Por Carlos Vogt
É possível manter os atuais padrões de produção e de consumo e ainda assim acreditar ser possível o desenvolvimento sustentável da economia, da sociedade e das relações do homem com a natureza? Tudo indica que não, ao menos se forem levados em conta os indicadores que vêm sendo publicados por instituições como a ONU ou o Fundo Mundial para a Natureza (em inglês, World Wildlife Fund WWF).
O Relatório Planeta Vivo 2010, do WWF, afirma que excedemos em 50% a capacidade da Terra para responder à demanda do consumo de alimentos e, portanto, bastante além da capacidade de reposição do planeta. Como, em outubro de 2011, a população na Terra passou dos 7 bilhões de habitantes, com previsão para mais de 8,5 bilhões até 2050, grosso modo, tem-se o desenho do cenário da catástrofe global que se anuncia desde o fim dos anos de 1960 e que deu origem à consciência, cada vez mais aguda, de que é preciso replanejar, com clareza, e praticar, com urgência, novas formas culturais de relacionamento produtivo do homem em sociedade e da sociedade com a natureza.
Realizada de 5 a 16 junho de 1972, a Conferência de Estocolmo acrescentaria, definitivamente, às questões prioritárias discutidas pela ONU – a paz, os direitos humanos e o desenvolvimento com igualdade – o tema da segurança ecológica. Desse modo, a Conferência de Estocolmo passou a ser o marco de referência para as discussões sobre o que, na sequência, viria a constituir uma das questões mais complexas e mais cruciais da história recente da humanidade, ou seja, a questão do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, vários encontros e documentos foram produzidos no interregno de vinte anos entre a Conferência de Estocolmo e a seguinte, realizada em 1992.
Na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD) ou Rio-92, realizada de 3 a 14 de junho de 1992, teve origem o documento Agenda 21, aprovado e assinado por 179 nações presentes no encontro. O documento tem como objetivo fomentar em escala planetária, a partir do século XXI, um novo modelo de desenvolvimento – desenvolvimento sustentável – que modifique os padrões de consumo e produção, de forma a reduzir as pressões ambientais e atender às necessidades básicas da humanidade, conciliando justiça social, eficiência econômica e equilíbrio ambiental.
Paralelamente à Rio-92, ocorreu, promovido por entidades da sociedade civil, o Fórum Global 92, do qual participaram cerca de 10 mil ONGS, e que, por sua vez, deu origem a outro importante documento, a Carta da Terra, para pautar, pelos olhos críticos e pelos interesses legítimos da cidadania, as ações globais dos governos e dos órgãos oficiais em prol do desenvolvimento sustentável.
Dando prosseguimento a essas discussões, vários eventos, acordos e compromissos de repercussão internacional vêm ocorrendo, reforçando criticamente a necessidade de medidas que avaliem a questão dos limites do crescimento e as consequências dos modelos concentradores de produção e riqueza vigentes, hoje, na economia globalizada.
O primeiro tratado global para redução de gases de efeito estufa, o Protocolo de Kyoto (1997), foi assinado nessa cidade do Japão por 189 países, os quais se comprometeram em reduzir a emissão de gases poluentes que, segundo especialistas, provocam o aquecimento global com efeitos catastróficos para a humanidade. Mas os Estados Unidos, responsáveis por um alto percentual das emissões de carbono, não assinaram o documento, levando consigo, para a mesma posição de intransigência econômica, países como o Canadá e a Austrália. Em compensação, o Japão, a Rússia e os quinze países que então formavam a União Europeia aderiram ao protocolo, dando a medida de quanto é política, além de ética, a luta para a mudança na cultura de gestão do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável nos diferentes países do mundo e de quanto os interesses econômicos interferem na gestão dessas políticas. Por decisão do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, o Brasil aderiu ao protocolo, buscando contribuir para a alteração do modelo de desenvolvimento econômico em vigência no mundo, altamente predatório ao meio ambiente e à paz social, tão decantada retoricamente e tão pouco praticada na efetividade da distribuição da riqueza e da justiça social. O protocolo entrou em vigor em fevereiro de 2005.
