que elas têm que ter limites no que se refere ao homem e seu corpo", afirmou.

Ao encerrar o seminário, o vice-presidente do STJ, ministro Nilson Naves, assinalou que é necessário que haja muita reflexão e discussão, como as que aconteceram no seminário, "a fim de mobilizar o legislador para a criação de leis que aproximem a ciência da vida ao direito e à ética, pois é sumamente temerária, como já se disse por aí afora, a possibilidade de se brincar com Deus".

O ministro afirmou aos participantes do evento que o Brasil não está ignorando a evolução da biotecnologia e, em especial, da engenharia genética. "Nossa legislação está apta a salvaguardar os direitos individuais e coletivos de métodos e condutas impróprias, mercê da dignidade da pessoa humana, representando aí um dos princípios fundamentais da nossa República Federativa. Apesar de a Lei nº 8.974/95, de iniciativa do então Senador Marco Maciel, ser norma avançada, elaborada para, entre outros objetivos, garantir o espaço das investigações científicas e de seu desenvolvimento na área da engenharia genética, tudo pautado por compromissos com a biossegurança, faz-se necessária uma norma mais meticulosa para tratar da clonagem terapêutica. Por outro lado, aquela norma legal já tipifica como crime a manipulação genética de células germinais humanas, isto é, da célula-tronco responsável pela formação de gametas (apesar de hoje em dia já se falar em clonagem tomando-se uma célula comum!). Também é delito a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se os princípios da autonomia e da beneficência".

Outro ministro do STJ, Paulo Costa Leite, destacou que o Conselho Nacional de Saúde aprovou a resolução 196, há cinco anos, a qual prevê que as pesquisas envolvendo seres humanos devam atender às exigências éticas e científicas fundamentais, mas lembrou que os avanços conquistados pela ciência criam, a cada dia, novas situações não previstas pela legislação. Como, por exemplo, se uma mulher doar algumas células para clonagem, um ser humano for gerado a partir da célula original e a doadora criar a criança. A criança nascida da experiência será filha da doadora da célula ou sua irmã? Se for considerada irmã, será gêmea?

Tentar o enquadramento jurídico de situações como essa, que são hipóteses decorrentes da nova tecnologia da clonagem, que segundo a opinião de alguns cientistas já pode ser feita em seres humanos, terão que ser previstas pelo mundo jurídico. O exemplo acima poderia ser um episódio concreto e as implicações jurídicas para os familiares envolvidos na experiência genética seriam inúmeras. Os casos de herança, partilha de bens, guarda de filhos em caso de separação conjugal e diversos outros, dependem do que for disposto na legislação.

Inúmeros projetos de lei que visam regulamentar essas questões estão sendo discutidos no Congresso Brasileiro. O deputado Dr. Hélio (PDT-SP) foi o relator dos projetos que tratam da clonagem na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados. Inclusive, a Comissão promoveu uma audiência pública para tratar do assunto em 18/04/2001 com representantes da comunidade científica, do governo e da Igreja. Em pauta, o substitutivo que foi elaborado pelo Dr. Hélio ao PL 2811/97, originalmente de autoria do deputado Salvador Zimbaldi (PSDB-SP), que já tinha recebido um substitutivo na Comissão de Defesa do Consumidor e proíbe a clonagem de seres humanos e animais em todo o País, sob pena de prisão inafiançável. Posteriormente, esse substitutivo que permite a manipulação genética de células humanas com a finalidade de pesquisa e produção de tecidos ou órgãos para transplantes, foi aprovado pela Comissão em 19/09/2001.

Essa proposta impede o desenvolvimento de pesquisas genéticas que envolvam células totipotentes (retiradas de embriões vivos, fecundados por inseminação artificial, posteriormente sacrificados), possibilitando os estudos das células pluripotentes (células retiradas de seres humanos nascidos, cujos órgãos estão maduros e aptos à reprodução em ambientes químicos favoráveis, in vitro, ou em animais). Essas células poderiam ser implantadas em vítimas de queimaduras para desenvolver o tecido ou fibra muscular ou em pacientes necessitando de transplante de córnea, coração, rim e outros órgãos. Na ocasião, Dr. Hélio afirmou que não mais é possível fechar os olhos aos avanços mundiais nesse setor, permanecendo à margem dele. Por isso, considera importante estabelecer uma base de segurança às pesquisas, atribuindo-lhes limites e submetendo à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) a função de autorizar e fiscalizar as experiências desenvolvidas no País. "Desde que assegurados esses aspectos, em no máximo duas décadas poderemos dispor de um banco de tecidos e de órgãos para transplantes", concluiu. Agora o projeto vai ser analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e de Redação.

Em outro projeto, de autoria do deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL), apresentado à Mesa da Câmara, é prevista prisão para quem fizer experiências em clonagem humana. A proposta modifica o Código Civil para punir os autores dessas experiências com penas de 20 a 30 anos de prisão.

A legislação existente é suficientemente flexível para regular as questões relativas à clonagem, e nos casos em que não for, deve-se regulá-la rapidamente, ajustando-aàs novas conquistas da tecnologia.

É por isso que neste cenário o que deve prevalecer são os princípios, sobretudo, o da razoabilidade, que vai pautar as condutas, e o da aplicabilidade. São cinco os direitos fundamentais que delimitam qualquer investigação científica: o direito à vida; o direito à dignidade humana; o direito à intimidade; o direito à igualdade e à não discriminação; o direito à liberdade. Em torno deles há um vasto universo de disposições e enunciados da ciência jurídica, demonstrando que o direito está atento e procurando soluções.

(M. P.)

Atualizado em 10/12/2001

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