Imagem: jsnewtonian/Pixabay
Por Samuel Ribeiro dos Santos Neto
Isolamento social aumentou uso de álcool e outras drogas, e pode resultar em problemas futuros, apontam pesquisas.
Beber ou usar outras drogas é diferente quando se está isolado em casa por conta de uma pandemia? Parece que sim. A mudança de contexto pode trazer complicações à saúde pública, agora e no futuro. É o que sugerem dados de estudos recentes que estão tentando entender o que mudou no consumo de substâncias psicoativas com a chegada da covid-19.
O cenário e os riscos são diferentes para cada substância. Para além do álcool e do cigarro, o café e os chás também são psicoativos lícitos e fazem parte do cotidiano de milhões de pessoas. Fármacos variados, usados com ou sem receita médica, produzem diferentes efeitos. O mesmo vale para as drogas ilícitas, que vão da maconha às “drogas de festa”, como MDMA, cocaína e LSD.
Uma das principais preocupações é que o abuso de algumas substâncias possa resultar em quadros futuros de dependência de química. Entra na conta também a interação do consumo com problemas de saúde mental novos ou pré-existentes, como ansiedade e depressão. Além disso, com indicativos de aumento da violência doméstica durante o isolamento em vários países, principalmente o álcool pode ser um agravante para episódios de agressão.
Dentre as substâncias, as bebidas alcoólicas são campeãs entre os brasileiros e se destacam quando o assunto é a preocupação dos especialistas. Na pesquisa Convid, realizada pela Fiocruz, UFMG e Unicamp e que analisou dados de mais de 44 mil brasileiros coletados entre abril e maio, 18% das pessoas relataram aumento no consumo de álcool na pandemia e, mais grave, isso foi associado à frequência de se sentir triste ou deprimido.
Resultados parecidos foram obtidos pelo Covidpsiq, estudo feito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em conjunto com outras instituições e que mostrou uma associação com sintomas de estresse e depressão. Na amostra de 3633 participantes, mais de 30% dos que estão isolados relataram um aumento no consumo de álcool e outras substâncias.
Happy hour mais cedo
Para quem está em home office, o tradicional bar com os amigos no final da tarde ganhou outro formato. Em casa há menos controle social e mais tempo disponível para beber. “Você pode abrir uma cerveja às 8h da manhã e várias ao longo do dia sem ninguém questionar. No escritório isso seria inaceitável e motivaria demissão”, explica a professora Zila Sanchez, da Escola Paulista de Medicina da Unifesp.
Dados preliminares da Global Drug Survey indicaram que houve um aumento de 26% no binge alcoólico (ingestão de 5 ou mais doses em uma única ocasião) entre os respondentes do Brasil. Mais de 40% relataram aumento no número de dias em que bebem, e quase 35% estão começando a beber mais cedo no dia. A amostra não representa a população brasileira, mas dá pistas de um aumento de práticas de risco durante o isolamento.
“O álcool, por uma questão farmacológica, atrai mais álcool. A partir de uma quantidade consumida a pessoa perde o controle sobre as próximas ingestas naquela mesma ocasião, então é preciso ter um controle em relação à quantidade disponível”, ressalta Sanchez, que é coautora de um artigo publicado em maio no periódico Drug and alcohol review no qual são traçados possíveis desdobramentos da pandemia de covid-19 no consumo de álcool.
O artigo cita estudos que associam períodos de crise a aumentos nesse consumo a longo prazo. No caso da covid-19, são dois os cenários possíveis a curto prazo: um de diminuição do consumo por razões econômicas, e outro de aumento por fatores como estresse, ansiedade e mais tempo livre. As políticas públicas adotadas por cada país são uma parte importante da equação para definir o que acontece, tanto agora como no futuro.
Segundo Sanchez, políticas de restrição completa podem produzir bons resultados a princípio, mas não são sustentáveis: um dos efeitos colaterais é o estabelecimento de mercados ilegais de bebidas.
“A melhor política é a intermediária, em que você controla a quantidade de álcool acessível a cada um na população”, comenta a pesquisadora, citando como exemplo medidas do governo australiano que limitaram as unidades vendidas por pessoa e as promoções de alcoólicos. “No Brasil aconteceu exatamente o contrário”, afirma.
Além da falta de controle, ela conta que houve um aumento do comércio online e do uso dos aplicativos de vendas de bebidas. No início da pandemia, com o fechamento dos bares, a mudança de hábito chegou a promover um boom no volume de vendas em empresas de e-commerce e delivery. “Há baixíssimo controle de quem compra e como compra, além das promoções absurdas. A compra de álcool nunca foi tão fácil e barata”, explica.
