Pós-verdade e pós-falsidade

Por Carlos Vogt

Pós-verdade é mais um conceito-coringa, próprio da contemporaneidade, como pós-modernidade, e outros pós que virão. Diz tudo e diz nada, porque é feito da confusão entre o que se transforma, por conhecer, e a transformação do conhecimento na banalidade de receitas de autoajuda epistemológica. Mas é, ele próprio, derivado, entre outras coisas, da mudança de paradigma científico que se deu ao longo do século XX, com ênfase na substituição de um modelo ontológico de verdade por um modelo probabilístico.

O processo do conhecimento é dinâmico. As diferentes ciências ou formas de conhecimento vão desenvolvendo novas metodologias, vão incorporando instrumentos, artefatos, equipamentos e tecnologias que permitem grandes avanços e abrem novas possibilidades de desenvolvimento. Todos eles vão modificando esse enorme campo, ao qual não pertencem propriamente. Uma parte pertence àquilo que é próprio do campo estruturado da ciência – ou do conhecimento organizado –, outra é residual em relação a esse campo em cada momento histórico.

É a ideia da epistemologia de [Charles Sanders] Peirce, na qual se tem o signo, o interpretante e o conjunto de interpretantes e estes vão ampliando o campo das condições de modificação do próprio conhecimento contido no objeto estruturado da ciência ou de um conhecimento organizado. É um pouco a ideia da epistemologia do começo do século XX, sobretudo depois da filosofia da linguagem e da linguística: a ideia de que é possível transferir para as ciências humanas os princípios de organização do objeto do conhecimento, do objeto da ciência. De que se pode criar esse objeto, dar a ele status epistemológico e, por meio do objeto, simular o fenômeno. Quanto maior a capacidade de simulação do objeto, mais compreensiva, explicativa e preditiva é a ciência, e assim por diante. Então essa dinâmica supõe de fato uma dinâmica de transformação.

O modelo positivista sobre o qual se assentou o conhecimento desenvolvido no século XIX tem origem no século XVIII, no racionalismo iluminista. Esse modelo positivista considera a verdade de forma absoluta, a ponto de permitir que daí derive uma ideologia da crença na verdade científica, uma crença praticamente religiosa. A igreja positivista acabou levando a isso. Isto é, com o desenvolvimento da matemática, da lógica modal, ela foi sendo posta em xeque, até a formulação dos modelos científicos decorrentes em parte das grandes transformações provocadas pela própria ciência: o relativismo de Einstein, a física quântica, enfim, tudo o que se pensava já ser conhecido, já estar definido, determinado. O mundo aristotélico em vigência, as leis da mecânica, Newton, tudo o que se dava por resolvido não o estava mais. Havia Max Planck, havia a teoria quântica, havia as partículas, rolex replica, a física, e isso mudava tudo. Do ponto de vista do conhecimento, essas mudanças acompanham as grandes transformações culturais e artísticas do começo do século XX e alteram os paradigmas da ciência, ou seja, da verdade considerada de forma absoluta, como um fim alcançável. Cai a ideia de que a verdade está no mundo e de que é preciso, então, descobri-la no mundo.

Seria necessário substituir essa noção por uma visão inteiramente estatística, probabilística. Você apenas se aproxima da verdade, mas não a alcança a não ser por eliminação das hipóteses que vão se demonstrando falsas e, assim, possibilitando um conhecimento maior das estruturas intelectuais que permitem conhecer o mundo. Em momento algum se está falando do mundo; está-se falando do conhecimento do mundo e das condições de produção desse conhecimento, das estruturas intelectuais, das estruturas mentais. Como se apreende, como se descobre isso? Quanto mais você fala do mundo, mais está falando de você. Isso muda tudo, na ciência e em tudo mais. A psicanálise, no final do século XIX, começo do XX, surge com uma força – que eu diria arrasadora – em relação aos modelos de tratamento da mente, a tudo o que se conhecia na época, mesmo em relação ao que o próprio Freud tinha ido estudar com Charcot. Tudo isso, na dinâmica do conhecimento, integra campos que fundamentam o nascimento da psicanálise.

