Por Daniel Pompeu e Laura Segovia Tercic
Caixões lacrados e ausência de velório podem agravar dor da perda e exigem atenção à saúde mental das famílias
O crescimento acelerado do número de falecidos no Brasil tem transformado o modus operandi de velórios e sepultamentos. Entre as mudanças impostas pelas prefeituras estão o distanciamento social, caixões fechados, número restrito de pessoas presentes em cada cerimônia e o tempo limitado para a despedida.
As medidas adotadas – necessárias para conter a contaminação a partir de mortos por Covid-19 ou de pacientes com suspeita de infecção – também escondem outra dimensão: os possíveis impactos psicológicos e culturais pela brusca transformação nos rituais associados à morte. Especialistas apontam a necessidade de afloramento de alternativas com relação ao processo de luto, incluindo o uso de tecnologia, por exemplo, como uma forma de conforto e estabelecimento de uma rede de apoio.
A antropóloga e historiadora Andréia Vicente, da Universidade Federal Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), recentemente publicou sobre o assunto no Boletim das Ciências Sociais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Eladiz que a categorização do corpo como objeto contaminado causa sérias complicações simbólicas e emocionais, pois afeta diretamente o que se chama na área acadêmica de rituais de morte. “Os rituais de morte vão desde o momento que a pessoa está internada em estágio terminal em um hospital até o momento em que o luto se finaliza. […] É, portanto, um intervalo que é marcado pelas etapas que se relacionam tanto aos protocolos de estado quanto à subjetividade das pessoas, suas individualidades e religiosidades”, explica.
Andréia entende que, se por um lado, a presença e controle do estado nos rituais é grande, por outro o próprio protocolo previa um momento para a família expressar seus sentimentos e dominar a execução do ritual, durante o velório. “Em termos de simbologia do processo de luto à distância do corpo do morto para o familiar é uma realidade muito complexa e muito difícil”, ressalta. Para a antropóloga, decretar a morte de um ente não tem só a ver com a falência biológica do corpo, mas também com a transformação dessa pessoa na figura de um ancestral. Ela explica que, especialmente no pensamento ocidental, as emoções ligadas a esse complexo processo são de sofrimento e de perda.
Em algumas cidades em que o sistema de saúde e funerário estão sendo mais pressionados, as mudanças em ritos já afetam todas as famílias que enfrentam a morte de um ente próximo. Em Manaus, a prefeitura anunciou que sepultaria os corpos em valas comuns, empilhando três caixões por fileira devido à falta de espaço para a quantidade incomum de mortos em um curto espaço de tempo. Os familiares das vítimas desaprovaram a medida, que foi revogada um dia após seu anúncio. A capital amazonense decretou estado de calamidade pública no fim de abril devido a sobrecarga do sistema de saúde e funerário.
Já em São Paulo, os enterros aumentaram 18% desde o início da pandemia se comparados ao mesmo período no ano passado. Devido ao agravamento da situação, a prefeitura da capital elaborou um Plano de Contingência do Serviço Funerário, que estabelece regras para todos os sepultamentos realizados pelo serviço funerário municipal. Entre as medidas estão a suspensão de velórios de vítimas confirmadas da Covid-19, realização de todos os sepultamentos após as 18h e velórios em estruturas nos próprios cemitérios, próximas ao local de enterro. Todas as cerimônias não podem durar mais do que uma hora e estão limitadas ao número máximo de 10 pessoas.
As orientações da prefeitura de São Paulo estão de acordo com recomendações divulgadas pelo Ministério da Saúde no fim de março para cuidados no manejo de corpos em meio a pandemia. A OMS também divulgou, em 18 de março, um guia para lidar com corpos no contexto do novo coronavírus. Mas no caso das recomendações da organização, há um foco no balanceamento dos direitos dos familiares com as medidas protetivas contra a infecção. “Se os familiares do paciente desejarem ver o corpo isso é permitido, contanto que sigam todas as precauções padrão em todos os momentos e higienizem corretamente as mãos”, declara a organização no guia.
