Por Rafael Revadam
Na cidade de Juazeiro, na Bahia, Lucineide Silva ganha a vida subindo em casas. Ela não imaginava que suas travessuras de criança, escalando pés de umbuzeiro e caju, lhe renderiam o primeiro emprego com carteira assinada. Lucineide instala placas solares em um conjunto habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida. A 2.900 km dali, no município de Rancho Queimado, em Santa Catarina, a Escola Municipal Roberto Schutz entrou para a história como a primeira do país a receber painéis solares. Isso engajou os alunos da instituição, que passaram a cobrar dos pais, dos professores e dos políticos locais mais medidas ambientais.
Em 2016, o Greenpeace percorreu o país para acompanhar programas de instalação e desenvolvimento de energia solar. O resultado foi o documentário Sol de norte a sul, disponível gratuitamente no YouTube. Com o objetivo de apresentar transformações que estão acontecendo ao redor do Brasil graças a essa energia sustentável, a organização não-governamental mostra algo que vai além do desenvolvimento tecnológico ou da redução nas tarifas de contas de luz: falar de energia solar é falar sobre pessoas.
“Estamos na base de apoio, na reserva de desenvolvimento sustentável Amanã, no estado do Amazonas. Basicamente, são dois programas que trabalhamos com energia solar. Um para bombeamento de água para a superfície e outro para a fabricação de gelo. E a perspectiva é que esse gelo que as comunidades estão produzindo vai atender as necessidades básicas das famílias, que é de conservar alimento, de resfriar água” – Otacílio Brito Soares, gestor de tecnologias sociais no Instituto Mamirauá.
Para quem já tem energia elétrica em casa, talvez a visão sobre os benefícios da energia solar possa ser um pouco mais limitada. O primeiro pensamento deve girar em torno da economia nos valores das contas. Entretanto, os projetos apresentados nesse documentário mostram benefícios além do papel econômico e também escancaram a desigualdade social do país. Para algumas pessoas, energia solar significa tomar banho, beber água doce ou conseguir guardar peixes e frutas para vender.
“A fonte solar precisa vencer algumas barreiras. Uma delas é do desconhecimento, a outra eu acho que é da desconfiança, e isso é normal dentro de um processo de inovação tecnológica. Ninguém vai investir um determinado valor, e não é tão baixo assim, sem a certeza de que aquilo vai funcionar. Então, eu acho que essa parte do convencimento caberia, inclusive, às empresas instaladoras, às concessionárias [de energia], teria que haver uma espécie de estratégia de esclarecimento. Pra fazer um trabalho de divulgação de massa de um novo produto, precisa ter um planejamento, uma estratégia de ação. Quem tem procurado, de certa maneira, levar esse tema até o cidadão são as organizações não-governamentais. Isso poderia e deveria ser revertido. Porque você podia fazer perfeitamente uma grande campanha, uma campanha nacional que massificasse essa situação, explicasse às pessoas as vantagens que se tem ao optar pela energia solar. E mostrar que ela é tão confiável e técnica como a energia que a pessoa está usando hoje na sua casa” – Mauro Passos, presidente do Instituto Ideal
Energia solar, uma questão política
Um dos aspectos importantes que o documentário traz é como o Brasil carece de políticas de incentivo ao desenvolvimento da energia solar. Por conta do custo de instalação – que, em média, fica entre R$ 15 mil a R$ 20 mil em residências e pequenos estabelecimentos comerciais – essa tecnologia não é acessível à população. Isso também explica porque a maioria de suas instalações em casas surgiu por meio de programas sociais e parcerias com ONGs e empresas.
Falar de energia solar é também falar de política. É necessário que essa tecnologia ocupe os espaços legislativos e executivos e, consequentemente, seja convertida em projetos de leis para benefício da sociedade. É o que explicou o ex-deputado federal Arnaldo Jordy: “Não temos nenhuma fonte de financiamento, nenhuma política de fomento que possa estimular a agregação desse valor ou a alternativa a essas políticas tradicionais. Enquanto isso, nós estamos fazendo usinas hidrelétricas com alto custo social e ambiental, com a destruição de ativos da biodiversidade na Amazônia, como foram os casos de Tucuruí e Belo Monte”.
Em janeiro de 2021, o documentário vai completar cinco anos. E, infelizmente, a realidade social apresentada nele pouco mudou, incluindo o descaso político. Para se ter uma ideia, o governo federal apresentou no final de 2020 o Plano Decenal de Energia, com medidas a serem aplicadas até o ano de 2030. Esse documento, aberto para consulta pública, não possui nenhum programa pensado especificamente para o desenvolvimento da energia solar, ao mesmo tempo em que dedica capítulos exclusivos para outras formas de energia.
Sol de norte a sul é uma obra que incomoda. Incomoda porque mostra um Brasil que não aparece nos noticiários diários, um cotidiano que não pertence à maioria das pessoas. Num mundo cada vez mais digital, como imaginar que existam pessoas que ainda lutam pelo acesso à energia elétrica? Entre depoimentos emocionantes e diversas iniciativas, o documentário é um escancaramento dos privilégios sociais.
“O meu sonho, um dia, é nós termos uma luz assim direto, entendeu? Pra comunidade. Assim, que funcione 24 horas. Então, esse sonho eu tenho, porque eu vejo que é uma necessidade e essa necessidade não é de agora. É tão bom a gente ter energia dia e noite. Tomar uma água gelada, ver uma televisão, pegar um vento. É bom se fosse assim no coletivo, todo mundo tendo” – Iani Vicente Sales, presidente da comunidade de Várzea Alegre, no Amazonas.
Rafael Revadam é jornalista, pós-graduado em estudos brasileiros pela Fundação-Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Aluno da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.