Os muitos paradoxos da viagem no tempo. Relatividade e ciência na cultura pop

As propostas de Einstein para a compreensão de tempo, espaço, velocidade e gravidade são tão empolgantes que acabaram por ser representadas nas mais diversas formas na ficção. Apesar de suas limitações como fonte de informação científica real, a “cultura pop” tem grande potencial para instigar o interesse pelos conceitos e postulados da ciência.

Bruno Moraes

“Você está realmente me dizendo que o seu plano para salvar o universo é baseado em De volta pro futuro”?

Com essas palavras, Tony Stark, o Homem de Ferro do Universo Marvel, coloca no ar uma questão sobre a representação do tempo em obras de ficção do mundo pós-Einstein: o fato de que, muitas vezes, viagens para o passado são apresentadas com pouca consideração pelo que a ciência do mundo real tem a dizer sobre a natureza do tempo. Para encurtar a história – e evitar os spoilers – podemos dizer que o filme mais recente da série Os vingadores tenta romper com tentativas anteriores de representar a viagem no tempo e os desdobramentos ocorridos quando se altera o passado. Os roteiristas lidaram com isso de duas maneiras:

A primeira foi citar “a concorrência” nominalmente, e explicar brevemente que O exterminador do futuro, Em algum lugar do passado e Bill e Ted – uma aventura fantástica erraram feio ao apresentar os conceitos ligados à viagem no tempo. A segunda foi citar conceitos de física, matemática e geometria, junto com alguns nomes de pesquisadores dessas áreas, e … cair no mesmo problema para o qual fizeram questão de chamar a atenção.

De toda forma, o caso de Tony Stark e suas ideias sobre flutuação quântica[1], escalas de Planck e a possibilidade de voltar no tempo sem causar um paradoxo, servem como um lembrete de outro tipo de paradoxo, também difícil de superar: a ficção científica e a fantasia exigem ideias envolventes que engajem o público, enquanto as ideias envolventes da ciência – especialmente no que diz respeito à estrutura do tempo – nem sempre são intuitivas, ou encaixáveis, na lógica comercial das histórias. Na briga entre contar uma história com apelo comercial e representar a ciência de maneira precisa, faz sentido que a ciência fique para trás na lista de prioridades da indústria do entretenimento.

Duas histórias do tempo

“O cinema surge quando Einstein era adolescente, então eles basicamente cresceram juntos”, conta o professor da Unicamp Márcio Barreto. Formado em ciências e matemática e doutor em ciências sociais, ele pesquisa a relação entre o cinema e o ensino de física, além de coordenar o Cine Vagalume na Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp. “Assim como Einstein, o cinema mudou a nossa percepção da realidade. Até então, tínhamos imagens fixas. Até existia o conceito de imagens em movimento, com equipamentos como o praxinoscópio, mas não com a relevância que o cinema trouxe. Nesse caso, o cinema adiciona à imagem uma dimensão temporal, e essa inserção borra um pouco a fronteira entre o que é real e o que é a representação do real”, completa Barreto.

Este borrão nas fronteiras, segundo o professor, tem um paralelo com o que Einstein trouxe para a nossa percepção da realidade. Ao propor que o universo possui quatro, e não três dimensões, Einstein acrescentou, ele próprio, uma dimensão de tempo. A quarta dimensão era o próprio tempo, inseparável da altura, da largura e da profundidade, com as quais a ciência já está acostumada a lidar. “Nossa capacidade de perceber a realidade fica em dúvida. Falta à nossa percepção uma propriedade: a de captar o real em sua totalidade”, diz Barreto.

Tanto o Einstein quanto o cinema alteraram a nossa relação com o universo ao inserir uma dimensão de tempo onde não havia. E, tanto por suas ideias espetaculares quanto por sua personalidade de “popstar”, Einstein aparece nos filmes, nas séries e nos desenhos animados constantemente, seja diretamente representado ou por meio de seus conceitos. Mas, assim como o próprio Einstein aparece de maneiras surreais em alguns casos, não é incomum que a utilização de suas teorias na ficção também fuja bastante do realismo.

À esquerda, Einstein conversa com um ser quadridimensional em um episódio de Rick and Morty. À direita, Einstein como um vendedor de carros usados em um episódio de Esquadrão do tempo. Crédito: as animações são propriedade intelectual do canal Cartoon Network

O lado sombrio da ficção

Lucas Miranda está bem próximo da interface entre física, cinema e cultura pop e a divulgação científica. “Cursei o mestrado em divulgação científica e cultural ao mesmo tempo em que terminava a graduação em física”, diz ele. Desde essa época, Miranda já produziu diversos artigos de divulgação científica, principalmente no blog Ciência Nerd e para a revista Ciência Hoje, partindo de exemplos dos quadrinhos, do cinema e da animação para tratar de conceitos científicos. “Ainda na graduação, antes de mudar da química para a física, eu já pesquisava alguma coisa sobre o cinema e a ciência”, diz Miranda.

