Música e política

Por Carlos Vogt

Há vários anos, em 1979, escrevi, para a revista IstoÉ[1], uma crônica que saiu editada com o nome “O patrulhado patrulha os patrulheiros”, mas que eu queria ver publicada com o nome “Música e política”, embora eu mesmo a tenha reproduzido, tal qual saiu na revista, no livro Crítica ligeira[2].

Com anos de atraso e no embalo deste número da ComCiência, refaço o nome e mantenho o texto, como um registro de época e também como um depoimento do admirador, de sempre, da música e da poesia de Caetano Veloso.

“A música tinha para ela a vantagem de não ser presente,
passado ou futuro; era uma cousa fora do tempo e do espaço, uma idealidade pura”. (Machado de Assis, Esaú e Jacó).

Verão. Com as chuvas, também as patrulhas. Não as rádios, que essas sempre estiveram por aí afiando o medo das ruas, dos mares, dos sertões, dos desertos. Nem a Nacional, de que somos, voluntários ou não, os herdeiros. Do vazio, de ilusões. Fazendeiros do ar. Falo de nós, intelectuais, artistas, professores, arquitetos, jornalistas. Essa estranha classe média, que tem classe e que tem pena. De si mesma?  Escreve nos seus símbolos as vitórias fantásticas de suas derrotas reais? De seu dilaceramento? Perdemos politicamente em 64, mas ganhamos a batalha cultural? E daqui não saio, daqui ninguém me tira. Estamos com a cultura e não abrimos. Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, vocês lembram?, mas eu não mudo de opinião. O Arena arrebatava, o Oficina brutalizava: Zumbi, O rei da vela, Roda viva de nossos sonhos e frustrações.

A burguesia recuara de suas alianças políticas com a esquerda em 64 para marchar com as panelas da classe média e com os mofos da pequena burguesia. Mas não abdicava de seu sagrado direito ao ócio e à novidade. Os operários, bem, esses pagavam os nossos pecados e o deles, original, de serem operários ou trabalhadores rurais. Aqui sim os militares concentravam o zelo econômico e político determinado pelos compromissos que haviam agenciado o golpe. Arroxo salarial, sindicatos empelegados, organizações camponesas destruídas, repressão à solta. Era preciso fazer, nem que fosse a porrete, o sucesso do capitalismo no país. A porrete foi. O sucesso? Os setores produtivos da sociedade atraíam a maior parte da “sofisticada” atenção dos novos dirigentes.

É verdade que desde cedo começaram a surgir guardiães civis da nova ordem, com a alta missão de purificar os meios e instituições culturais da perversão das ideologias alienígenas. As patrulhas? O fato é que a mesquinhez, a mediocridade, cobraram ares políticos e, em muitos casos, a TFP passou a ser um ideal de comportamento cívico.

Um dos resultados mais ilustres desse ardor, ainda nos albores da “revolução”, foram os crimes perpetrados contra a Universidade de São Paulo e cuja memória está aí agora publicada, para quem quiser ver, no Livro negro da USP. Houve, de qualquer forma, uma certa folga no sistema que, de 1964 a 1969, foi largamente explorada pela atividade artística nos grandes centros. O teatro, o cinema, a música popular, num clima de profunda agitação cultural, momentos de insuspeita beleza estética e política[3]. Augusto Boal, Guarnieri, José Celso Martinez Corrêa, Chico Buarque, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre tantos outros, estiveram, como negar?, no centro, nas bordas, no lugar nenhum em todo lugar desse avesso do golpe. Os Festivais de besteira de Stanislaw Ponte-Preta pipocavam a razão média do bom comportamento dos heróis de 1964.

“pipoca ali aqui
pipoca além
desanoitece
a manhã tudo mudou” (C. Veloso, Pipoca moderna, 1975)

Entretanto, o que era conhecido como folga ideológica tende a estabelecer-se como espaço distendido de luta efetiva. Estudantes, operários, soldados, organizam-se em formas de resistência e ataque até então inéditos no processo político por que atravessava o país.

O governo radicalizava suas posições e logo mostraria os dentes de sua identidade. Dezembro de 1968, o famigerado AI-5, a repressão e o arbítrio refestelados enfim, depois de alguns anos de cozinha, na sala de visitas da democracia nacional.

Na medida em que a concessão era devolvida como necessidade e aspiração reais da vida social, não tardaria muito para que o governo desencadeasse a campanha ideológica do “ame-o ou deixe-o” e tentasse, a todo custo, encontrar quem cantasse ao Tropicalismo o contraponto do melhor dos mundos possíveis. Não faltariam adeptos ao coral. Antes, porém, o terreno estava sendo limpo por meios mais eficientes. Preparava-se o espetáculo do milagre brasileiro. A prisão, a tortura, a morte, as ameaças, os exílios, os banimentos. Muitos rodaram. Caetano entre eles.

