Por Bruno de Sousa Moraes, Camila Pissolito e Guilherme Henrique Vicente
A história evolutiva e ecológica da humanidade é cheia de marcos impressionantes. Quais são nossas origens, e como elas interagem e abalam uma história muito maior do que a nossa?
Somos a única espécie, até onde sabemos, que conta o tempo em calendários. 2017 é a quantidade de anos passados desde o marco zero escolhido (ou imposto) pela maioria das sociedades ocidentais, e esse tipo de acordo social complexo é uma das marcas da humanidade. No dia em que concordamos em chamar de 07 de junho de 2017, a data de um outro marco zero surgiu (muito mais antigo do que o do calendário gregoriano). Foram publicados na revista Nature a datação de um grupo de ferramentas e fósseis humanos encontrados no Marrocos, e a comparação da anatomia desses fósseis com outros registros humanos pré-históricos e modernos.
A conclusão dos dois artigos é a de que o sítio de Jebel Irhoud foi ocupado por seres humanos anatomicamente modernos, já classificáveis como Homo sapiens. E, caso nosso marco zero fosse a idade desse grupo de pessoas e das ferramentas e armas com as quais caçaram a gazela encontrada ali perto, a humanidade estaria aproximadamente em seu ano de número 300 mil.
É fácil pensar que estamos no planeta há muito tempo, 150 vezes mais do que nossa contagem da chamada “era comum”. Do ponto de vista do planeta, porém, somos um acontecimento recente: a estimativa é a de que as primeiras formas de vida tenham aparecido na química da Terra entre 3,8 e 4,3 bilhões de anos atrás. Isso faz com que até mesmo nossos ancestrais mais remotos — os primeiros primatas, surgidos há aproximadamente 65 milhões de anos — sejam incrivelmente jovens na grande história do mundo.
Quando prestamos atenção ao tamanho do legado cultural, material e ecológico que a espécie humana acumulou no breve piscar de olhos geológico que foram os últimos 300 mil anos, é difícil resistir à tentação de nos acharmos especiais. Talvez a mais singular criatura em toda a diversidade de seres vivos do planeta. Mesmo as ferramentas de pedra e osso mais básicas, construídas por humanos primitivos desde que éramos Homo habilis, já representam um salto absurdo de complexidade num Universo moldado pelo acaso e pelas regras simples da física e da química. E essas ferramentas foram apenas os primeiros passos tímidos de uma linhagem de animais que escreveu milhões de livros, construiu cidades e espaçonaves, e reconfigurou o próprio planeta em prol de suas necessidades. Mas quem somos nós realmente e como chegamos até aqui? E o quão profundas são as pegadas deixadas na face da Terra por essa incrível caminhada?
O primata que desafiou a morte
“Qualquer outra espécie que tivesse a capacidade de evitar o controle de suas populações por evitar a mortalidade, como nós, teria um resultado provavelmente muito parecido com o nosso”. É o que afirma a bióloga da conservação e documentarista Zulmira Coimbra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em determinado momento na história dos humanos primitivos, a aliança entre nossos cérebros grandes, mãos habilidosas e capacidade cada vez maior de comunicação, através de diversos tipos de linguagem, nos transformou em uma das espécies animais mais eficientes do mundo, no que diz respeito à aquisição de alimentos e à postergação da própria morte. Basta observar o quanto as estratégias complexas de caça de grupos de chimpanzés — nossos parentes próximos, dos quais nos “separamos” evolutivamente há meros 7 milhões de anos — os permitem caçar pequenos macacos, mesmo sem a anatomia especializada de predadores como leões ou lobos.
Os membros do gênero Homo, especialmente as espécies mais recentes como o Homo habilis, o H. erectus, e os primeiros exemplares de H. sapiens eram mais inteligentes do que os chimpanzés modernos, sendo capazes de articular estratégias mais complexas, pensar em soluções mais criativas, e construir e aperfeiçoar armas a partir dos materiais que encontravam em seus ambientes. A linguagem, a criatividade e o uso de armas e do fogo faz com que os humanos, e nós Homo sapiens em especial, superem os limites de sua biologia
Adicionalmente, a capacidade dos nossos cérebros de perceber padrões na natureza nos permitiu distinguir com maior eficiência as mudanças das estações e seus efeitos sobre a disponibilidade de alimentos. Permitiu que aprendêssemos rapidamente o que deveríamos comer, onde deveríamos nos abrigar, quais plantas eram nutritivas, medicinais e quais eram venenosas. E, por fim, permitiu que colonizássemos todos os cantos do planeta.
