Editorial:

Clones e medos crônicos
Carlos Vogt

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Clonagem terapêutica ainda é promessa
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Quem defende a clonagem humana
Polêmica também envolveu primeiro bebê de proveta
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Artigos:
Nada contra a clonagem
Bernardo Beiguelman

Clones na mídia
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Ulisses Capozoli
Seres Híbridos & Clones: da literatura para as telas, das telas para a realidade
Edgar Franco
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Clone
Carlos Vogt
 
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Polêmica também envolveu primeiro bebê de proveta

Há 23 anos atrás, mais exatamente em 25 de julho de 1978, o nascimento do primeiro bebê de proveta levantou muitas das questões que retornam agora com a clonagem do primeiro embrião humano. Tendo em mente principalmente o futuro nada agradável imaginado por Aldous Huxley - em 1932 -, na ficção científica Admirável Mundo Novo, os temores de que alguma catástrofe biológica pudesse acontecer eram semelhantes aos de hoje. Bebês deformados, surgimento de uma nova sub-classe geneticamente planejada, barrigas de aluguel, foram algumas das imagens invocadas por cientistas, religiosos e jornalistas que repercutiram na mídia. Também fizeram parte nessa época interesses comerciais e de projeção pública de cientistas, médicos e empresários.

Segundo informam os historiadores Ana Maria Ribeiro de Andrade e José Leandro Rocha Cardoso no artigo "Aconteceu, Virou Manchete", a revista Manchete, até o início da década de sessenta, se constituiu em um espaço privilegiado da divulgação científica.

A revista Manchete, uma das principais publicações semanais da década de setenta, acompanhou vivamente o nascimento e os primeiros dias da inglesa Louise Joy Brown, a primeira criança resultado de fertilização in vitro. Foi Manchete quem comprou as fotos e reportagens exclusivas do Daily Mail, tablóide inglês que pagou a Lesley Brown, a mãe de proveta, £$ 325 mil (ou US$ 565 mil) pelas primeiras imagens do bebê.

Mas a reportagem que anunciou através das páginas de Manchete a iminência do nascimento do "Bebê de proveta, o milagre do século" - título da matéria de 5 de julho de 1978 - veio da revista Time. "Para alguns é o nascimento mais esperado dos últimos 2000 anos" anuncia em seu subtítulo.

Uma das primeiras fotos de Louise Joy Brown publicadas pelo Daily Mail

Com um pouco de ciúmes do "furo" jornalístico comprado pelo tablóide inglês, a reportagem de Time, reproduzida por Manchete, descreve o cerco da mídia que se formou em torno da clínica dos doutores Patrick Steptoe e Robert Edwards, na Inglaterra. Lá estava hospedada Lesley Brown, a dona de casa de 30 anos que se escondia das câmeras da imprensa mundial para cumprir o acordo com o Daily Mail.

No texto, busca-se a opinião de especialistas e da imprensa, e o temor que o experimento fracassasse se misturava à esperança de benefícios para a pesquisa e aos alertas da ficção científica. "Poderíamos ter fazendas de bebês, crianças produzidas em massa, 1984 seis anos mais cedo", exclamava o editor do tablóide sensacionalista inglês Daily Express. Na visão do editor se misturam o romance de George Orwell, 1984, que descreve uma sociedade totalitária vigiada permanentemente e o Admirável Mundo Novo de Huxley, que descreve igualmente uma sociedade totalitária, mas dividida em castas com diferenças genéticas planejadas. No livro de Huxley, o totalitarismo se estrutura através da ciência (com bebês de proveta, engenharia genética e "soma" a droga da felicidade) enquanto que na obra de Orwell a repressão acontece de forma violenta e policialesca.

Os cientistas mostram opiniões mais comedidas. Segundo a reportagem, muitos antevêem que a técnica "pode dar aos pesquisadores um importante instrumento novo de laboratório para descobrir caminhos no tratamento de doenças genéticas, testar outros métodos anticoncepcionais e - o que talvez seja mais importante - estudar de perto um dos processos mais aterradores da natureza: os primeiros movimentos da vida". O discurso é semelhante ao que vemos hoje, em que se ressalta a importância da pesquisa com a clonagem para que surjam novas soluções no campo da medicina.

Contudo, também há precaução como a demonstrada pelo médico John Marshall, que se pergunta sobre qual seria o procedimento se a técnica desse origem a um monstro - "um ciclope, por exemplo", imagina. Já o prêmio Nobel James Watson foi mais preciso em sua visão de futuro e alertava sobre a possibilidade de surgirem "mães de aluguel".

Louise Joy Brown ao ar livre - "O verde e o ar puro são bons para as crianças. De proveta ou não.", diz a revista Manchete em 16 de setembro de 1978.

