Neonazismo no Brasil: uma leitura e algumas hipóteses

Por Odilon Caldeira Neto

Seja pela facilidade de colaboração e circulação de conteúdo em dimensão global, a internet é, atualmente, a principal plataforma para formação e disseminação de materiais e atividades neonazistas. É preciso ressaltar que a imaterialidade do virtual não implica inexistência no real, do mesmo modo que a intensidade do virtual não implica necessariamente massificação nas ruas. Ainda assim, a circulação dessas ideias impacta o real de diversas maneiras, seja pelas múltiplas dimensões da violência desses discursos de ódio, seja pela possibilidade de articulação em momentos de crise.

O neonazismo pode ser caracterizado a partir de expressões diversificadas que tentam criar ou rearticular, desde o pós-guerra até a atualidade, organizações cujos fundamentos essenciais relacionam-se com o regime nacional-socialista alemão, assim como de organizações nazistas ao redor do mundo existentes no período de entreguerras. É um tema atualmente em voga, seja pela radicalização política e cultural do cotidiano brasileiro, mas também pelo contexto internacional a partir de tópicos diversificados, como a eleição de Donald Trump nos EUA, o crescimento de partidos como o “Alternativa para Alemanha” e a francesa Frente Nacional, assim como pelo evento ocorrido em Charlottesville. Este último é, inclusive, aquilo que mais se aproxima, propriamente dito, do neonazismo como uma categoria analítica e interpretativa e, ao mesmo tempo, a tendência das mais radicais e violentas da extrema-direita em perspectiva internacional.

No caso brasileiro, ao tratar as evidências neonazistas na atualidade, é necessário compreender os elementos conjunturais dessa realidade; e de que maneira, dentro de sua marginalidade no campo político e da própria extrema-direita brasileira, é atrelada a fenômenos relacionados ao processo de transição democrática, especialmente em seus últimos momentos ou “capítulos”.

É amplamente sabido e documentado que o Brasil foi um dos principais locais de organização de partidos e células nazistas, que disputaram espaço com outras organizações de cariz [fisionomia, aparência, aspecto] fascista (sobretudo com a Ação Integralista Brasileira) e foram reprimidas ao longo do Estado Novo, em especial a partir da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial[1]. No entanto, a hipótese interpretativa desenvolvida em pesquisas ao longo dos anos, assim como em diálogo com diversos pesquisadores, é que o neonazismo, no Brasil, deve ser entendido a partir de características fundamentais em torno de sua especificidade, de sua complexidade e de sua heterogeneidade, não necessariamente como um continuum.

A relação em torno da especificidade define que o neonazismo, no Brasil, é composto não apenas como forma de reprodução de tipos e organizações existentes na Europa e em alguns países na América Latina. Embora existam algumas semelhanças, sobretudo em termos estéticos e comportamentais (em especial de agrupamentos juvenis urbanos) ou mesmo em termos de organização, é necessário ressaltar que o neonazismo é uma evidência concreta e verificável, todavia marginal, relacionada ao processo da abertura política brasileira, mas não fruto ou consequência dela.

Embora possa ser algo paradoxal – afinal, trata-se de um momento de conflito de parcelas significativas da sociedade brasileira com as perspectivas discricionárias das estruturas autoritárias do regime militar –, a abertura democrática traz possibilidade de organizações da extrema-direita atuarem e disputarem algum espaço do campo político.

A essa especificidade, podemos adicionar os elementos de complexidade e heterogeneidade que estão relacionados e se influenciam mutuamente. O neonazismo no Brasil (e em grande maioria dos países) não corresponde a um bloco homogêneo e constituído em torno de uma só organização, tampouco de uma liderança carismática e legitimada entre seus pares. Essa é uma característica, inclusive, do neonazismo de modo geral, em que se torna não apenas uma perspectiva político-ideológica restrita e mais ou menos definida em pontos programáticos, mas também algo como um estilo de vida alternativo, a partir de uma leitura dos descompassos da (ou de uma específica) modernidade.

Devido a essa característica que julgo fundamental para entender sua natureza, existe uma multiplicidade de tendências – daí sua heterogeneidade – que podem ser descritas como neonazistas, desde o início da chamada Nova República até os dias mais recentes. Ao longo do processo da Constituinte e da abertura política, alguns indivíduos e pequenos grupos aventaram a possibilidade de organização de um partido afeito a alguns ideais do nacional-socialismo alemão. Legendas como Partido Nacional-Socialista Brasileiro e Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro seriam espécies de estandartes institucionais do neonazismo no Brasil. No entanto, a tônica antiautoritária e implicações legais levaram ao fracasso dessas iniciativas.