Os primeiros Homo sapiens seguiam um estilo de vida de caçadores-coletores. Basicamente, isso quer dizer que passávamos entre 6 e 8 horas do dia indo atrás de alimentos. Comíamos frutos, raízes, cogumelos, folhas e uma eventual carne de caça ou pescado. Vivíamos em bandos pequenos, e a maior parte das pessoas em um bando provavelmente tinha algum tipo de laço sanguíneo. Ainda estávamos caminhando para as mudanças no nosso cérebro e comportamento que desencadearam a explosão de criatividade que nos fez criar mitos e cidades. Alguns pesquisadores defendem que isso ocorreu em um evento denominado “revolução cognitiva”, provavelmente entre 70 e 50 mil anos atrás. Outra teoria é a de que esse processo foi se dando aos poucos, atingindo o ápice por volta dessa época. Mas, mesmo antes de entalharmos e pintarmos obras de arte em nossos refúgios de pedra, já éramos um primata singular em nossa capacidade de nos manter vivos.
Outros humanos, e a ascensão dos Homo sapiens
Outras espécies de humanos foram surgindo em outros pontos do planeta, a partir dos mesmos ancestrais do Homo sapiens. Uma das mais famosas, os neandertais (Homo neanderthalensis), se desenvolveram em isolamento na Europa, a partir do Homo erectus. O mesmo Homo erectus que deu origem a nós, na época do Pleistoceno, na África Oriental.
Os neandertais eram robustos e mais fortes do que nós, e também utilizavam o fogo e construíam ferramentas. É provável que possuíssem cultura para além dessas duas tecnologias, e também é possível que tivessem algum tipo de linguagem. Fossem como fossem os neandertais, os Homo sapiens que chegaram à Europa 40 mil anos atrás trouxeram o fim dessa espécie irmã. Já tínhamos, a essa época, capacidades cerebrais e sociais comparáveis às de hoje. Formávamos grupos que trocavam histórias e ideias, e que cooperavam de maneira mais eficiente. O fim de outras espécies humanas por nossas mãos é apenas um conjunto pequeno das extinções causadas pelo Homo sapiens. Extinguir outras formas de vida tem sido uma consequência recorrente e perigosa da nossa existência. E ela têm se tornado cada vez mais perigosa.
Grande, feroz e numeroso: o pior predador da Terra
Enquanto nos espalhávamos rapidamente pelo globo, os Homo sapiens iam se adequando aos climas e à ecologia local. Aprendiam rapidamente o que podiam comer, para onde se mudar quando as estações se sucediam, e como fugir (ou matar) os predadores que viviam ali. Aumentavam os nossos números e, consequentemente, diminuíam os de outras espécies animais. A explicação está justamente no fato de a nossa inteligência e habilidade terem permitido que transcendêssemos parte dos limites da nossa biologia. Coimbra explica: “O ponto é que, na natureza, os outros grandes predadores, que não são bons em evitar a morte, estão sujeitos a uma regulação populacional, e em tese são raros. Isso pela regra básica da ecologia de que, de um nível trófico mais abaixo para um superior (de plantas para herbívoros, por exemplo, ou comparando a biomassa total de herbívoros com a dos carnívoros que se alimentam deles), você só tem o aproveitamento de 10% da energia, em média. Então, você não pode ter uma população de leões tão grande como uma população de zebras, porque os leões só absorvem 10% da energia das zebras”.
Boa parte dos predadores foi moldada por milhões de anos para capturar um conjunto específico de presas. Um leão pode ser muito bom para capturar uma zebra, mas ele não pode complementar sua alimentação com frutos e raízes. Também não vai caçar pequenas aves, pois suas garras e presas não são boas para capturar animais tão pequenos. Como um bom predador, o leão tem seus números contidos pelos números das zebras, gazelas e antílopes que consegue capturar.
Nesse sentido, o Homo sapiens é um péssimo predador. Capaz de capturar animais pequenos e imensos, com armadilhas, estratégias de caça em grupo e armas — e de estar sempre aperfeiçoando essas técnicas com base nas gerações anteriores — somos capazes de causar um grande estrago em outras populações animais. Recentemente, estudos têm chegado a uma conclusão perturbadora: As extinções dos grandes animais que costumavam habitar o mundo durante a última era do gelo ocorreram consistentemente próximas da chegada de populações humanas em cada lugar. E mesmo os animais pequenos que, por uma série de motivos, são menos sensíveis ao efeito populacional da caça não escapam do potencial que temos de contrariar a ecologia e sermos mais numerosos do que os ecossistemas. Mas a ecologia não recompensa esse tipo de comportamento. E o próximo passo na história dos Homo sapiens comprovou isso para as sociedades mais destrutivas.