Junto com as tendências de longo prazo associadas a eventos pandêmicos, o aumento do acesso, do consumo e do abuso por parcelas da população apontam para desafios em um futuro próximo. “Isso vai explodir lá na frente como uma “dívida” que teremos que pagar como sociedade, como sistema de saúde. Baseado nas experiências passadas de outros países, é o que provavelmente vai acontecer”, alerta Sanchez.
Reduzir os riscos e danos
Seja na reunião virtual com os amigos ou no consumo solitário para aplacar a ansiedade, é importante entender os riscos de beber em casa. “Não existe dose segura de álcool. Tomando a decisão de consumir, a pessoa precisa saber que tem formas mais arriscadas e menos arriscadas”, explica Zila Sanchez. Para minimizar os impactos negativos, o consumo diário máximo recomendado é de uma dose e preferencialmente durante a refeição.
O momento é de atenção redobrada para usuários de quaisquer psicoativos. Segundo a redutora de danos Ana Cristhina Sampaio Maluf, doutoranda em farmacologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, há sinais que podem indicar um problema de abuso: dificuldade de limitar as quantidades, o início e o fim do uso; aumento da tolerância (necessidade de maior quantidade para sentir os efeitos); e surgimento de sintomas de abstinência, que variam entre as drogas e vão de tremores e dores de cabeça até mudanças de humor.
Maluf colabora em um projeto no Centro de Convivência É de Lei, entidade sem fins lucrativos dedicada à promoção da redução de riscos e danos. O site do centro disponibiliza materiais informativos e recentemente publicou um texto com orientações específicas para usuários de psicoativos no contexto da covid-19.
Cada substância é diferente, mas há dicas gerais que se aplicam a todas para tornar o uso mais seguro: não compartilhar utensílios (cachimbos, seringas etc) e mantê-los limpos; estar bem alimentado, hidratado e com o sono em dia; fracionar as doses, programar os momentos de uso e evitar misturar substâncias. Também é importante monitorar o próprio estado de humor e criar um ambiente seguro para o consumo, preferencialmente com a presença de alguém que possa ajudar em caso de necessidade.
Segundo Maluf, um dos impactos do isolamento foi tornar o uso de psicoativos mais individual do que social. “O uso solitário é considerado de maior risco, pois aumentam as chances de acidentes e agravos à saúde”, explica.
A pesquisadora conduziu o levantamento “Uso de álcool e outras drogas na quarentena”, que é parte de seu doutorado, e foi realizado pelo Grupo de Pesquisas em Toxicologia da Unicamp em parceria com o É de Lei, com apoio do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI) da Unicamp.
Nos dados preliminares do estudo, publicados em uma reportagem, 52% dos participantes afirmam que o uso de psicoativos tem ajudado a lidar com a quarentena (4% dizem que atrapalha e 44% consideram indiferente). O aumento no consumo de drogas, lícitas ou ilícitas, foi relatado por 38% dos respondentes.
Outros dados chamam atenção: 34% relataram como “muita” a necessidade de uso durante o isolamento (com 30% relatando como “nenhuma ou pouca” e 36% como “moderada”). Além disso, 43% relataram usar psicoativos nas atividades de trabalho e home office.
A amostra com mais de 4 mil pessoas não é representativa da população brasileira, mas traz indicadores importantes que podem ajudar na formulação de políticas para a redução de riscos e danos.
Ainda que haja aumentos expressivos, como no álcool, Maluf aponta que é importante analisar também os impactos da mudança nas formas e contextos do uso mesmo em substâncias marcadas pela redução no consumo, como a cocaína, o LSD e outras “drogas de festa”.
Padrões problemáticos de consumo, como os 16% que relataram compartilhamento de utensílios e os 12% que afirmaram terem refletido que a quarentena seria o momento para aumentar o uso, podem ser indicadores de problemas futuros. O mesmo vale para aqueles que desenvolveram ou agravaram transtornos como depressão e ansiedade, que podem perdurar no pós-pandemia.
Para quem diminuiu ou suspendeu o consumo, também é preciso atenção. “O período de abstinência pode levar a uma perda da tolerância (ou aumento da sensibilidade) e, caso a pessoa retome o uso da mesma forma que fazia antes, pode resultar em crises e intoxicações”, explica a pesquisadora.
“Com a evolução da pandemia e o surgimento de uma nova realidade social, existem muitas incertezas e várias questões que ainda precisam ser respondidas. É necessário continuar monitorando de perto os desdobramentos no uso de substâncias especialmente no que diz respeito ao estabelecimento de padrões de uso particularmente prejudiciais ou arriscados”, afirma.
Samuel Ribeiro dos Santos Neto é mestre em educação física pela Unicamp. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp e bolsista do programa Mídia Ciência/Fapesp.