O promissor mercado de insetos comestíveis

Por Bruno Moraes e Leonardo Fernandes

Sendo utilizado como ingredientes na alta gastronomia ou como farelo na ração de animais, o mercado de insetos comestíveis é promissor tanto do ponto de vista econômico como ambiental. Todavia, o tabu relacionado à prática atravanca o seu desenvolvimento no Brasil, que ainda não possui  legislação específica para consumo humano.

A mesa do almoço estava farta. Normalmente isso seria motivo de satisfação, mas aquela refeição estava longe do comum. Os pratos servidos para a reportagem da ComCiência continham um ingrediente que faria muitos perderem o apetite: insetos. Em meio à salada de alface, tomate e pepino, as diminutas larvas de besouro até que não chocavam tanto. Mas na travessa de farofa não havia como ignorar os grilos que faziam as vezes de azeitonas – o verde opaco dos bichos ganhou destaque em meio ao amarelo da porção. Nem a sobremesa escapou, a salada de frutas veio com cobertura de mel, granola e paçoca de grilos.

“O (escritor) Monteiro Lobato comia grilos, gostava tanto que apelidou de ‘camarões do céu’”, encoraja o chef Casé Oliveira, ou melhor, “bugs cook” como prefere ser chamado. Vestindo avental e touca branca de cozinheiro com um par de protuberantes anteninhas, a figura sorridente do anfitrião só tornava a experiência ainda mais surreal.

Casé Oliveira apresenta a farofa de grilos. Imagem: Leonardo Fernandes

Vencido o medo da primeira mordida, o gosto até que não é nada mal. Tostados na manteiga e temperados, os grilos são crocantes, realmente lembrando o camarão na textura. Em comparação, as larvas são muito mais leves ao paladar, tão imperceptíveis como seu tamanho. Já o sabor da paçoca se perdeu em meio ao doce do mel e das frutas.

“Contanto que você não colha na natureza, não há risco para a saúde em consumir insetos. Basicamente eles são criados isolados do ambiente exterior em caixas de plástico, se alimentam exclusivamente de cereais e são mortos por congelamento. Aí chegam para preparo assim, já cozidos e desidratados”, garante Oliveira, enquanto apresenta sua despensa, que contava com um suprimento mais exótico do que o que foi servido, como larvas de mosca desidratadas, casulos de bicho-da-seda enlatados e gigantescas baratas de Madagascar cozidas, quase do tamanho de um dedo.

Apesar do entusiasmo, ele reconhece que o uso de insetos na culinária caminha a passos de formiguinha no Brasil. Uma barreira tão difícil de superar quanto o nojo do consumidor é a legislação, que ainda é inexistente para consumo humano. No intuito de difundir a antropoentomofágica – como é conhecida cientificamente a ingestão de insetos ou de seus produtos pelo homem – Casé Oliveira ajudou a fundar a Associação Brasileira dos Criadores de Insetos (Abrasci) em 2015. Formado por criadores e pesquisadores, o grupo atualmente conta com 262 membros e 30 viveiros cadastrados. O setor pressiona para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) finalmente reconheça os insetos como alimentos, estabelecendo normas de produção, comercialização e fiscalização.

Sobre o assunto, o único aspecto regulamentado pela Anvisa foi a RDC (resolução da diretoria colegiada) nº 14 de 2014, que estabelece limites toleráveis de “matérias estranhas” em alimentos. De acordo com o documento, algumas matérias estranhas, como insetos, são consideradas parte do processo produtivo e, dentro dos limites, não ameaçam a saúde dos consumidores. Ou seja, a legislação vigente permite fragmento de insetos em comidas e bebidas, considerando a sua presença uma falha inerente da fabricação – que se inicia na colheita do alimento, passando por todo o processamento envolvido, até chegar às embalagens fechadas.