Ainda na década de 1980, surge a movimentação de editores e autores negacionistas do Holocausto, cuja maior expressão foi a Editora Revisão. Aqui, temos uma diversidade em torno das expressões com ambição ou aspecto mais institucional, pois o negacionismo promulga, sob argumentos que não se sustentam, propor a negação de fatores chaves para a interpretação da Segunda Guerra Mundial e a responsabilização do regime nazista. Por meio de uma narrativa pretensamente historiográfica, o que se professava era a dimensão de defesa não enunciada (ou simplesmente relativista) do nazismo e do antissemitismo, com profundas implicações nos meios públicos de circulação, que são parte fundamental da composição da cultura histórica de qualquer sociedade.

Seja na perspectiva partidária – absolutamente efêmera – ou na subliteratura negacionista, é importante compreender que essas formas se articulam a partir das tentativas de tensionamento da normalidade democrática e, em última instância, de uma ruptura institucional. Utilizava-se o contexto de crítica ao autoritarismo e da própria democratização – onde a liberdade de organização partidária e a contrariedade à censura são elementos fundamentais – para estabelecer uma narrativa “democrática” na ótica ou intenções de grupos que, na realidade, são profundamente antidemocráticos e persecutórios.

Se essas expressões estavam mais relacionadas às práticas de violência simbólica, ela é contraposta às formas mais radicais do neonazismo, cuja violência física é parte essencial da identidade coletiva e do cotidiano de seus integrantes. Organizações intituladas white power são compostas, em sua grande maioria, por membros de agrupamentos e gangues juvenis urbanas, sobretudo dos skinheads, em que a violência é não apenas um eventual elemento de um processo supostamente “revolucionário”, mas uma característica fundamental de um modus operandi que persegue as minorias e busca criar realidades alternativas no território brasileiro[2].

São, assim, tendências que promulgavam o elogio e retorno de elementos basilares do nazismo, seja o antissemitismo e a perseguição às diversas minorias, ou de instâncias de “propaganda” e atividades mais efetivas. Essas grandes subdivisões do neonazismo no Brasil não são, contudo, categorias estanques e definidas somente por suas fronteiras (no sentido de barreiras, não de terreno de diálogo).

O diálogo entre esses ordenamentos acontecia e acontece em diversos momentos, seja na circulação de obras negacionistas entre membros de grupos e jovens skinheads, mas também em colaboração efetiva diversificada, inclusive com outras tendências do neofascismo no Brasil, como grupos neointegralistas. Ao longo dos anos 1980-2000 é uma circulação mais restrita a eventos pontuais ou possibilidades de inserção na mídia, inclusive a partir dos processos judiciais, envolvendo desde partidos políticos, as obras negacionistas, até episódios de violência relacionados a grupos skinheads.

Com a chegada e massificação das novas tecnologias da informação e comunicação, em especial a internet, existe um novo campo de possibilidades. Essa circulação acaba, também, sendo fomentada pela contínua exposição do tema em meios de comunicação, onde o nazismo é descrito como algo para além das razões do edifício da modernidade, e não estabelecido a partir de suas contradições – inclusive algumas dessas contradições e práticas bastante em voga nas atuais tendências de radicalização do campo político brasileiro.

Seja pela facilidade de colaboração, divulgação e circulação de conteúdo em dimensão global, a internet é, atualmente, a principal plataforma para formação e disseminação de materiais e atividades neonazistas. É necessário, contudo, ressaltar que a imaterialidade do virtual não implica inexistência no real, do mesmo modo que a intensidade do virtual não implica necessariamente fenômenos de massificação nas ruas. Ainda assim, a circulação dessas ideias impacta o real de diversas maneiras, seja pelas múltiplas dimensões da violência desses discursos de ódio, ou ainda pela possibilidade de articulação em momentos de crise política e social.

O quadro brasileiro dos últimos anos é, nesse sentido, potencialmente ilustrativo. Se não houve uma virada neofascista ou neonazista na política hegemônica ou estatal, existe um processo de radicalização, por meio do qual esses grupelhos passam a tentar intervir de acordo com seus anseios e possibilidades. Mesmo que estejam mantidos na ilegalidade e marginalidade no próprio campo da extrema-direita brasileira, o quadro atual é favorável para o fortalecimento não apenas em termos de quadros e militância, mas principalmente em perspectiva de discursos, narrativas e tentativas de mobilização em pautas específicas – talvez a dimensão mais periclitante.

