Movimento estético multifacetado, afrofuturismo busca “ocupar o futuro”

Por Lula Pinto

Moda, música, arquitetura, artes visuais e cinema são algumas das linguagens usadas por uma miríade de artistas a partir da década de 1960. A escritora Octavia Butler notabilizou-se por roteiros nos quais ficção científica, fantasia e realismo mágico servem de anteparo lúdico a uma crítica à discriminação racial. De seus 15 livros, nenhum foi editado no Brasil.

O afrofuturismo pode ser identificado como um dos modos das narrativas de ficção científica. Mas, na realidade, essa é apenas uma das expressões desse movimento estético, que se alimenta ainda de um realismo mágico-animista com cosmologias de inspiração africana e que busca questionar, reimaginar e reinventar eventos históricos do passado, mas também do presente e do futuro. Assim, as produções estéticas associadas ao afrofuturismo estão para além da própria literatura.

Moda, música, arquitetura, artes visuais e cinema são algumas das linguagens usadas por uma miríade de artistas, cujos vínculos podem ser rastreados desde pelo menos a década de 1960. É comum, por exemplo, se identificar o início desse movimento à obra e à personalidade de Sun Ra (pseudônimo usado por Herman Poole Blount). O próprio nome adotado por esse incrível jazzista bem como suas apresentações e composições indicam a conexão entre referências místicas não-ocidentais, elementos pós-humanos e robóticos. Sun Ra também é identificado como filósofo cósmico. Quando era estudante de música, na década de 1930, teve uma experiência alucinatória na qual dialogava com seres extraterrestres na superfície de Saturno e, lá, presenciou um futuro profético para a humanidade.

A projeção de possibilidades tecnofuturísticas a partir de uma matriz africana pós-diáspora negra que deriva dessa história não é exclusiva da imaginação de Sun Ra. Uma outra base fundamental das estéticas afrofuturistas é a obra de Octavia Butler. Filha de uma doméstica e de um engraxate, Butler notabilizou-se por integrar em sua escrita uma crítica à problemática de negros e negras a roteiros nos quais ficção científica, fantasia e realismo mágico servem de anteparo lúdico a uma crítica à discriminação racial.

Butler faleceu em 2006, aos 58 anos. Seus 15 livros (por sinal, nenhum editado no Brasil) e os diversos contos e ensaios formam uma das mais importantes referências do afrofuturismo no que ele tem de crítica, reinterpretação histórica e realismo fantástico.

Ocupar o futuro
O que Butler e outros afrofuturistas propõem, assim, não é fácil: uma reapropriação do futuro, uma recontagem do futuro e de suas narrativas possíveis e fantásticas. Não é somente o passado que pode se apresentar como uma roupa que não nos serve mais – também o futuro desenhado, programado, imaginado e desejado de uma certa forma pode ficar gasto, surrado e, em última instância, inviável. Talvez não seja casual, aliás, que os cenários distópicos sejam tão presentes na narrativa predominante: conduzida por uma lógica (moderna) que vê a natureza como objeto a ser dominado para produzir, o futuro se apresenta como um destino grávido de ameaças: guerras por recursos ou travadas contra máquinas; epidemias geradas por vírus recombinantes; disputas com inteligências artificiais; catástrofes climáticas.

A narrativa hegemônica desse futuro – suas cidades, suas tecnologias, as relações sociais, o corpo e a descorporificação da imaginação – é predominantemente ocidental. Mais ainda: foi escrita por homens brancos integrantes de extratos de classe econômica superior.

A reocupação a que as narrativas futurísticas de autores como Octavia Butler e Samuel Delany se propõem é uma religação com mitologias e valores nos quais a natureza não é mero objeto de expropriação e exploração. Em termos sociológicos, trata-se de uma disposição por descolonizar o futuro.

Essa disposição é evidente na literatura afrofuturista – além dos já citados, é possível ainda lembrar de Nnedi Okorafor,  Kodwo Eshun, John M. Faucette, Nalo Hopkinson, Alondra Nelson, Ishmael Reed, entre muitos outros.