Por exemplo, segundo a lei, é permitido até 10 pedaços de bicho em 100 gramas de produtos à base de tomate, como ketchup ou molhos; na farinha de trigo, o limite de tolerância é de 75 pedaços em apenas 50 gramas; no café em pó aumenta para 60 fragmentos em 25 gramas. Se você pensou em tomar um chá de camomila para se acalmar, uma má notícia: insetos inteiros mortos são permitidos no produto, assim como nos de menta ou hortelã, numa proporção de 5 a cada 25 gramas.

Apesar de não indicarem risco à saúde, nenhum consumidor gostaria de saber que há insetos mortos em seu alimento, mesmo sem ser visível a olho nu. Entretanto, a lei é vista como um avanço, já que não havia limites de tolerância claros anteriormente, cabendo à fiscalização avaliar caso a caso a situação de risco. Ressaltando que a agência garante que todos os limites estabelecidos referem-se a fragmentos microscópicos. “A resolução da Anvisa toca na questão apenas no aspecto sanitário, mas não pode ser encarada como uma regulamentação do setor. Infelizmente, o governo brasileiro ainda vê insetos como pragas, deixando todo um mercado na informalidade”, afirma a Abrasci, em comunicado.

Um negócio promissor, de acordo com a consultoria Arcluster, empresa de Cingapura que pesquisa tendências. Ela estima que o mercado global de insetos para alimentação deverá ser de 1,54 bilhão de dólares em 2023, na segunda edição do relatório sobre entomofagia. O relatório aponta que dois bilhões de pessoas em todo o mundo comem insetos, uma tendência que vem aumentando nos últimos quatro anos no Ocidente. Impulsionado por um contingente de fanáticos por fitness, o mercado já conta uma variedade de produtos processados e embalados que contém o ingrediente, como a empresa americana Exo, que produz barras energéticas à base de farinha de grilos, e a startup britânica Grub, que vende shakes de proteína de grilos. O apelo do produto são as suas altas doses de proteína, ferro e zinco, essenciais nas dietas dos atletas de alto rendimento.

No caso do Brasil, a esperança pode vir do agronegócio. Usados inteiros, misturados entre sementes e frutas secas ou moído tipo farinha, os insetos poderiam complementar a alimentação de frangos e bovinos que dependem da soja e do milho, commodities cuja alta no preço encarece o custo da produção. Algumas empresas nacionais já investem no filão, como é o caso da Safari Insetos e da Intech Brasil, que fornecem tanto insetos desidratados para ração quanto os bichos vivos, para atender o mercado pet de animais exóticos como aves e répteis.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) já autoriza criadouros no país, que operam através de um selo conhecido como SIF (Serviço de Inspeção Federal), que assegura a qualidade de produtos de origem animal comestíveis e não comestíveis destinados ao mercado interno e externo. Embora não exista diferença na produção dos insetos para animais e humanos, já que seguem as mesmas exigências sanitárias, é necessário um SIF específico para cada atividade e viveiros separados, um custo muito alto para o tímido mercado nacional. De acordo com dados da Abrasci, hoje um quilo de inseto desidratado no país não sai por menos do que R$ 250.

A solução de seis patas

Até mesmo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, aposta no desenvolvimento da prática. O órgão internacional publicou, em 2013, um documento que traz dados e perspectivas a respeito do uso de insetos na alimentação humana, apontando a entomofagia como uma das possíveis soluções para o problema da fome e da desnutrição humana. Especialmente levando em conta as previsões de que teremos um número aproximado de 9 bilhões de pessoas no planeta até 2050, a FAO sugere que a adesão em larga escala de insetos como fonte de proteína animal é uma das soluções mais sustentáveis para os problemas de hoje e de amanhã. Mas seria possível vencer as barreiras culturais que temos à ideia de comer insetos?

