Por João Angelo Fantini
A recente eleição de Donald Trump para presidente acendeu o alerta no mundo todo sobre a possibilidade de podermos ter algum tipo autoritário, fascista ou qualquer tipo de maluco na presidência de uma grande nação dotada de armas nucleares. A descrença no fato de que a democracia deveria nos defender contra um tipo de governo que julgávamos relegado ao passado, tem gerado uma série de discussões, desde as mais bizarras e paranoicas, até outras rebuscadas e acadêmicas, questionando a validade das formas democráticas de voto. Cresceu também entre os brasileiros o medo (para alguns) e a esperança (para outros) de que políticos tidos pelos primeiros como “fanfarrões desbocados”, e como representantes dos “valores tradicionais” pelos segundos, venha a seguir a trilha de Trump e se tornem nosso presidente.
O que parece que parte das pessoas não se deu conta – mas, principalmente, a imprensa – é que a tática de Trump foi baseada no velho jargão “falem mal mas falem de mim”. O ganho de mídia da campanha do americano foi extraordinário dentro e fora dos EUA. Era impossível não ligar a televisão ou abrir a internet e não encontrar a figura alaranjada do candidato. Na imensa maioria das vezes, essa figura era relatada, ou tinha um subtítulo irônico ou mesmo de agressivo ataque: o resultado agora todos sabemos qual foi.
Parte do problema tem sido diretamente relacionada à expansão das redes sociais, sob o argumento de que, atualmente, estamos vivendo uma espécie de ciberdemocracia[1], em que as pessoas podem se comunicar diretamente e se organizar sem o controle centralizado do Estado. Não raro também, neste sentido, é usado como exemplo o “governo por tuítes”[2] de Trump.
Entre as diversas autocríticas que poderíamos fazer, queria me ater a uma: Por que quando um político considerado fanfarrão diz coisas como “Vamos eliminar os drogados” a imprensa, em vez de ironizar a frase, não age da mesma maneira quando aborda um político “sério”? Isto é, por que – em vez de tomar como brincadeira/loucura – não lhe pergunta detalhadamente como pretende realizar essa ação?
Lacan assinalou que no processo primeiro de identificação (estádio do espelho) uma das resultantes é a agressividade, isto é, Lacan coloca a agressividade como força intrínseca de todo ser humano, não apenas dos “maus”. O processo de identificação passa não somente pela mimetização daqueles que admiramos, mas também pela construção de diferenças em relação ao “outro estranho a mim” (sejam pais, vizinhos ou amigos). Algo que está em jogo aqui e que parece passar despercebido é a força política que o ódio tem como aglutinador de pessoas que estão à espera de alguém que organize seu ódio. Este ódio pode ser resultado, em parte, desse sentimento particular em relação ao “outro estranho”, que, quando somado em milhões de pessoas e capturado por um candidato, pode produzir um tipo de discurso intolerante.
De outro lado, o espetáculo nas redes sociais (especialmente, mas não só nelas) pode ser um teatro narcísico, onde cada um tenta defender – mais que suas ideias políticas – a sua própria crença[3]. No campo da política, isso pode significar uma forma de defesa de crença pessoal (por exemplo, um candidato em quem você acreditou como sendo honesto ou progressista ou defensor dos valores tradicionais) que, não raro, resulta em uma defesa que ultrapassa qualquer situação fática, podendo ser entendida mais como uma defesa da integridade do Eu, uma forma de defesa narcísica. Essa situação não atinge somente “ignorantes”, “não-analisados”, “fascistas”, “comunistas” e tantos outros significantes utilizados nos posts agressivos encontrados nas mídias sociais, mas qualquer um, lembrando a lição freudiana de que a informação e a educação não necessariamente afetam o modo como percebemos o mundo: nosso inconsciente afeta nossa percepção de mundo.
A teoria freudiana sobre o narcisismo[4] poderia ser uma ferramenta bastante útil para nos ajudar a entender, de uma perspectiva subjetiva, conceitos como pós-modernidade, cultura digital ou, bem recentemente, pós-verdade. Considerada a palavra do ano de 2016, segundo o Oxford Dictionaries (departamento da universidade inglesa de Oxford responsável pela elaboração de dicionários), “pós-verdade” (“post-truth”) é definida como um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. De que modelo de crença, no entanto, estamos falando aqui?