Eu deveria estar falando de patrulhas ideológicas, mas quero mesmo falar de Caetano Veloso e fico aqui a dar voltas no parafuso e a me perguntar por que é que ele, mais do que nenhum outro, consegue mexer tanto com os esquemas de segurança e certeza de cada um de nós. Carlos Diegues aponta a existência de patrulhas de esquerda, Glauber Rocha as desafia com yy e kk, Gil as anuncia, mas é Caetano quem se transforma no ator principal da novela. A ele os ataques mais virulentos, dele as repostas mais contundentes. A imprensa se ofende com Caetano ofendido e, em troca de minhocas e mosquitos, outorga-lhe o prêmio “Simonal de ouro”.

Caetano expõe as contradições da sociedade em que vive, e a elas também se expõe, de maneira desabusada e sincera. Vertiginosamente. Se não há, em seu comportamento, apego partidário, é difícil negar que haja compromisso político. Mas não é assim que se desenha a função social do artista e o sentido de liberdade que deve caracterizar o seu trabalho? E não vale dizer que liberdade aqui é uma simples palavra, mera abstração. Sabemos todos que ela só se concretiza historicamente pela superação dos obstáculos que encontra. Obviamente, os dez anos de vigência do AI-5 no país dão uma medida da liberdade com que a sociedade civil o desbancou. Mas ser histórica não significa que deva ser assimilada aos meios que possibilitaram a sua aquisição. Não é propriedade de nenhum acordo e sim um benefício que se multiplica socialmente para superar-se em outros obstáculos:

“Eu acho que tá legal essa coisa de abertura democrática, mas eu não tenho muita euforia com relação a isso. Eu quero muito mais.” (C. Veloso em entrevista ao Folhetim, nº 99)

Não sendo estratégica, a liberdade do artista não tem, necessariamente, de afinar-se pela imediatez dos acontecimentos, nem pautar-se na conivência com um determinado público social e culturalmente próximo dele, pela simulação, ou, no caso de dirigir-se a um público mais diferenciado, pelo didatismo.

A música de Caetano não é didática nem alusiva, embora seja as duas coisas ao mesmo tempo. Mas porque não é uma ou outra fica difícil enquadrá-la em esquemas rígidos de análise, para não dizer em esquemas de expectativa. As queixas e mágoas mútuas da imprensa e do artista, alegorizadas no expediente polêmico das tais patrulhas ideológicas, são, apesar (ou até por isso mesmo) do tom de agressividade pessoal que as caracteriza, a expressão de um problema, cuja discussão valeria a pena de fato aprofundar, e que não é outro senão o da função social do artista em nossa sociedade.

Se o artista diz importa-me a música, não a política, tem-se a tendência de ler aí uma confissão de alienação e reacionarismo. Mas, convenhamos, não é o caso de Caetano Veloso. A sua música é a sua política, liberdade que os decretos não contêm, espaço social que as estratégias não condenam, subjetividade que os esquemas analíticos não matam. Muito romântico? E por que não? Mas de um romantismo que não se propõem nem como referência nostálgica nem como promessa de futuros. Sua música refere-se à música, fala com toda tradição da música popular brasileira, cita-a, reinterpreta-a, refaz o seu itinerário e explode como construção poética do cotidiano[4].

“Olhe o pulo da gia
não tenho utopia
não pia
a beleza também” (C. Veloso, Love, love, love)

Num dos primeiros festivais da Record, enquanto Geraldo Vandré propunha a guerra em Disparada e Chico Buarque cantava a festa da Banda passando ao largo, Caetano Veloso se dava na Alegria, alegria, não do antes nem do depois, mas em plena maré cheia das Águas de março. Sem lenço, sem documento, num tempo em que até zelador de prédio tinha competência para cadastrar o usuário. Em 1968, enquanto proibia proibir, o Tuca, com a história na mão, proibia o cantor de cantar. A música Terra, de seu último disco, começa pela circunstância biográfica do artista encarcerado diante de uma fotografia de corpo inteiro do planeta, porém vestido de nuvens. Começa, então, um desnudamento que vai do cósmico para o elemento, para a carne, para a história social de ambos e se funde num tecido diáfano de poesia e encantamento. A música vaza pelas grades, escorre por entre os dedos da autoridade, mergulha em si mesma, atravessa o passado e força as paredes da solidão imposta:

“Por isso uma força me leva a
cantar por isso essa força
estranha por isso é que eu canto
não posso parar por isso essa
voz tamanha” (C. Veloso, Força estranha)

Como detê-la!?

[1] Revista IstoÉ nº 114, p. 56-57, de 28/2/79
[2] Carlos Vogt: Crítica ligeira. Campinas: Pontes, 1989, p. 67-71.
[3] Uma análise interessante desse período é a que faz Roberto Schwarz no ensaio “Cultura e política, 1964-1969”, em O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1978, p. 61-62.
[4] Um belo ensaio sobre a força política e estética da música de Caetano, Gil, Chico e Milton Nascimento é o de José Miguel Wisnik, “Onde não há pecado nem perdão”, em Almanaque, nº 6, p. 11-16. 1978.