Psicanálise e literatura são inseparáveis, pois ambas nascem exatamente do exercício da imaginação. Isso é bonito e instigante, sobretudo para um homem que, a partir da fabulação do mundo, se esforça por construir um modelo de interpretação. É algo extremamente poético, de uma enorme força explicativa, e que tem como princípio ou célula de organização a metáfora e as figuras de linguagem de modo geral – de fato, principalmente a metáfora. Assim, é uma visão analógica do mundo. E, sendo analógica, se contrapõe, epistemologicamente, às construções de interpretações do mundo e de nós mesmos ditas digitais, todas elas baseadas na lógica binária.

A ciência tem um compromisso não só com a demonstração, mas também com a experimentação. Quando se diz que a física é uma ciência experimental, isso tem muita força; significa que se pode demonstrar a verdade de um fenômeno, de uma análise, e também que isso pode ser simulado em laboratório. Pela simulação, pela experimentação, você consegue avaliar as consequências de um projeto. A dinâmica desse processo mexe com os campos do conhecimento, porque você amplia o objeto, ou amplia o que pode caber no objeto estruturado do conhecimento e da ciência. Quanto mais você amplia o objeto, mais aumenta o residual. Não que o residual se esgote, pois o fenômeno é inesgotável, quer dizer: nossa tarefa está fadada a não se completar. Não se trata de fracasso, mas estamos fadados a não conseguir completá-la, porque, quanto mais incorporamos, maior é o residual que produzimos, e é o residual que constitui a nossa atração e o nosso fascínio por aquilo que conhecemos.

Há um processo de transformação que se acelera até por causa das tecnologias que foram sendo incorporadas às pesquisas, às formas de produção do conhecimento. Por exemplo, a ressonância magnética – o avanço que ela trouxe à neurociência! O que a genômica e a proteômica avançaram com a bioinformática! É extraordinário. São instrumentos que surgem e modificam a capacidade de domínio do conhecimento nessas áreas.

Há também a dinâmica desse processo. Daí os modelos explicativos sofrerem eles próprios uma constante transformação. Essa dinâmica tem a ver com aquela história de que não se prova a verdade. O máximo que se consegue é provar a falsidade de uma proposta, de uma hipótese. O trabalho se dá sempre por aproximação da verdade, o que relativiza tudo. Mas não é que a ciência tenha abdicado do propósito de dominar o conhecimento. Ela talvez tenha renunciado à ideia de que o conhecimento seja ele próprio uma representação objetiva de leis que estão no mundo. E se essas leis dizem respeito a estruturas intelectuais com as quais nós entendemos e compreendemos, então a psicanálise adquire um papel mais importante ainda nesse processo.

Pós-verdade é mais um conceito-coringa, próprio da contemporaneidade, como pós-modernidade, e outros pós que virão. Diz tudo e diz nada, porque é feito da confusão entre o que se transforma, por conhecer, e a transformação do conhecimento na banalidade de receitas de autoajuda epistemológica. Mas é, ele próprio, derivado, entre outras coisas, da mudança de paradigma científico que se deu ao longo do século XX, com ênfase na substituição de um modelo ontológico de verdade por um modelo probabilístico.

Talvez uma forma de relativizar o exagerado relativismo do conceito de pós-verdade seja, por liberdade no jogo de expressão, contrapô-lo ao seu par simétrico – pós-falsidade – e, desse modo, estabelecer e explorar algum parâmetro intelectual que permita tentar tratá-los como categorias do pensamento com algum poder explicativo.

*Reaproveito, neste texto, algumas passagens da entrevista que concedi à Revista Brasileira de Psicanálise, vol.42, n.1, São Paulo, março de 2008, p. 15-27.