Mudanças no curso da vida

Por Guita Grin Debert

Na esfera da produção, as mudanças relacionadas com a velocidade na implementação de novas tecnologias e a rapidez na obsolescência das técnicas fazem com que a relação entre as grades de idade e a carreira seja obliterada, na medida em que conhecimentos anteriormente adquiridos frequentemente se tornam obstáculos para a adaptação às inovações. No domínio da família, desenvolvimentos recentes na distribuição de eventos demográficos como casamentos, maternidade, divórcios e tipos de unidade doméstica apontariam uma sociedade em que a idade cronológica é irrelevante: há uma variedade nas idades do casamento, do nascimento dos filhos e nas diferenças de idades entre pais e filhos.

A divisão da população por faixas etárias é parte da biopolítica que, como mostra Foucault, caracteriza os estados modernos, definindo políticas públicas específicas, organizando a vida escolar, o mundo do trabalho, a aposentadoria − entre outras manifestações que têm como princípio de organização a idade cronológica.

Pouca atenção, no entanto, tem sido atribuída às mudanças ocorridas nas etapas em que a vida se desdobra e nos diferentes estágios que têm marcado o curso da nossa existência.

Assistimos a um encurtamento da idade adulta − ou até mesmo sua dissolução − como uma experiência de maturidade, responsabilidade e compromisso[1].

Os dados sobre os setores jovens da população tendem a ampliar a faixa etária desse segmento que, nas pesquisas demográficas brasileiras, passa a englobar aqueles que têm até 24 anos e não mais apenas os que teriam até 18 anos.

Novos termos e expressões são acionadas para caracterizar os jovens dos setores mais abastados da população como kidults, peterpandemônio, geração bumerangue, os nem nem.

Com o título A síndrome dos kidults, o sociólogo inglês Frank Furedi (2004) trata da crescente infantilização da cultura contemporânea que tem se alastrado pela universidade, literatura, TV, cinema e arte em todo o mundo. O artigo começa com o relato do impacto causado durante um passeio no campus da Universidade de Kent, em Canterbury, no Reino Unido, no qual o autor se depara com um grupo de jovens universitários assistindo, num bar, absortos, a Teletubbies. Como explicar o interesse desse grupo de jovens entre 18 e 21 anos por um programa feito para crianças que ainda estão aprendendo a andar?

O autor se impressiona com esse aparente alongamento da infância que também foi denominada de “peterpandemônio”, termo cunhado por dois publicitários americanos para caracterizar pessoas na casa dos 20 a 30 anos que buscam produtos que lhes tragam de volta a infância, tida como uma fase da vida mais inocente e mais feliz. O grupo britânico de pesquisas de mercado Mintel mostrou que 43% dos jovens de 20 a 24 anos citaram como uma de suas escolhas favoritas de presentes para dar ou receber no dia dos namorados um bichinho de pelúcia. A Playmate Toys hoje dirige suas promoções aos adultos, tendo percebido que os consumidores potenciais de seus bonecos não são apenas as crianças, mas também adultos na faixa dos 18 aos 35 anos.

A nostalgia da infância não é um fenômeno apenas anglo-americano. A Hello Kitty, uma gatinha branca cuja marca registrada é uma flor ou um laço vermelho, tem popularidade tremenda entre os adultos japoneses. Profissionais e funcionárias de escritório levam material de escritório Hello Kitty para o trabalho, conversam com seus amigos em celulares Hello Kitty e usam gravatas do Snoopy.

Manifestação dessa cultura infantil que atinge o público adulto pode ser identificada na mídia. As cifras de audiência da rede Cartoon entre telespectadores de 18 a 34 anos de idade são surpreendentemente grandes. Esses dados levam o autor à conclusão de que Peter Pan, o garoto que não queria crescer, teria poucas razões para fugir de casa se vivesse em Londres, Nova York ou Tóquio.