O Fundo Verde Climático foi aprovado na 16ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ou 16ª Conferência das Partes (COP-16), realizada em novembro de 2010, em Cancun (México), quando os países desenvolvidos se comprometeram a colocar 100 bilhões de dólares até 2020 num fundo para custear ações de corte de emissões e de adaptação às mudanças climáticas. Em dezembro de 2011, duzentos países reunidos na 17ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas ou 17ª Conferência das Partes (COP-17), em Durban (África do Sul), aprovaram um pacote que prorrogava o Protocolo de Kyoto, viabilizava o Fundo Verde Climático e criava um cenário de um acordo global com metas obrigatórias de redução de emissão de gases estufa para todos os países, inclusive os Estados Unidos e a China, que assumiram compromissos de corte das emissões de dióxido de carbono (CO2). Nas conferências dos próximos anos, deverão ser definidos detalhes e datas, além de ser esperada a adesão do Japão, do Canadá e da Rússia, que decidiram não participar da segunda fase do protocolo.
Nessa trajetória, também merece destaque o Fórum Social Mundial (FSM), um espaço organizado anualmente por entidades e movimentos de vários continentes que, tendo caráter não governamental e não partidário, discute alternativas de transformação social global, resumidas no slogan “Um outro mundo é possível”. Além de atividades espalhadas pelo mundo nas edições de 2008 e 2010, os eventos do FSM já foram centralizados no Brasil (2001, 2002, 2003, 2005, 2009, 2012), na Índia (2004), no Mali (2006), no Paquistão (2006), na Venezuela (2006), no Quênia (2007) e no Senegal (2011).
Dez anos após a Rio-92, em 2002, as nações do globo realizaram a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (CMDS) ou Rio+10, de 26 de agosto a 4 setembro de 2002, em Johanesburgo (África do Sul). Em 2012, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNDUS) ou Rio+20, que aconteceu no Brasil, de 13 a 22 de junho, procurou manter, atualizar e incentivar as propostas de ações para um mundo mais decente e seguro, com a promoção de mais empregos, maior prosperidade, menos pobreza e menor comprometimento do meio ambiente nos processos de produção e consumo numa economia que possa, nesse sentido, ser cada vez mais verde.
O Brasil parece ter se preparado, tanto pelas ações governamentais, explicitadas nas posições adotadas nesses eventos, como pelas ações da sociedade civil, para desempenhar um papel importante entre as lideranças da consciência ecológica mundial, que deverão, pelos documentos, pelas declarações, pelas análises críticas, pelo exemplo, enfim, constituir-se em exemplaridades éticas das políticas de meio ambiente e de desenvolvimento sustentável a serem efetivamente adotadas para garantir condições de qualidade de vida presentes, projetando-as, para a preservação da vida com qualidade das futuras gerações.
O conjunto de ações e de políticas de proteção ambiental que integram a Agenda 21 Brasileira resultaram de um amplo processo de diálogo e de discussão do qual participaram mais de 40 mil pessoas em todos os estados do país que elaboraram cerca de 6 mil propostas. Ela apresenta quatro seções, que estão distribuídas por quarenta capítulos, 115 programas e aproximadamente 2.500 ações sobre as diferentes áreas incluídas no processo, desde saúde, educação e ambiente até saneamento, habitação e assistência social. São estas as seções:
– Dimensões Sociais e Econômicas, que trata das relações entre meio ambiente e pobreza, saúde, comércio, dívida externa, consumo e população;
– Conservação e Gerenciamento dos Recursos para o Desenvolvimento, que estabelece maneiras de gerenciar os recursos naturais, visando a garantir o desenvolvimento sustentável;
– Fortalecimento dos Principais Grupos Sociais, no qual se apresentam formas de apoio a grupos sociais organizados e minoritários que trabalham, colaboram ou adotam os princípios e as práticas da sustentabilidade;
– Meios de Implementação, em que são tratados os financiamentos e os papéis das instituições governamentais e das entidades não governamentais no desenvolvimento sustentável.