“O afrofuturismo é um movimento importantíssimo. Ele implica em descolonizar o futuro, em reocupar o futuro com modulações e possibilidades não somente não-anglófonas, mas com outras possibilidades para a humanidade”, afirma Jacques Barcia, futurista na Futuring.Today, empresa do Porto Digital, maior parque de tecnologia da informação do Brasil.

A ficção literária e também as expressões do afrofuturismo se espalharam desde a década de 1960 para outras áreas – da música, como já mencionado, para as artes visuais, moda e design. Ainda que de maneira não homogênea, e sem um centro que a alimente, essas expressões começam a se tornar mais conhecidas e incorporadas pelas populações negras em geral e pelos artistas negros em particular.

Uma definição branca?
Entretanto, a concepção do afrofuturismo como um campo estético em que a ficção científica, o realismo fantástico e a crítica histórica dialogam não é consenso e (felizmente) está em disputa. Na verdade, a conceituação original é criticada como uma intepretação espetaculosa da produção estética negra.  Também é controversa a origem do movimento, bem como sua própria designação e as obras fundantes dessas estéticas – que hoje, assim como muitos de seus artistas e obras, passam a transitar, devagar e cada vez mais, no mainstream cultural.

O termo “afrofuturismo” foi cunhado somente em 1993 por Mark Dery, um jornalista e crítico cultural branco, em um ensaio intitulado “Black to the future”. Nesse trabalho, o autor procurava responder a uma questão que ele elenca como fundamental: por que há tão pouca literatura de ficção científica escrita por pessoas negras? É esse contexto do nascimento do termo que o torna tão problemático. Para responder a suas questões, Dery recorre a três intelectuais negros, entrevistando-os: a professora Tricia Rose, o escritor Samuel R. Delany e o crítico cultural Greg Tate.

“Todo o texto, do título às entrevistas, é pensado a partir da indústria cultural dos EUA, no cinema, na literatura, na música. E a definição que surge a partir desse texto está ligada a essa cultura do espetáculo”, diz Kênia Freitas, jornalista, professora e pesquisadora de comunicação dedicada à questão do afrofuturismo. “Porém, termos – ainda mais termos carregados de potência política e estética como afrofuturismo – não são estanques. Nesses mais de 20 anos que sucedem o texto de Dery, a gente percebe uma série de deslocamentos. O principal é que artistas e militantes negras e negros passam não mais a serem pensados externamente, por um crítico branco, como afrofuturistas, mas sim a se pensar internamente a partir dessa expressão. Aí o afrofuturismo ganha outras definições e outros alcances. E surgem questionamentos como esses a respeito da sua origem. Acredito que seja um tensionamento importante para o termo”, explica.

Portanto, é no contexto de supremacia cultural, econômica e filosófica imposta pelo mundo branco, cujos movimentos ficcionais em livros, gibis, filmes e videogames são dominados majoritariamente pela ótica europeia, em que o afrofuturismo é designado e vem sendo redesignado.

Uma questão se impõe para o contexto brasileiro: considerando que somos o país com a maior população negra fora do continente africano (cerca de 106 milhões de pessoas, segundo o Censo 2010, ou 53% da população), qual a relevância ou utilidade que o afrofuturismo tem para as populações afrodescendentes ao sul do Equador?

O contexto implica ainda que os brasileiros negros com idades entre 12 e 18 anos têm três vezes mais chances de serem mortos do que pessoas brancas na mesma faixa etária. Esses dados da Unicef se somam a algumas conclusões do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que indicam que quase 70% das vítimas de homicídio são negros.

Enfrentamento
Ou seja, como o afrofuturismo serve ao contexto de enfrentamento ao racismo no Brasil? “Por dois aspectos importantes. Um: porque o afrofuturismo coloca a experiência negra como central nas narrativas. Isso tem um efeito potente, ainda mais em um país racista como o Brasil em que grande parte das narrativas não trazem nenhuma participação das vivências negras”, responde Kênia Freitas. “Dois: porque o afrofuturismo imagina outras possibilidades de existência para nós negros. Em um país que exclui e mata a juventude negra de forma sistemática, imaginar e construir outros futuros é urgente.”.