As expressões “geração-bumerangue”, “solteiros parasitas” ou “adultos corresidentes” chamam a atenção para outra dimensão da infantilização da vida adulta, na medida em que têm como referência o fato de um número cada vez maior de homens e mulheres entre 20 e 35 anos continuar vivendo ou voltar a morar na casa dos pais. Na mesma direção, a expressão “os nem nem”, cunhada por Ana Amélia Camarano e Solange Kanso (2012), aponta para os jovens brasileiros que nem estudam nem trabalham. As autoras mostram que de 2000 a 2010, aumentou em 708 mil o número de jovens entre 15 e 29 anos nessa situação. O estudo por elas realizado verificou que 8,1 milhões de jovens estavam nessa condição em 2000 (16,9% da população jovem), atingindo 8,8 milhões em 2010.

A explicação mais comum usada para justificar o interesse pela casa dos pais é a econômica: os adultos jovens não têm condições de viver sós ou acham difícil tentar viver uma vida de conforto. Outros pesquisadores, no entanto, contestam essa hipótese, ao comentar a riqueza relativa dos jovens solteiros de 20 a 34 anos. O boom recente na venda de produtos de luxo vem sendo movido pelo consumo conspícuo dos solteiros parasitas ou filhos-bumerangue, vistos como consumidores com uma renda disponível muito alta.

Da mesma forma, o grupo que compreende os setores mais velhos da população é desdobrado em vários outros segmentos: a meia-idade, a aposentadoria ativa, a terceira idade. Cada um desses estágios da vida adulta tem pouca relação com a representação de maturidade ou com a ideia da velhice como um período de retraimento e sobriedade. Pelo contrário, eles têm sido transfigurados em momentos propícios para a satisfação pessoal, para a realização de sonhos que foram abandonados em outras etapas da vida, para a exploração de novas formas de autoexpressão e identidades.

Essa redefinição do avanço da idade está em sintonia com as novas concepções do corpo. A cultura do consumidor, de acordo com Featherstone (1994), prende-se a uma concepção autopreservacionista do corpo, que encoraja os indivíduos a adotarem estratégias instrumentais para combater a deterioração e a decadência. Essa concepção é aplaudida pela burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde, educando o público para evitar a negligência corporal.

A publicidade, os manuais de autoajuda e as receitas dos especialistas em saúde estão empenhadas em mostrar que as imperfeições do corpo não são naturais nem imutáveis, e que, com esforço e trabalho corporal disciplinado, pode-se conquistar a aparência desejada. Os indivíduos não são apenas monitorados para exercer uma vigilância constante do corpo, mas são responsabilizados pela sua própria saúde, através da ideia de doenças autoinfligidas, resultantes de abusos corporais como a bebida, o fumo, a falta de exercícios.

Essas mudanças indicam transformações na maneira como a vida como um todo é periodizada. Com a expressão “curso da vida pós-moderno”, Moody (1993) descreve um contexto marcado pelo apagamento dos comportamentos tidos como adequados às diferentes categorias de idade. Sua argumentação tem como base as novas configurações do processo produtivo, do domínio da família e das unidades domésticas.

Na esfera da produção, as mudanças relacionadas com a informatização, a velocidade na implementação de novas tecnologias e a rapidez na obsolescência das técnicas produtivas e administrativas fazem com que a relação entre as grades de idade e a carreira seja obliterada, na medida em que conhecimentos anteriormente adquiridos frequentemente se tornam obstáculos para a abertura e a adaptação às inovações.