Nas semanas seguintes ao nascimento de Louise Brown, as reportagens do Daily Mail compradas pela revista Manchete procuram mostrar como a criança nasceu sem deformidades e a experiência foi um sucesso. "Vou criar minha filha como um bebê normal" é o título da reportagem que acompanha as primeiras fotos do bebê de proveta. O texto procura mostrar como a mãe é uma modesta dona de casa e conta curiosidades como a proposta de casamento que Louise teria recebido de um rapaz do Oriente Médio.

Duas semanas depois, na reportagem "Louise: o bebê do século", também comprada do Daily Mail, a ênfase é na importância da maternidade para a mulher e para o casamento. "Não passariam de testemunhos vivos de meu fracasso como esposa" diz Lesley Brown sobre a hipótese de adoção de um filho. Também é enfatizada a importância da ciência médica para a felicidade dos casais, em uma mistura que contém religião e fantasia. "O mago por trás desse milagre..." é como a reportagem descreve o ginecologista Steptoe. "Uma menina bonita, perfeita, vivaz, que é o fruto de um verdadeiro milagre científico deste admirável mundo novo com que nem mesmo a fantasia de Aldous Huxley sonhara tão cedo e tão perfeito", empolga-se o autor do texto, que termina pedindo o prêmio Nobel para os autores do experimento. Pouco tempo antes a reportagem da Time alfinetava Steptoe dizendo que as verbas para seus experimentos tinham sido conseguidas na época em que ele realizava abortos ilegais.

Com menos empolgação e mais distanciamento, o semanário Isto É também relatou a façanha. Ligada prioritariamente a assuntos da política, a conquista mereceu da revista apenas um texto em 2 de agosto de 1978. O autor relata a briga pela notícia, o negócio acertado entre a mãe e o Daily Mail e o crescente debate em torno da questão. Segundo ele, algumas autoridades médicas acharam que era uma experiência irresponsável e a Associação Médica Britânica manifestou-se a favor de experiências com animais ao invés de ser usada uma cobaia humana. No entanto, para o autor, a Associação estaria escondendo seu orgulho por ter sido uma conquista britânica. O título da matéria é "Foi a mais badalada gravidez do mundo - o mundo melhora com esse bebê de proveta?" e questiona os impactos práticos da pesquisa no bem-estar da sociedade.

"(...) Em vez de ficarem selecionando de 5 em 5 anos, na nata das personalidades do sistema, um puro-sangue, um super-homem, para fecundar a nação, por que eles não convocam logo os 110 milhões de brasileiros e recolhem o voto, digo, sêmem deles todos? Já pensou, mãe? a dona Lesley vai ter vergonha de ter feito esse barulho todo com seu bebezinho de dois quilos e seiscentos gramas quando vir nascer a nossa democracia de nove milhões de quilômetros quadrados!"

Henfil, na Isto é de 02/08/1978, em uma de suas Cartas à Mãe

Na mesma edição de Isto É o bebê de proveta é o gancho para que Henfil, em uma de suas cartas à mãe, fale da abertura democrática prometida pelo presidente militar Ernesto Geisel e que demorava a chegar. O país vivia a escolha, que aconteceria nos altos escalões militares, entre os generais Euler Bentes Monteiro e João Baptista Figueiredo para ocupar a presidência. Henfil comparava o bebê de proveta com o voto/sêmem, que queria que fosse recolhido dos então 110 milhões de brasileiros, e que geraria a democracia.

Na semana seguinte, em 8 de agosto, o jornalista Cláudio Weber Abramo voltava ao assunto bebê de proveta para desdenhar da técnica (que considera déja vu) e do alarde feito. Segundo ele, o futuro estaria na engenharia genética, que iria poder alertar os pais do futuro sobre o sexo e possíveis doenças do bebê, geraria animais melhores para o consumo (com mais carne) e, talvez, como na ficção científica, poderia criar novos tipos de humanos - mais fortes, altos e bonitos ou, tragicamente, "imbecis para cumprir tarefas especiais, operários semiconscientes ou carne-de-canhão".

Passados 23 anos desde o nascimento do primeiro bebê de proveta, novamente muitos dos medos, alarmes e fantasias são rearticulados e recolocados tendo, agora como perspectiva a clonagem de um ser humano. Ao que parece, longe de terem sido postos de lado, as questões apenas ressurgem com alguns novos elementos e reavivando outros. Alguns dos temores éticos - como o surgimento de "barrigas de aluguel", se concretizaram. Outros ainda podem estar por vir. E a pergunta feita pela Isto É ainda vale - o mundo melhora com a clonagem humana?

 

Atualizado em 10/12/2001

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