A entomofagia é mais comum na história humana do que podemos imaginar no Ocidente. De fato, existem evidências que sugerem que os primeiros primatas — grupo de mamíferos do qual faz parte a espécie humana — eram animais insetívoros que viviam nas árvores. Mas, mesmo sem voltar tanto no tempo, é possível ver evidências do quanto insetos são um item alimentar importante na dieta humana há milênios. De achados arqueológicos de restos de piolhos e larvas de besouro em fezes humanas fossilizadas nos Estados Unidos às menções bíblicas ao consumo de gafanhotos, passando, claro, pelo consumo de formigas em diversos países do continente africano, vespas na China e a famosa farofa de bitus no Brasil, insetos estão no cardápio humano do passado e do presente. E talvez sejam uma das únicas formas de garantir um cardápio humano para o futuro.

“A criação de insetos é mais vantajosa do ponto de vista ambiental, pois necessita de uma área muito menor, uma vez que pode ser feita de forma vertical, enquanto a pecuária tradicional requisita uma vasta área para a criação dos animais e ainda, para a produção de grãos que irão alimentar esses animais”. É o que conta a bióloga Ariana Vieira Alves, doutoranda em ciência e tecnologia ambiental pela Universidade Federal da Grande Dourados. De fato, a área atualmente dedicada à produção de alimentos corresponde a mais de um terço (37,6%) da superfície terrestre do planeta. E, ainda assim, nossos sistemas de produção e distribuição de alimentos são incapazes de resolver o problema da fome. Cada vez mais os artrópodes se mostram como uma solução pela procura da humanidade por fontes de proteína com maior rendimento.

Além de ocupar menos terras, a produção de insetos tem uma outra vantagem no que diz respeito ao rendimento. É a chamada “taxa de conversão alimentar”, uma medida que corresponde à quantidade de alimento que se tem de fornecer a animais de criação para obter o retorno de um quilograma de biomassa. Descontando as partes não-comestíveis, o gado, por exemplo, precisa comer aproximadamente vinte e cinco quilos de ração para cada quilo de produto (no caso, carne) gerado.

Mesmo o frango, a carne mais consumida pelos brasileiros e que, coincidentemente, possui uma das melhores taxas de conversão dentre os animais criados para produção de alimentos, tem uma taxa de quatro quilos e meio de ração para cada quilo de carne, também descontando as partes não-comestíveis. Por sua vez, grilos conseguem uma taxa de impressionantes dois quilos e cem gramas de alimento para cada quilo de retorno. E, ao contrário de vertebrados como bois, porcos e frangos, os grilos não possuem ossos para serem descartados, podendo ser ingeridos inteiros.

Outra vantagem ambiental importante dos insetos em relação às fontes de proteína animal que possuímos hoje tem a ver com a contribuição para o efeito-estufa, e para a mudança climática global. Muito além de contribuir com a mudança do clima apenas pela conversão de florestas e outras áreas naturais em pastos, o setor de pecuária é responsável por 14,5% de toda a emissão mundial de gases do efeito estufa, segundo a FAO. Isso significa que a produção de carne supera a emissão total do setor de transportes que, somando automóveis, trens, navios e aviões, chega a apenas 14% do total de emissões mundiais, segundo estimativas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC.

A produção de gases-estufa por criações de insetos como grilos, gafanhotos e larvas de tenébrio chega a ser cem vezes menor do que a de criações de porcos e gado. Esses insetos, além disso, não produzem metano, um dos principais gases emitidos pela pecuária bovina, que contribuem para o efeito estufa cerca de vinte e três vezes mais do que o gás carbônico, que é o gás de efeito estufa mais famoso. Não se pode dizer o mesmo de baratas, cupins e outros tipos de besouros alimentares como os escaravelhos que, assim como as vacas, possuem em seus sistemas digestivos os microrganismos que produzem o metano. Mas mesmo o pior dos casos, o besouro Pachnoda marginata, produz apenas 4,3% do metano liberado por vacas em relação à mesma quantidade de biomassa gerada. Além disso, podem ser utilizados rejeitos orgânicos para a alimentação de insetos, como subprodutos da agricultura, o que faz com que a criação de insetos para a alimentação tenha um potencial ainda maior de limpar o nosso planeta.

