Marcelo Leite: Cultura científica para combater a desinformação e fortalecer a tomada de decisões de cidadãos

Por Vinícius Nunes Alves

Jornalista defende cobertura de novidades científicas de forma crítica, com princípio de precaução e sem tratá-las como revolução.

(Parte deste material coletado a partir de conversa com Marcelo Leite também foi publicado na revista Ciência Hoje (edição n. 366). “Desmistificando a genômica”, seção Outras Palavras, em  junho de 2020.)

Em plena pandemia de Covid-19, cresceu a cobertura jornalística na área da saúde com enfoque na prevenção, hospitalização, contágio e morte associadas ao novo coronavírus (SARS-CoV-2). Para muitos jornalistas, este período pode ser uma oportunidade fértil para tratar as complexas questões que envolvem a ciência com clareza e postura crítica, sem cair na tentação do sensacionalismo. “O jornalismo científico se esforça por dar o máximo de contextualização, um esforço evidente para ser o mais didático possível. Esse tipo de jornalismo ajuda a melhorar a cultura científica e talvez ajude as pessoas a entenderem melhor as novidades [científicas], mas, claro, isso não substitui a educação formal”, comenta Marcelo Leite, jornalista há mais de três décadas, e colunista de ciência e ambiente da Folha de S. Paulo.

Leite é formado em jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP) e se especializou na cobertura de ciência, área que o fascina desde a infância, e se dedica especialmente à biologia. No doutorado em ciências sociais defendido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele se debruçou sobre as questões de hegemonia e informação do genoma humano, que originaram o livro Promessas do Genoma (Unesp, 2007).  A obra faz uma discussão crítica em torno do Projeto Genoma Humano, um empreendimento coletivo e histórico de vários países que impulsionou a participação do Brasil na ciência internacional, e sobre a responsabilidade dos próprios cientistas contribuírem para reforçar uma visão utilitarista do genoma.     

Mas para o jornalista, sempre é preciso dosar as fronteiras entre realidade e fantasia acerca de projetos mastodônticos, inclusive para ter noção e um certo posicionamento sobre qual é o melhor custo-benefício no financiamento público de ciência e tecnologia.

Escritor ativo, Marcelo Leite também é autor de outros livros como Ciência – Use com Cuidado (Unicamp, 2008), e é detentor de diversos prêmios brasileiros de jornalismo. Ele afirma que cada meio de comunicação tem suas vantagens e desvantagens, mas todos eles – televisão, vídeo, cinema ou documentário – vêm para somar esforços com o jornalismo, no sentido de apresentar e explicar conceitos e mecanismos da ciência considerados difíceis de entender. A melhor compreensão da ciência passa por sua valorização como setor fundamental para a sociedade, acredita Leite.

Nesta entrevista concedida ao projeto Lab-19 da ComCiência, por telefone, Marcelo trata de alguns papéis e potencialidades do bom jornalismo de ciência, sobre a importância e o desafio de se ter uma boa cultura geral, o que inclui uma noção boa e diversificada sobre ciência.   

Você já analisou como a genômica é divulgada pelos cientistas e pela mídia, e como ela é compreendida e usada pela população.  Quais suas principais constatações a este respeito?

Uma batalha minha, durante pelo menos uma década, foi combater a noção de senso comum de que o DNA e o gene determinam tudo. Isso está inclusive na linguagem popular. Por exemplo, as pessoas falam “está no DNA do Bolsonaro as fake news”, ou “está no DNA do PT a corrupção”,… enfim o uso dessa figura de linguagem indica que as pessoas ainda permanecem com essa noção simplista de que um gene determina uma característica específica. Hoje, qualquer pessoa que estuda um pouquinho de genômica, vai perceber que os genes atuam muito em conjunto e até o mesmo gene pode ter funções biológicas diferentes. Publiquei minha tese de doutorado em formato de livro pela editora da Unesp que é chamado Promessas do genoma para apontar a responsabilidade dos próprios geneticistas e pesquisadores da genômica de propagar essas visões deterministas e erradas sobre o funcionamento do genoma. Eles foram os primeiros a cunhar a metáfora do programa de computador, livro da vida, código da vida, etc, que ajudaram a propagar essa noção determinista.

Os cientistas da genética e da genômica, talvez para melhorarem a imagem das suas áreas como medicinas de precisão ou medicinas individualizadas sob medida, ou mesmo para venderem melhor seu peixe, acabaram ajudando a propagar a noção determinista. Acho que já passou da hora de combater com maior seriedade essa noção simplista e determinista de que “um gene, uma doença”, pois isso, só acontece com doenças raras. No meio científico o determinismo genético felizmente já está enfraquecendo, mas no senso comum ela ainda está plenamente funcionando. Eu, particularmente, gosto da imagem do genoma como um ecossistema, onde se mexemos em uma parte que queremos, também podemos mexer ou afetar o funcionamento de outras partes não pretendidas.