Impactos psicossociais
De acordo com Elaine Gomes dos Reis Alves, psicóloga e membro do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) da Universidade de São Paulo (USP), em tempos de pandemia é necessário redobrar a atenção para garantir os processos de luto e garantir assistência psicológica a quem precise. Elaine, que também faz parte do Núcleo sobre Psicologia em Emergências e Desastres do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP), destaca que a falta de despedida é anterior ao velório breve e de caixão lacrado. “No momento que a pessoa é internada [com Covid-19], você não tem mais contato com essa pessoa. Durante todo esse processo de evolução da doença, você deixa de ter contato”, enfatiza.
Ao deixar de olhar o corpo do ente querido e de se aproximar dele, como tem sido imposto nos funerais e hospitais no contexto da Covid-19, o ser humano não opera o mecanismo de transformação e convencimento. Segundo Andréia Vicente, “a visualização faz parte do processo cultural de assimilação”. Olhar o corpo no momento de velório significa uma forma de atestar que a pessoa realmente está morta e processar a imagem do que seria a transformação do vivo em morto. “É saudável que a pessoa viva o luto. Porque é só vivendo intensamente essa dor que ela vai encontrar ferramentas para sair dela”, explica Elaine.
Na visão de antropólogos, o ritual do luto se faz necessário pois traz alguma ordem em um momento que é marcado pela incerteza. “Não há nada mais inevitável do que a chegada da morte”, afirma Andréia, e complementa: “A morte é poderosa […], nós (seres humanos) desenvolvemos os ritos para ela justamente porque imaginamos que, ao executar uma série de tarefas e comportamentos, conseguimos encontrar algum conforto no que pode ser ordenável”.
Para Elaine, é essencial que as pessoas próximas validem o sofrimento da pessoa enlutada e não forcem uma superação precoce. “Em tempos de Covid-19, a falta de ritual não tira só a possibilidade de despedida, mas também a rede de apoio”, destaca a psicóloga. O distanciamento social coloca ainda mais em risco a proximidade de familiares e amigos, recurso de grande importância para o andamento do processo saudável de luto.
Alternativas e consequências futuras
Outras pandemias também transformaram a relação da sociedade com a morte, lembra Andréia, embora não seja possível prever os impactos destas mudanças. “O impacto na cultura do luto no mundo será forte. Teremos uma grande quantidade de pessoas com problemas psicológicos por luto frustrado, por não ter conseguido se despedir da forma como desejavam e tinham a expectativa no formato tradicional”, conclui.
Na perspectiva da psicologia, Elaine explica que pode ser benéfico que a ritualização iniciada no velório continue em outros contextos, respeitando o tempo de luto de cada indivíduo. É o caso das pequenas cerimônias – religiosas ou não – feitas de casa. “É preciso orientar que esse mínimo de velório seja aproveitado por essa pessoa, que essa dor e esses sentimentos sejam expressados”, explica.
Andréia também entende como natural e reconfortante que as pessoas tentem novas formas de substituir essas fases com outros tipos de cerimônia. É o que tem acontecido quando a equipe técnica em hospitais, cartórios e cemitérios que cumprem certos comportamentos a pedido dos familiares ou por ímpeto próprio. A exemplo disso estão o uso da tecnologia para trazer a voz e a imagem do ente amado, o desvio de percurso de carros funerários para passar em frente às casas e até adaptações em procedimentos de religiões milenares.
Os rituais portanto, em um momento como este, tendem a se diversificar, não sumir. “A gente perdeu de certa forma aquele chão comum que é o rito tradicional e protocolado que vivenciávamos cotidianamente”, explica Andréia Vicente. De acordo com ela, os rituais alternativos já existiam, mas a partir de agora haverá maior experimentação nesse sentido. “A riqueza das culturas é essa: No momento em que a gente precisa, a gente cria novas formas”, encerra a antropóloga.
Lab-19 é uma produção dos alunos e alunas da Oficina de Jornalismo Científico II do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Nudecri/IEL/IA, da Unicamp, para cobrir a pandemia da Covid-19. Os textos desta série extraordinária são editados por Germana Barata e Sabine Righetti, professoras do curso.