Dentro desse processo de profundas mudanças em nossas atitudes culturais, é importante entender que, muitas vezes, por diferentes caminhos de peregrinação e aventuras, o conhecimento científico e experimental acaba por encontrar-se com a sabedoria da tradição de antigas filosofias a dizer, pela teoria e pela experimentação do método, o que já fora dito pela intuição especulativa e pela expressão sensível de conceitos consubstanciados em metáforas e imagens de pura poesia. Nesse sentido, leiamos o que escreve Aldo da Cunha Rebouças, no livro Águas doces no Brasil, também organizado e coordenado por Benedito Pinto Ferreira Braga Junior e José Galizia Tundisi:
A ideia da Terra como um sistema vem dos primórdios das civilizações. Porém, a sua visão só se tornou possível a partir das primeiras viagens espaciais, na década de 1960. Atualmente, ninguém põe em dúvida a ideia chave da Teoria de Gaia …, que mostra um estreito entrosamento entre as partes vivas do planeta – plantas, microrganismos e animais – e as partes não vivas – rochas, oceanos e a atmosfera.
O ciclo todo é caracterizado por um fluxo permanente de energia e de matéria, ligando o ciclo das águas, das rochas e da vida. Essa visão sistêmica reúne geologia, hidrologia, biologia, meteorologia, física, química e outras disciplinas cujos profissionais não estão acostumados a se comunicar uns com os outros.
Torna-se evidente que, se a água é elemento essencial à vida, esta é, por sua vez, um dos principais fatores que engendram as condições ambientais favoráveis à existência da água em tão grande quantidade e abundância na Terra[1].
Comparemos, agora, o trecho acima com uma passagem do romance O fio da navalha, de William Somerset Maugham, em que o autor-narrador dialoga com a personagem Lawrence Darrel, que lhe conta, em um café de Paris (França), quase no fim da obra, suas andanças por países e experiências, em busca de respostas às suas indagações existenciais e metafísicas. O trecho em questão contém o relato do jovem Larry de seu convívio com um também jovem amigo hindu em constante jornada em busca de seu objetivo.
– E isso era…?
– Libertar-se do cativeiro da reencarnação. De acordo com os vendanistas, a identidade pessoal, que eles chamam de atman e nós de alma, é distinta do corpo e seus sentidos, distinta do cérebro e sua inteligência; não faz parte do Absoluto, pois o Absoluto, sendo infinito, não pode ter partes, é o próprio Absoluto. É incriada; sempre existiu e, quando finalmente despir os sete véus da ignorância, voltará à imensidade de onde veio. É como uma gota d’água que subiu do mar e num aguaceiro caiu numa poça, resvalando depois para um regato, e dali para um rio, passando por desfiladeiros e vastas planícies, insinuando-se aqui e ali, malgrado o obstáculo de rochas e árvores caídas, até chegar aos ilimitados mares de onde proveio[2].
A visão sistêmica de nosso planeta, de que nos fala com competência científica Rebouças, está, também, presente, a seu modo, no trecho do romance que reproduz, por metáfora, a filosofia vedanta. As diferenças, é claro, entre uma coisa e outra, são muitas e até mesmo intransponíveis, do ponto de vista teórico e metodológico. Contudo, permanece inegável o fato de que em ambas as atitudes culturais há um traço comum que nasce da consciência de que não basta decompor analiticamente o todo em suas partes para chegar à plena compreensão de seu funcionamento. É preciso, ao contrário, entendê-lo na sistematicidade das relações entre natureza e cultura para que as transformações de uma pela outra não engendrem o monstro da soberba, tampouco o querubim da apatia.
- Este texto constitui a parte IV do capítulo “Planeta Água” (p.107-127), de Carlos Vogt, A Utilidade do Conhecimento. Editora Perspectiva, São Paulo, 2015, p.117-123.
Notas
[1] Rebouças, A. da C.; Braga Junior, B. P. F.; Tundisi, J. G. (org./coord.). Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. São Paulo: IEA-USP/Academia Brasileira de Ciências (ABC)/ Escrituras, 1999, p. 4-5.
[2] Maugham, W.S. O fio da navalha. São Paulo: Globo/Folha, 2003, p. 271.