No domínio da família, desenvolvimentos recentes na distribuição de eventos demográficos como casamentos, maternidade, divórcios e tipos de unidade doméstica apontariam uma sociedade em que a idade cronológica é irrelevante: mais do que mudanças de uma forma para outra, teríamos uma variedade nas idades do casamento, do nascimento dos filhos e nas diferenças de idades entre pais e filhos. As obrigações familiares tenderiam a se desligar da idade. A mesma geração, em termos de parentesco, apresenta uma variedade cada vez maior em relação à idade cronológica (mães pela primeira vez aos 16 e aos 45 anos); e gerações sucessivas, do ponto de vista da família, pertencem ao mesmo grupo de idade como, por exemplo, mães e avós na mesma faixa etária. O estabelecimento de uma unidade doméstica independente pode ocorrer em qualquer idade sem marcar, necessariamente, o início de uma nova família, de forma que pessoas de idades cronológicas muito distintas podem ter uma experiência similar em termos de situação de moradia.

O trabalho de Meyrowitz (1985) sobre o impacto da mídia eletrônica no comportamento social vai na mesma direção. Esse autor sugere que a mídia tende a integrar mundos informacionais que antes eram estanques, impondo novas formas de comportamento que apagam o que previamente era considerado o comportamento adequado a uma determinada faixa etária. As crianças ganham, cada vez mais, acesso ao que antes era visto como aspectos da vida adulta, posto que a mídia dissolve os controles que os adultos tinham sobre o tipo desejável de informação às faixas mais jovens. As informações disponíveis, os temas que são objeto de preocupação, a linguagem, as roupas, as formas de lazer tenderiam cada vez mais a perder uma marca etária específica.

O rejuvenescimento é um mercado de consumo no qual o envelhecimento tende a ser visto como consequência do descuido pessoal, da falta de envolvimento em atividades motivadoras, da adoção de formas de consumo e estilos de vida inadequados. A oferta constante de oportunidades para a renovação do corpo, das identidades e autoimagens encobre os problemas próprios do avanço da idade. O declínio inevitável do corpo, o corpo ingovernável que não responde às demandas da vontade individual é antes percebido como fruto de transgressões e por isso não merece piedade.

Certamente o nosso leque de escolhas é ampliado quando as identidades dependem de escolhas e quando o corpo pode ser amplamente formatado de modo a produzir a aparência desejada.

É preciso reconhecer, no entanto, que, se a responsabilidade individual pela escolha é igualmente distribuída, os meios para agir de acordo com essa responsabilidade não o são. A liberdade de escolha, mostra Bauman (1998) com toda a razão, é um atributo graduado, e acrescentar liberdade de ação à desigualdade fundamental da condição social, impondo o dever da liberdade sem os recursos que permitem uma escolha verdadeiramente livre, pode ser uma receita para uma vida sem dignidade, repleta de humilhação e autodepreciação.

Guita Grin Debert é professora do Departamento de Antropologia do IFCH/Unicamp, pesquisadora do Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp e do CNPq.

Referências

Bauman, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Camarano, A. e Kanso, S. “O que estão fazendo os jovens que não estudam, não trabalham e não procuram trabalho”. Boletim Mercado de Trabalho – Conjuntura e Análise, nº 53, novembro de 2012.

Debert, G. G. “A dissolução da vida adulta e a juventude como valor”. Horizontes Antropológicos, vol.16  nº 34. Porto Alegre: julho/dez. 2010.

Debert, G. G. A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp, 1999.

Featherstone, M. “O curso da vida: corpo, cultura e imagens do processo de envelhecimento”. In: Debert, G. G. (org.). Antropologia e velhice. Campinas: Unicamp, 1994. p. 7-27. (Textos Didáticos, 13).

Foucault, M. A história da sexualidade 1 – Vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.

Furedi, F. “Não quero ser grande”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 25 jul. 2004. Caderno Mais!, p. 4-7.

Meyrowitz, J. No sense of place: the impact of eletronic media on social behavior. Oxford: Oxford University Press, 1985.

Moody, H. R. “Overview: what is critical gerontology and why is it important?”, In: Cole, T. R. et al. (org.). Voices and visions of aging: toward a critical gerontology. New York: Springer, 1993.

[1] Sobre o tema ver Debert (1999) e Debert (2010).