Para Lucas, a ciência acaba sendo apropriada pela cultura pop de maneiras um tanto controversas. “À medida que a ciência vai divulgando suas descobertas, elas são apropriadas pela cultura, pelos quadrinhos etc. Vejo muito a ciência aparecendo com um aspecto explicativo, mas um tanto oportunista. Quando você não quer explicar um superpoder usando magia ou mitologia, por exemplo, você contorna isso com algum conceito científico. Com o passar do tempo, as explicações científicas para super-heróis, por exemplo, vão se tornando cada vez mais sofisticadas, conforme a ciência evolui. E o interessante é que, nessas extrapolações científicas, acabam prevendo descobertas da ciência”.

Para o caso da relatividade de Einstein, um exemplo desse aparecimento “precoce” em uma obra de ficção é o buraco negro no filme 2001: uma odisseia no espaço, onde ele aparece como um elemento importante para o final do filme. Buracos negros, embora já tivessem sido previstos e indiretamente detectados, só foram avistados pela primeira vez no início deste ano. Mas, como Os vingadorese a própria cena da entrada no buraco negro em 2001 – bem nos lembram, nem tudo são flores nessa relação entre o cinema e a relatividade.

“Dentro da relatividade, especificamente, é curioso pensar que não é muito comum a cultura pop se apropriar da parte mais concreta, consensual, e aceita da teoria, que seriam a relatividade do tempo ou o limite da velocidade da luz”, diz Lucas Miranda. “Tirando um ou outro exemplo como o filme Interestelar, que faz isso muito bem, tratando de dilatação temporal e buracos negros, boa parte das ficções que utilizam a relatividade vão justamente para o campo mais especulativo da teoria. Um bom exemplo são os buracos de minhoca. Eles são consequências da relatividade e você consegue prever a existência desses ‘túneis’ que levariam de um ponto a outro do universo por conta de uma espécie de dobra no espaço-tempo. Mas são altamente improváveis, e não temos nenhuma evidência experimental ou empírica disso. Mas como eles têm um potencial narrativo muito maior, e de compreensão muito mais fácil do que coisas como a dilatação do tempo, os buracos de minhoca são mais usados na ficção, apesar de sua improbabilidade”.

A dilatação temporal é um fenômeno que decorre da proposição de Einstein de que a passagem do tempo sofre influência da gravidade e da velocidade dos corpos. Em Interestelar, por exemplo, o tempo passa mais lentamente em um planeta sob influência gravitacional de um buraco negro, em relação ao membro da tripulação que ficou na nave. Quando os personagens retornam do planeta após passarem mais horas do que o previsto na superfície do planeta, o doutor Romily envelheceu 23 anos.

Uma distorção similar na passagem do tempo ocorre no episódio O demônio da velocidade, de As meninas superpoderosas. Após exagerarem na competitividade ao apostar corrida, as três meninas atingem uma velocidade tão alta que se aproximam da velocidade da luz. Em coerência com a relatividade, enquanto para as três personagens se passaram apenas alguns minutos, cinquenta anos se passam na cidade de Townsville, que está em ruínas devido à ausência das três protetoras. Apesar disso, porém, o episódio cai na representação absurda da física quando as meninas conseguem viajar de volta para o passado utilizando-se da mesma velocidade que as levou até o futuro.

“Isso é um exemplo da cultura pop não subestimando o público só porque o conteúdo é voltado para o público infanto-juvenil”, diz Lucas Miranda. “É lógico que, especialmente falando de divulgação científica para crianças, você não conseguiria jamais transmitir um nível de conhecimento maior, de forma mais profunda e trazendo conceitos mais complexos. Mas mesmo em obras mais direcionadas a adultos, a ciência, em geral, é tratada muito mais como um adereço do que como um elemento importante da trama. Existem poucos exemplos de tramas que têm algum conhecimento científico como parte da narrativa”, acrescenta.