Por fim, é necessário aventar hipóteses para estudos futuros, que busquem abarcar o entendimento e análise da composição social desses grupos e seus reflexos, algo ainda pouco explorado[3]. Para além dos discursos, seria necessário compreender como os dispositivos dos imaginários sociais desses agrupamentos são constituídos (a partir de qual base, e como eles geram práticas diversas) e como auxiliam a operacionalizar a práxis política deles.

Um exemplo pode ser mencionado a partir do caso relacionado a um professor atuante no interior de Santa Catarina, que construiu uma piscina com suástica e teve algum histórico envolvendo declarações que seriam, a princípio muito acertadamente, descritas como elogios ao nazismo. Embora o evento todo tenha transcorrido em Santa Catarina, é necessário pontuar que a figura em questão havia se mudado para o estado, não sendo originário da região e tampouco descendente de alemães.

Quais as razões para isso, ou em que esse fato pode nos ajudar a entender a complexidade em questão? Uma chave interpretativa, todavia não definitiva, pode ser a constituição dos estados do Sul e porções do Sudeste como territórios míticos no entendimento desses grupos. Assim, é possível entender que a imigração alemã (ou de determinadas regiões europeias) é tomada por esses grupos e indivíduos como um elemento de composição social em contraponto ao também falacioso mito da democracia racial brasileira tão em voga em setores do pensamento social brasileiro.

Assim, pode existir uma relação entre processos de imaginários sociais da definição de “territórios de exclusividade”, que podem ser definidos desde o entendimento da composição “bandeirante” de identidades paulistas até, em uma perspectiva mais abrangente em termos de identidade, mas profundamente excludente do ponto de vista das práticas racistas, dimensionada a partir do entendimento dessa também “exclusividade” das regiões do sul do país.

Em outra dimensão, essas perspectivas de análise viriam auxiliar a problematizar, de modo efetivo, a relação “mecanicista” na composição de uma equação relacional onde a imigração alemã (e italiana, polonesa, austríaca etc.) como forma de definição de um ethos componente de um locus propício para atividades neonazistas, algo demasiadamente simplista.

Resumidamente, o mais importante é tentar entender por meio de quais mecanismos esses grupos e indivíduos julgam e representam determinadas identidades e porções do território brasileiro como uma “ancestralidade” imaginada que, no entanto, é objetivamente construída a partir de sua condição hodierna, mas que em termos concretos podem não estar relacionadas com dinâmicas vividas. Afinal de contas, definir uma relação casuística entre imigração e neonazismo é algo profundamente controverso e, muito provavelmente, equivocado.

A título de conclusão, é fortuito também observar que se o momento de formação dessas expressões relaciona-se com a emergência de uma nova ordem política no Brasil, suas possibilidades e ambivalências, é necessário pontuar que a atividade realizada sobretudo pela internet e suas sociabilidades compõem não apenas novas formas de comunicação, mas também novas linguagens, elementos culturais e formas de identificação, que tendem a ser mais fluidas e complexas. Por essas razões, o neonazismo é mais que um aspecto de preocupação iminente apenas do ponto de vista científico, mas também de entendimento às formas de construção de formas efetivamente democráticas, uma questão ainda urgente.

Odilon Caldeira Neto é professor colaborador e pesquisador de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutor em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e coordenador da rede “Direitas, História e Memória” (http://direitashistoria.net).

[1]     Sobre essas questões, entre diversas outras publicações, cf. Gertz, R. O fascismo no Sul do Brasil: germanismo, nazismo, integralismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; Athaídes, R. O Partido Nazista no Paraná (1933-1942). Maringá: Eduem, 2011; Bertonha, J. F. Sobre a direita: estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá: Eduem, 2007; Dietrich, A. M. Caça às suásticas: o Partido Nazista em São Paulo sob a mira da Polícia Política. São Paulo: Humanitas, 2007.

[2]     Cf. Almeida, A. de. “Os mitos ordenadores do poder branco paulista”. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004.

[3]     Nessa perspectiva, compartilho das preocupações expostas em Gertz, R. O neonazismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EdiPUCRS/AGE, 2012.