Jacques Barcia pensa de forma um pouco diferente. “Desconfio que o afrofuturismo não chegou ao Brasil como movimento e estética”, afirma. “A retomada do afrofuturismo que temos visto tem a ver com a busca de identidades não anglófonas na produção da ficção científica e que se expressa na visibilização de obras e autores hispânicos, asiáticos, sino-americanos, além de autores afrodescendentes”, diz. “Esse processo inclusive acionou uma resistência conservadora nos Estados Unidos. Mas o afrofuturismo ainda não fala ao Brasil ou do Brasil porque é um processo que tem uma certa lentidão para os negros aderirem como produtores. No Brasil, a ficção científica ainda é branca e de classe alta”, afirma.

Distopias desde sempre
As possibilidades de cenários distópicos estão presentes em algumas das narrativas do afrofuturismo. Alguns já fazem parte do cenário corrente nas cidades brasileiras – em particular em locais de desenvolvimento extremamente precário e excludente, como em regiões do interior da Bahia ou do sertão pernambucano. De que maneira narrativas afrofuturistas podem ajudar a recolocar as populações negras desses locais diante da própria história?

Recentemente, Fábio Cabral, escritor afrofuturista brasileiro, escreveu que “afrofuturismo somos nós, pessoas de pele preta. Simples assim. As pessoas negras sempre contaram as suas histórias. Sempre lutaram pelo seu presente, honraram seu passado e projetam o seu futuro. O que ocorreu, em algum momento, é que o pessoal pálido do norte resolveu bagunçar tudo e tomar tudo pra si, dando a impressão de que ninguém faz mais nada além dos pálidos”.

Essa ideia sobre o movimento cultural e estético nega a perspectiva de indústria cultural a partir da qual começou a ser pensado e parece colocar em termos diários e cotidianos uma escrita de futuro e de sobrevivência.

“Essa é uma questão importante entre o que é distopia para alguns e é realidade para tantos outros. A própria definição de afrofuturismo nasce disso: o que era distopia para as narrativas brancas de ficção científica era na verdade a própria experiência negra diaspórica pós escravidão. O Kodwo Eshun, um pensador negro do afrofuturismo, trabalhou muito por aí”, afirma Kênia Freitas.

“Acho que o enfrentamento das próprias histórias acontece quando se passa a produzir as próprias histórias. O afrofuturismo pode ser uma ferramenta, mas é isso: a gente precisa saber das narrativas dos negros e negras do interior da Bahia ou do sertão de Pernambuco pelas histórias que eles mesmos irão produzir”, complementa.

Onde encontrar?
Sim, o afrofuturismo e sua definição estão em disputa. E, ao mesmo tempo, já há um mar de obras a serem exploradas e conhecidas. Um bom ponto de partida é a leitura dos livros de Octavia Butler e Delany, além de ouvir o som de Sun Ra.

Mas um dos melhores guias para entrar no universo afrofuturista é o catálogo de artistas publicado para a Mostra Afrofuturista, que aconteceu em São Paulo em 2015. Lá estão citados alguns artistas e obras brasileiras e é de particular interesse o olhar que um flme como Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014) traz para a discussão. Outros filmes brasileiros de interesse são Bom dia eternidade de Rogério de Moura e o curta de Délio Freire Beatitude (2015).

Visualmente, muito da iconografia do afrofuturismo é comunicada por jovens designers e artistas plásticos, como Keith Piper, Cyrus Cabiru, Thierry Le Goues, Robert Pruitt e mesmo Jean-Michel Basquiat.

Em moda, são impressionantes as criações da estilista Katiuscia Gregoire. São particularmente impactantes as histórias que Victor LaValle produz para quadrinhos. Aliás, há diversos personagens do mundo dos quadrinhos identificados ao afrofuturismo: Bishop (X-Men), Máquina de Guerra (Vingadores), Afro Samurai (mangá), Cyborg (Liga da Justiça), entre outros.

Lula Pinto é jornalista com doutorado em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor-pesquisador do Centro de Ciências Sociais da Universidade Católica de Pernambuco, tem interesse em sociologia da tecnologia, pedagogias subversivas, estéticas e cultura. É um dos fundadores do coletivo Marco Zero Conteúdo.