À esquerda, a professora Keane 50 anos mais velha devido à dilatação temporal, após as meninas superpoderosas “viajarem para o futuro”. À direita, cena do filme Interestelar, na qual Amelia se espanta ao ver que o dr. Romily envelheceu 23 anos no que, para ela, foram apenas algumas horas. Interestelar é propriedade intelectual da Paramount e Warner Bros., enquanto As meninas superpoderosas são de propriedade do Cartoon Network

Ficção e curiosidade

“Um filme de ficção científica não precisa ser totalmente fiel à ciência”, diz o professor Márcio Barreto. E continua: “Por um lado, é muito legal ter um filme onde os conceitos não são apresentados de maneira errada, com furos em relação à ciência. Especialmente quando ele tenta explicar demais, mas baseado em conceitos meio sem sentido. Aí a gente até pode falar que se está prestando um desserviço. Por outro lado, se você pega um filme como A viagem à Lua, do Georges Méliès, não há rigor científico nenhum. O foguete cai no olho da Lua, as pessoas andam pela superfície lunar sem capacete e encontram um povo que vive por lá. Nada disso faz sentido. Porém, mexe com a imaginação de uma maneira instigante. Para ensinar com precisão, o melhor é sair da ficção e ir para o documentário”.

Mesmo filmes que retratam a vida de cientistas e o processo de suas descobertas acabam por mudar algumas coisas. O professor Barreto cita um filme sobre o próprio experimento de Sobral, tema deste dossiê da ComCiência, chamado Einstein e Eddington, que além de mudar a ordem cronológica de alguns fatos da vida de Einstein, cita apenas uma das duas expedições simultâneas que foram realizadas para tentar comprovar a relatividade geral. A Ilha de Príncipe aparece no filme, enquanto Sobral fica de fora. Ainda assim, segundo o professor, as obras que instigam o interesse sem desinformar já fazem algo muito importante pela percepção pública da ciência.

Lucas Miranda, que também dá aulas de ciências no ensino fundamental, conta algo semelhante: “Mesmo a ciência sendo usada como adereço, ela às vezes pode ser uma porta de entrada. Algumas crianças dizem, por exemplo, que aprenderam o que são raios gama por terem lido quadrinhos do Hulk, visto os filmes. Elas sabem que raios gama são um tipo de radiação, e que a exposição a eles pode causar mutações. É claro que os efeitos dos raios gama na vida real são diferentes. Então, em alguma medida, você consegue, através dessa divulgação em cinema, em quadrinhos, transmitir alguns desses conhecimentos científicos. Mas eles têm limitação, são um pouco rasos. Contribuem mais por mostrar que a ciência pode ser legal, que ela pode ser utilizada para resolver problemas da humanidade”.

No Cine Vagalume, o professor Márcio Barreto vê na prática o quanto essas portas de entrada para a ciência podem trazer discussões inesperadas: “No filme Solaris, do Andrei Tarkovsky você vê sutilmente essa questão da relatividade apresentada quando o protagonista, um cosmonauta russo, vai para o espaço. E ele se despede do pai para sempre, porque, como no filme ele vai viajar a uma velocidade muito grande, a viagem que vai durar pouco tempo para ele ocorrerá em muito mais tempo para quem está na Terra. Eles nunca mais vão se ver. E nesse filme há cenas que representam a linearidade do tempo, a própria relatividade, representadas de uma forma que, o pessoal, quando sai da sessão, não entende ao todo como aquilo mudou cada um por dentro. Eu acho isso muito mais potente do que Interestelar, por exemplo. Assim como em Contato, baseado no livro do Carl Sagan, que também trata a ciência de uma forma sutil, e tem uma potência emocional muito grande”, diz o professor.

Relembrando as sessões de exibição de filmes com essa abordagem no cineclube da FCA, ele completa, rindo:  “Muito mais interessante do que qualquer filme sobre viagem no tempo”.

À esquerda, cena icônica de A viagem à Lua, de Georges Méliès. À direita, a transformação de Bruce Banner no Incrível Hulk, devido à exposição aos raios gama. Ambos são exemplos de como a ciência na cultura pop, mesmo inexata, pode servir como forma de instigar a curiosidade. Crédito imagem: O incrível Hulk é propriedade intelectual da Marvel Comics

NOTA

1 – Curiosamente, conforme explicado pelo estudioso de computação quântica Scott Aaronson em um artigo do The Ringer a respeito do filme Os vingadores, a mecânica quântica, por si só, discute muito menos a questão do tempo do que a teoria da relatividade geral de Einstein. Conforme dito pelo cientista, porém, esse é um erro comum no cinema de ficção, muitas vezes associado ao uso do termo “quântico” para tratar de qualquer fenômeno estranho e que desafie a lógica com a qual costumamos encarar a realidade.

Bruno de Sousa Moraes tem graduação em ciências biológicas (UFRJ), mestrado em ecologia (UFRJ) e é pós-graduado em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.