Como podemos equilibrar as expectativas sobre as novidades científicas?

Tenho uma certa simpatia pela imaginação fértil dos cientistas, acho que isso é um pouco o que move a ciência. Ou seja, essas hipóteses, esses conceitos bem doidos que de vez em quando aparecem, bem criativos e etc. Agora, como jornalistas de ciência, o nosso papel é de justamente olhar e dizer o quanto tem de fantasia, o quanto tem de realidade, e o quanto esses cientistas, ao formularem uma fantasia, também não acabam fantasiando os efeitos não pretendidos, os riscos envolvidos, e as possíveis consequências danosas. O ceticismo do bom jornalismo de ciência segue o princípio da precaução e não trata qualquer novidade científica como uma revolução da ciência.

 

O sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa (2000) que causa doença em plantações de citrus, colocou o Brasil na capa da prestigiosa revista científica Nature e na ciência mundial. Imagem: reprodução Nature
DNA e a tecnologia genética prometem um renovado e superdotado indivíduo. A percepção e a comunicação sobre a genômica até hoje são superestimadas sem considerar influências ambientais, riscos e efeitos não pretendidos. Imagem: Pixabay.

A ciência é só um dos campos de conhecimento que faz parte da vida e da cultura geral  das pessoas em maior ou menor grau. Mesmo em torno de um único tema que afeta diretamente a sociedade, como a pandemia de Covid-19, precisamos conhecer e nos posicionar com a ponderação e seriedade que a situação exige. Para você, acessar e cultivar uma cultura científica pode contribuir para uma cidadania mais ativa?

 

Faz parte da vida democrática você ter uma cultura científica que te permita participar das decisões. Mas não só científica, por exemplo, acho importante que as pessoas na sua cultura geral tenham uma noção da história, da origem e dos fundamentos das religiões. Não quero dizer que todo mundo precisa fazer a análise da bíblia, do alcorão, do livro dos mortos, etc, isso [os] especialistas é que vão fazer. Agora, para você atuar na sociedade e identificar opiniões baseadas em fundamentalismos religiosos, é importante que você tenha uma noção de religiões, quais sãos as doutrinas, qual é a diferença entre um evangélico tradicional e um evangélico neopentecostal, pois essas coisas fazem parte da cultura. Na política brasileira, por exemplo, temos os neopentecostais que têm desempenhado um papel. A cultura geral obviamente também inclui a cultura científica. Por exemplo, faz parte dos requisitos da cidadania que você tenha alguma noção sobre genômica, sobre células-tronco, sobre reprodução assistida, sobre biotecnologia, etc para não ficar sendo só uma marionete na mão de quem manipula melhor esses assuntos. Ou até mesmo ser marionete de pessoas poderosas que abafam estudos científicos para poderem continuar explorando questões politicamente. Podemos votar em candidatos que eventualmente têm propostas em ciência e vamos avaliar as propostas deles com base em o quê, se não for principalmente com conhecimento próprio?

Mas é complicado em um país como o Brasil, onde a educação básica é ruim e a educação científica pior ainda, muitas pessoas caem em desinformação e não entendem a natureza e o funcionamento da ciência. Por exemplo, usando um tema que tenho trabalhado ultimamente, eu falo assim: “as drogas psicodélicas, como LSD, não criam dependência química”, que é um fato comprovado cientificamente, e o cara vira para você e fala: “Não, mas essa é a sua opinião”. Como assim opinião? Enquanto está válido pela comunidade científica, não é só a minha opinião. As pessoas têm que pensar com sua própria cabeça e, para isso, elas precisam ter uma base boa, não o conhecimento profundo e técnico do especialista. Aliás, nenhum especialista tem conhecimento sobre tudo, por exemplo, um especialista de genética conhece muito essa área, mas não conhece bem taxonomia. Ou outro especialista conhece bem taxonomia mas não conhece bioquímica… Eu digo buscar ter uma boa cultura geral para saber as fontes confiáveis de informação, saber interpretá-las e, também, para tomar decisões como cidadão. Só assim temos chance de falar sobre assuntos da opinião pública com base em evidências e relações de informações, e não só com base em inclinações pessoais e doutrinas religiosas como muita gente acaba fazendo.

Lab-19, projeto de divulgação científica de um grupo de alunos do curso de especialização em jornalismo científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp), engajados, como tantos, em contribuir para a disseminação de informações corretas e confiáveis sobre a epidemia de Covid-19 para públicos diversos.