Por Mateus Bravin Lopes e Samuel Ribeiro dos Santos Neto
Imagem: Vala coletiva em Manaus. Fernando Crispim, Amazonia Real.
Diminuição no tempo de despedida, distanciamento e a iminência da morte são alguns dos novos conflitos para lidar durante a pandemia.
A pandemia do novo coronavírus impõe uma série de mudanças de hábitos e determina diversas restrições.
Uma revisão publicada em março na The Lancet mostrou que as condições impostas pela quarentena durante epidemias trazem impacto substancial à saúde mental. No contexto do coronavírus, pesquisadores brasileiros iniciarão em maio uma nova fase do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa Brasil), buscando identificar mudanças no estilo de vida por conta da quarentena e como elas têm afetado psicologicamente a população. Um dos elementos a serem avaliados no Elsa Brasil é justamente a mudança na vivência do luto.
As relações entre as pessoas têm se modificado, assim como as despedidas. Em Luto e melancolia Sigmund Freud definiu o luto como “a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc”.
Com a pandemia, as cerimônias funerais sofreram alterações radicais. O protocolo mudou independentemente do tipo de morte, cidades suspenderam o velório, a duração do enterro foi encurtada e há limite no número de participantes. Essas restrições provocam consequências psicológicas, simbólicas e espirituais na despedida do ente querido. No caso de óbito por covid-19, a situação é mais grave. Os caixões são lacrados, há a exigência do distanciamento entre os presentes e muitas vezes o sepultamento acontece em covas coletivas. “Em que toda a individualidade fica perdida”, lamenta Maria Julia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da USP.
A professora comenta que “o luto é uma experiência universal já que vivemos várias situações de perda desde a infância até o final da vida”, mas que “a experiência de luto é singular, a depender das experiências vividas, características pessoais, formas de enfrentamento, ter ou não rede de apoio”.
Como os hospitais tornaram-se potenciais pontos de contaminação, há a impossibilidade de muitos amigos e parentes de acompanhar o doente no final da vida, e isso interfere diretamente no tempo de despedida pessoal. O padre Renato Oliveira, doutor em teologia e professor da PUC-Minas, afirma que os rituais em torno da morte estão sendo atropelados. “Isso, para quem fica, causa um grande impacto no campo psicológico, no campo simbólico. Há a sensação de que ficou uma página aberta”.
As tradições de luto se mostram diferentes a depender da religião ou crença. A monja zen-budista Heishin Sensei, discípula de monja Coen, comenta que todas as liturgias do zen budismo podem ser feitas à distância, recorrendo à filmagem e transmissão online. “Tenho feito esse procedimento aqui no templo. Oro com o celular ligado e os familiares acompanham de suas casas”. Funerárias têm adotado medidas semelhantes, algumas já incluíam serviço de velório online e tiveram aumento na procura, outras passaram a adotá-lo como forma de lidar com a pandemia e evitar aglomeração.
A morte mais próxima
Segundo pesquisa realizada em 2018 e encomendada pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep), 68% dos brasileiros têm dificuldade para lidar com a morte e a associam predominantemente a sentimentos difíceis, como tristeza, dor, sofrimento e medo, raramente sendo associada à aprendizagem ou aceitação.
Segundo o padre Renato Oliveira, a morte é um tema tabu e não costuma fazer parte das conversas cotidianas. Mas em tempos de pandemia “a morte se torna uma realidade onipresente e sensível, com a qual eu me defronto, porque no tempo da pandemia eu sei que a minha existência está em risco, que eu posso vir a óbito”, explica.
Dentro dos serviços de saúde há outros dilemas. Kovács ressalta que, mesmo com proteção adequada, muitos profissionais de saúde que estão na linha de frente acabam se contaminando. Cria-se um conflito para esses profissionais. “Cuidar e estar no perigo do contágio, ou se afastar para se proteger e sentir culpa por não estar cuidando, sua principal tarefa na profissão escolhida?”.
Para os pacientes terminais, que já lidavam com as incertezas antes da chegada do coronavírus, a situação também se tornou mais complexa. Úrsula Guirro, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que faz pesquisa na área de cuidados paliativos, comenta que os pacientes que já eram diagnosticados como terminais estão sujeitos a dois impactos na pandemia. “Os pacientes em final de vida correm o risco de ter o tratamento interrompido ou não priorizado, o que poderá levar ao sofrimento desnecessário. Por exemplo, um paciente portador de uma doença terminal poderá não conseguir a atenção que recebia anteriormente para a dor, falta de ar, náusea ou vômito”, explica a professora. Essa situação faz parte do cenário imposto pela sobrecarga dos sistemas de saúde, que já tem levado os profissionais a fazerem escolhas difíceis.
Dentro e fora dos hospitais, direta ou indiretamente, a proximidade da morte trouxe mudanças no cotidiano e no luto. A pandemia trouxe à tona um tema que costuma ser ocultado, e para o padre Oliveira isso abre a oportunidade de refletir sobre a morte para além do aspecto trágico. “Na verdade, a certeza da morte me faz viver a profundidade do presente. Como eu sei que posso morrer a qualquer momento, isso me faz viver a intensidade do presente nos meus laços, nos meus relacionamentos”.
Em tempos de mudanças em nossas vidas, a evidência da finitude pode nos ajudar a valorizar o que é mais importante e, quem sabe, processar melhor o luto das perdas impostas pela pandemia.
Mateus Bravin Lopes é graduado em audiovisual e cursa graduação em letras: português e alemão pela USP. É aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.
Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência (Fapesp).