A arte de criar desertos
Há aproximadamente 12 mil anos, na região do Crescente Fértil, o Homo sapiens descobriu uma nova tecnologia. Essa tecnologia consistia em moldar o mesmo processo natural que nos criou, para fazer plantas mais nutritivas e animais mais dóceis. Apesar de a domesticação dos cachorros (a partir de ancestrais como o lobo europeu) ser um pouco mais antiga do que a revolução agrícola, a prática de cruzar animais ou plantas de forma a selecionar alguma característica de interesse se tornou comum nessa época naquele canto do mundo. Outras sociedades humanas domesticaram plantas alimentícias e animais para tração e fonte de alimento em outros momentos e locais, mas o Crescente Fértil é o exemplo mais antigo do que se tem notícia.
O Crescente Fértil, que compreende a região da Mesopotâmia, oeste asiático e vale do Nilo, foi onde grandes cidades surgiram pela primeira vez, alimentadas por sistemas agrícolas irrigados pelos corpos d’água na região. Por isso, ele também é chamado de “berço da civilização”. Nessa região, desenvolvemos a escrita que permitiu, pela primeira vez, que gerações se comunicassem indiretamente através do tempo. Também nessa região aparece, provavelmente pela primeira vez, uma desigualdade social imensa e institucionalizada. E, através do intercâmbio de culturas agrícolas e pastoris, sociedades complexas com seus próprios sistemas de crença começaram a interagir e realizar transações de forma mais complexa do que as maiores tribos de nômades caçadores-coletores.
Para construir uma cidade, é preciso coletar matéria-prima, na forma de madeira, rocha e argila. É preciso que pessoas possam se especializar em diferentes ofícios, e mesmo aquelas que não produzem comida diretamente têm de ser alimentadas, o que significa a instalação de uma economia. De certa forma, nasciam aí os setores econômicos, o princípio do que viriam a ser as indústrias. Anteriormente, as sociedades de Homo sapiens já se diferenciavam das de outros animais pela capacidade de contar histórias e ensinar ofícios complexos (embora seja possível ver a transmissão de comportamentos em vários outros animais sociais, incluindo o uso de galhos e pedras como ferramentas em bandos de chimpanzés e macacos-prego). Mas o nível de complexidade social das primeiras cidades mais uma vez representava algo inédito na vida do planeta Terra. Também representava, pela grande demanda de matérias-primas e áreas de solo para cultivo, um impacto ambiental sem precedentes.
O Crescente Fértil hoje é uma região mais árida. Todos os indícios apontam para o fato de que essa já seria uma tendência natural do clima daquela área, mas os sistemas de captação de água e agricultura das sociedades mesopotâmicas provavelmente agravou e precipitou esse processo. Isso não é algo isolado na história da humanidade. “Algumas das civilizações que pereceram ao longo do Holoceno foram extintas por estrangulamentos ambientais, não raro motivados por desmatamento, empobrecimento dos solos, escassez hídrica etc.”, afirma Luiz Marques, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. No oeste dos Estados Unidos, na região dos Quatro Cantos, por exemplo, a população Anasazi se desenvolveu, formou um império de imponentes pueblos, e colapsou pelas próprias mãos junto com o clima e os ecossistemas da região.
Outros exemplos de populações que alteraram drasticamente os climas em torno de si incluem as populações da Ilha de Páscoa, a desertificação da região do Sahel, no oeste africano, e a alteração das monções australianas pelas práticas de corte e queima dos aborígenes.
As cidades e as indústrias que revolucionaram o mundo de 12 mil anos para cá eram muito modestas se comparadas às megalópoles que temos hoje. O Homo sapiens continuou a inventar tecnologias, domando a eletricidade e a energia de combustíveis fósseis como o petróleo e o carvão. Descobrimos como extrair energia nuclear a partir do rompimento dos átomos que compõem a matéria, e aprendemos a voar para terras distantes e mesmo para outros corpos celestes. O avanço da medicina e da produção de alimentos diminuíram tanto a mortalidade infantil e prolongaram nossa vida de modo a termos hoje, exceto em regiões de extrema pobreza, o dobro da expectativa de vida dos Homo sapiens encontrados em Jebel Irhoud. Atingimos o número de 7,4 bilhões de pessoas espalhadas por todo o mundo. O que não conseguimos é fazer com que o planeta aguente todas essas mudanças, e representamos, cada vez mais, uma carga pesada.
Uma das características que permitiram que florescêssemos como a espécie ímpar que somos foi a nossa capacidade de observar, entender e alterar o mundo à nossa volta para que ele se adequasse às nossas necessidades. Agora, para sobreviver, é hora de observar e entender mais, e descobrir maneiras de frear nossas alterações.
Continua: para saber sobre os desafios das próximas décadas, leia a reportagem “Pensando o amanhã: as alternativas para o futuro do planeta e da humanidade”.
Bruno de Sousa Moraes tem graduação em ciências biológicas (UFRJ), mestrado em ecologia (UFRJ) e é aluno do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Camila Pissolito é jornalista (FIAM) e aluna do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Guilherme Henrique Vicente é jornalista (Unesp) e aluno do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.