A pós-verdade se conecta ao narcisismo no lugar em que o desprestígio das posturas políticas e ideológicas coincide com a sobrevalorização das questões subjetivas, isto é, onde as questões cruciais da vida coletiva passam a ter importância semelhante (ou menor) que a vida amorosa de celebridades ou o lançamento do novo Iphone. Embora isso não se aplique a totalidade das pessoas, o peso dessa afirmação pode ser medido na diferença de impacto nas novas mídias, por exemplo, do que se comenta sobre a guerra na Síria e a vida de Kim Kardashian[5]. O narcisismo encontra sentido em escala histórica na medida em que reduz a carga emocional dirigida ao espaço público, enquanto aumenta as prioridades na esfera privada. Assim, a celebridade tomou o lugar da autoridade[6]. As celebridades ganham reverência como formadores de hábitos e opinião, enquanto ao restante da humanidade resta o anonimato. Nesta perspectiva, candidatos como Trump, em vez de serem tratados como autoritários, são tratados como celebridades, ou seja, ao mesmo tempo em que ninguém acredita seriamente no que ele diz (celebridades não precisam necessariamente ter valores morais socialmente construtivos), seu lugar de destaque social permanece desejado (como ideal do Eu[7]).
Pós-verdade ou o triunfo da religião?
Desde o início da modernidade houve uma separação entre religião e política, como espaços diversos que se refletiram em instituições, partidos e Estados, embora, se observado de perto, isso talvez nunca tenha se consolidado na prática[8]. O que gostaria de chamar atenção é para um outro fenômeno que já preocupa mesmo aqueles que nunca se debruçaram sobre o assunto: por que aparentemente as discussões políticas cada vez mais ganham estatuto de “verdade” religiosa? Isto é, por que a política (em vez de lugar da barganha social possível – moral/tabu) ganha status de detentora de “sentido” último da sociedade (religião/totem)?
Plataformas criadas na última década, como Facebook, Twitter e Whatsapp, replicam notícias e comentários – não necessariamente verdadeiros – que são compartilhados, em grande parte, por pessoas conhecidas e que inspiram alguma confiança, o que aumenta a aparência de legitimidade das histórias. De outro lado, o sistema de algoritmos utilizados pelo Facebook, por exemplo, cria “bolhas” que isolam os usuários, fazendo-os receber somente informações que corroboram seu ponto de vista. A imprensa, que deveria ser um contraponto a essa situação, e que tradicionalmente teria a responsabilidade profissional de checar os fatos, tem, progressivamente, perdido espaço para as redes sociais, ficando, às vezes, à margem na formação das narrativas que circulam e que constroem a opinião pública, e que, por sua vez, influenciam os eleitores.
Com frequência, o que tem resultado disso é um esgarçamento dos laços sociais quando, não raro, não apenas inimigos ou desconhecidos, mas mesmos velhos amigos ou companheiros, param de trocar ideias e se entrincheiram junto a outros que – aparentemente – compartilham seus pontos de vista, passando a fazer fila com aqueles que, às vezes, têm apenas uma opinião em comum, mas outras não necessariamente compartilhadas[9]. Por exemplo, se sou contra ataques terroristas (e só por usar este termo – terrorista – já me perfilo de um lado da questão), recebo mensagens ou replico esses conteúdos, começo a receber mensagens contra muçulmanos, xenófobos, nacionalistas etc.
A crítica dos anos noventa sobre os perigos de estar conectado por longos períodos à rede, ou os possíveis benefícios dessa conexão, vem gradativamente perdendo força. Grande parte das discussões sobre a rede, hoje, passam pelo ódio e abuso on-line; a cultura narcisista de selfies e a coleta de dados pessoais em escala industrial, tudo isso sob a égide de um consentimento resignado ou passivo. Sabemos que estamos viciados na rede, mas não conseguimos sair. A net se tornou um lugar de reconhecimento[10], condição compulsória para fazer laço social. Estamos todos nesse lugar, inclusive quem está produzindo este texto e os possíveis leitores.
Podemos pensar que os modelos de pensamento fascistas tiveram, em parte, influência de uma forma de narcisismo patológico, que em determinados momentos históricos puderam ganhar a dimensão de movimentos de massa, organizado por um suposto saber que proclama a superioridade de uma forma de pensamento em detrimento de outra. Com frequência, a ideia de pós-verdade é também associada às formas autoritárias, xenófobas de governo, e a questão da intolerância, a exemplo do que está acontecendo na Europa e no Reino Unido, justificando movimentos políticos, fomentando candidatos ou plebiscitos aparentemente inelegíveis. Esta situação tem, em contrapartida, incentivado movimentos a favor da tolerância ao outro (estrangeiro, muçulmano etc) – em que pesem as boas intenções, que podem não conseguir os resultados esperados.
A psicanálise poderia dar sua contribuição, pensando a questão da tolerância de uma forma inversa ao que comumente temos percebido, já que grande parte das questões políticas acabam resultando em problemas sociais diretamente ligados à questão. Quando perguntamos “quem sou eu?”, a resposta sempre passa por “quem sou eu em relação ao outro”. O que chamamos identidade, nossas relações objetivas com o mundo e o outro, estabelecem a diferença subjetiva entre eu e todos os outros. O que está em jogo na intolerância não é que “devemos tolerar” o outro, mas justamente o contrário: não devo “tolerar” o outro, porque, de fato, ele é diferente de mim e me provoca angústia (não só porque ele é “muçulmano”. Ele pode ser meu filho, inclusive). O que eu devo esperar do outro (e de mim mesmo) é que tolere sua própria diferença, isto é, aquela diferença subjetiva (Eu/outro) que provoca angústia e que se quer depositar na conta do próximo, seja individualmente ou no coletivo, escolhendo um líder que faça isso por mim.