Nutrição boa, segura e barata

Ariana Alves pesquisa o uso de insetos para consumo humano desde seu mestrado, estudando as características nutricionais e os possíveis usos em produtos alimentícios de três espécies. “Começamos estudando o potencial nutricional de larvas de besouros como o tenébrio e o do coquinho da bocaiuva, palmeira típica do Cerrado brasileiro. Os resultados foram promissores e, então, demos continuidade à pesquisa buscando desenvolver produtos alimentícios que viabilizassem o consumo desses insetos. Atualmente, trabalhamos também com pupas de bicho-da-seda, que são um subproduto incrivelmente nutritivo da produção de seda”, diz a pesquisadora. Segundo ela, um dos motivos principais pelos quais os insetos são uma boa opção alimentar é o fato de que eles aliam o alto teor proteico à presença de gorduras insaturadas, as chamadas gorduras “boas”.

Para tornar todas essas vantagens um pouco mais palatáveis, tem-se apostado em produtos derivados de insetos, em vez do uso dos animais inteiros. “O comércio de barras proteicas, cookies e outros alimentos prontos para o consumo, elaborados com adição de insetos, é a solução para que o ingrediente alcance um público maior”, diz Ariana. As possibilidades de preparo são imensas, indo da farinha de grilos (com a qual se pode fazer virtualmente qualquer receita) a antepastos, chocolates, hambúrgueres e até mesmo um macarrão feito de insetos.

Em outra direção, temos chefes de cozinha que tentam incorporar insetos a pratos simples, elaborados, e até mesmo gourmet, sem fazer questão alguma de disfarçá-los. Uma dessas chefes que têm orgulho de seus insetos é Letícia Massula, estrela do primeiro programa brasileiro produzido para a BBC HD, o Brazilian cookbook. Embora a especialidade de Letícia não sejam os insetos, ela sabe bastante sobre as tradições culinárias do Brasil, e afirma que, apesar de não sermos um país tão tradicionalmente entomofágico quanto o México e outros países latino-americanos, os invertebrados têm o seu espaço na cultura gastronômica brasileira.

Leticia Massula (arquivo pessoal)

“As tanajuras ou içás são consumidas em vários estados brasileiros (especialmente em São Paulo) na forma de farofa, tradição que ainda permanece em cidades do interior do país na época da revoada”, diz ela. E completa: “A formiga maniwara, que tem gosto de capim limão, é muito apreciada no Amazonas, em especial pelas comunidades do alto Rio Negro. É uma tradição dos Baniwa”. A maniwara, além de ser para a chefe um capítulo à parte, é um dos ingredientes mais interessantes que ela já experimentou e uma das formas mais “amenas” de conquistar o paladar do grande público. Tanto que restaurantes de renome como o D.O.M, em São Paulo, do chefe Alex Atala, e o Banzeiro, em Manaus, do chefe Felipe Schaedler, oferecem formigas em seus cardápios.

E para aqueles que ainda associam os insetos a doenças e sujeira, Letícia argumenta que eles são uma fonte muito mais segura de alimentação, apresentando muito menos risco de transmissão de zoonoses do que animais que fazem parte do nosso cardápio no dia a dia como as vacas, porcos e aves. “Um dos principais riscos que eles podem oferecer é o fato de que podem causar alergias, principalmente para quem já é alérgico a crustáceos como o camarão e o siri. Tirando isso, o resto é puro tabu”, conclui.

Para saber mais:
Dados e estatística da FAO sobre agricultura: http://www.fao.org/faostat/en/#data/EL/visualize

Para experimentar: 
Aos interessados em provar gastronomia à base de insetos, o chef Casé Oliveira oferece um cardápio completo, incluindo entrada, sobremesa e bebida. Informações em: abrasci.org@gmail.com

Bruno de Sousa Moraes tem graduação em ciências biológicas (UFRJ), mestrado em ecologia (UFRJ) e é aluno do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.

Leonardo Fernandes é jornalista (UFPA) e aluno do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.