João Angelo Fantini é professor do curso de psicologia da Universidade Federal de São Carlos.
Referências
Dunker, C. I. L. “Crença em psicanálise: elementos para uma concepção de ato”. Revista Stylus, v.8, p.55 – 68, 2004.
Fantini, J. A.; Filla, M. G. “A construção mutual de discursos intolerantes: ateus, agnósticos e religiosos”. Revista Memorandum, 30, p. 199-223, 2016.
Fantini, J. A. Raízes da intolerância. EdUfscar, 2014.
Freud, S. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
Freud, S. (1914). Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos. Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Lacan, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
Notas
[1]. Também chamada de democracia virtual ou e-democracia, significa a interface relativa à interação entre sistema político e cidadãos. São as formas como a internet parece representar uma ferramenta que permite que as pessoas interajam entre si e com os governos diretamente com a informação que lhes é apresentada, não obstante os limites geográficos.
[2]. Tuíte (tweet) é o nome utilizado para designar as publicações feitas na rede social do Twitter. A crítica é que Donald Trump tenta se comunicar diretamente com seus eleitores, sem usar a imprensa tradicional, tratando assuntos de Estado de forma leviana.
[3]. O que determina uma “crença cega” é a relação do sujeito com a verdade, uma forma de denegação, que implica fazer “em nome de”, de negar a posição do sujeito no próprio ato que o produz. (Dunker, 2004). A crença seria, então, ligada diretamente à sustentação narcísica do sujeito, encobrimento fantasmático da castração.
[4]. Sigmund Freud conceituou o narcisismo como uma etapa do desenvolvimento normal do lactante, em que ego e id são indiferenciados, dada a incapacidade do bebê para discriminar objetos exteriores a si mesmo, agindo como uma perversão típica dos estágios iniciais da psicodinâmica libidinal. Depois do narcisismo primário, Freud se dedicou ao problema do “represamento de libido no ego”, a partir da clínica de paranoicos e neuróticos, o que chamou de narcisismo secundário ou patológico.
[5]. Celebridade que resultou, em grande parte, da participação em reality shows e comentários em sites de fofocas, e que, em 2016, foi considerada uma das personalidades mais influentes nas mídias sociais.
[6]. Autoridades seriam as figuras que representavam, de alguma maneira, valores positivos de inserção social, mas o conceito, em si, é controverso. Na discussão sobre o declínio da autoridade prefiro a versão de Hannah Arendt do progressivo esvaziamento da experiência da fundação dos romanos, resumida na trindade tradição-religião-autoridade. Freud, em O mal-estar na civilização (1930) alertava para o perigo nas sociedades em que as figuras de autoridade (fundadas em seu valor histórico) perdessem sua importância. Ele chamava este fenômeno de “pobreza psicológica dos grupos”.
[7]. A ideia de figuras de autoridade está ligada ao conceito de Ideal do Eu como uma substituição simbólica do Eu Ideal (lugar imaginário das projeções parentais, da completude, da ausência de falta, lugar do que o outro espera da gente: objeto para o outro). Seria simbolizada no Ideal do Eu, instância secundária advinda do Complexo de Édipo que resulta na substituição simbólica do narcisismo primário, aquilo que nos diz como devemos ser, que ideal devemos ter, que pessoa devemos ser, para poder autorizar nosso desejo. Lugar que substitui a série parental das figuras imaginariamente perfeitas (em autoridade, bondade, poder) e que, reconhecida sua falta, são substituídos por figuras secundárias (professores, astros, líderes, governantes), que determinam nossas maneiras de amar. Na medida em que o Ideal do Eu se torna um lugar impossível de alcançar, nas crises pessoais ou nos movimentos de massa, pode haver um movimento narcísico no sentido de satisfazer o Ideal do Eu realizando uma junção com o Eu Ideal, produzindo movimentos de grupo, de massa ou mesmo paixão.
[8]. Partidos sempre utilizaram religiões como peça de apoio a suas plataformas políticas, por exemplo.
[9]. Levantamento realizado com o auxílio de um software de monitoramento em 2016 pelo Comunica que muda (agência nova/sb), e mostra que a intolerância política está em primeiro no ranking. Foram analisadas 393.284 menções nas redes sociais, comentários em blogs e sites. Deste total, 219.272 tinham cunho político, sendo que 97,4% delas abordavam aspectos negativos. Fonte: www.comunicaque muda.com.br.
[10]. Reconhecimento aqui é usado no sentido da obra de Hegel, na qual o filósofo caracteriza “reconhecimento” como uma forma de autorreconhecimento e de reconhecimento pelo outro.