Por Laura Segovia Tercic, Mariana Hafiz e Tainá Scartezini
Apesar disso, modelos matemáticos e epidemiológicos são a melhor forma de entender as futuras dimensões da pandemia
Pesquisadores brasileiros trabalham em várias frentes tentando prever o comportamento da Covid-19 no país por meio de técnicas estatísticas e modelos matemáticos. No entanto, com as atuais imprecisões e lacunas nos dados oficiais sobre a doença, especialistas alertam que é impossível dizer com certeza quando será o pico da epidemia ou quando e como ocorrerá a flexibilização do isolamento social. Eles apontam para a necessidade de melhorias na qualidade das informações disponíveis como caminho para maior precisão nas projeções.
“Quanto piores forem os dados, mais nuances têm as estimativas e maior é a chance de haver ruído na comunicação disso, ainda mais na era da economia da atenção, com um público imediatista, assustado e não raro de pouca bagagem matemática para entender probabilidade e intervalos de confiança”, diz o jornalista de dados Marcelo Soares e fundador da consultoria Lagom Data. Ainda assim, ele enfatiza que as projeções continuam sendo a melhor alternativa para auxiliar o poder público a se planejar ações no pior cenário.
Soares reitera que todo modelo – e isso inclui os modelos epidemiológicos – permite vários cenários dependendo dos parâmetros informados, como o número máximo de pessoas infectadas, o índice de mortalidade da doença, entre outros. “Isso é muito difícil de explicar de maneira simples e rápida para o público geral, que quer ter imediatamente uma certeza, um número, um sim ou um não”, diz Marcelo sobre modelos e as incertezas inerentes ao processo científico.
Mundialmente, devido a um dos relatórios que o Imperial College of London (Reino Unido) vem divulgando desde o início da pandemia, houve uma mudança radical nas ações de combate à Covid-19 no comportamento de líderes mundiais dos EUA e Europa. O estudo foi publicado na revista científica The Lancet em 16 de março e traçou diferentes cenários, considerando a presença e ausência de medidas de restrição e de distanciamento social, com impactos que poderiam causar cerca de 2 milhões de mortes apenas nos EUA caso nenhuma providência fosse tomada.
Roberto Kraenkel, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp), diz que há dois tipos principais de projeções que o grupo do Imperial College fez. Um é baseado em um modelo com população digital do tamanho da população do país, sob a qual é simulada a epidemia, como normalmente se usa para epidemias de influenza. “Já um segundo trabalho da Imperial, do mesmo grupo, usa modelagem epidemiológica mais tradicional, baseada em equações diferenciais, e obtém resultados semelhantes”, explica. Dentre os modelos usados pela instituição inglesa, Kraenkel afirma que apenas o segundo tipo vem sendo trabalhado no Brasil, como tem sido feito pelo ObservatórioCovid-19-BR, grupo de pesquisa que reúne pesquisadores das três universidades públicas paulistas, UFABC e alguns de universidades internacionais. “É um órgão informal, trabalhamos com quem se interessar”, conta Roberto Kraenkel.
Ciência brasileira nas projeções para a Covid-19
O Observatório Covid-19-Br tem acesso a dados desagregados sobre a pandemia, obtidos através das secretarias de saúde de prefeituras, e publica frequentemente em seu site informações sobre a propagação do vírus no país com base em modelos epidemiológicos, estatísticos (usando técnicas de nowcasting) e de redes. O objetivo é a visualização e conscientização da situação, a partir de um ponto de vista científico, para o público geral e para as autoridades responsáveis por ações e políticas públicas relacionadas ao controle da pandemia no Brasil, que já vêm incluindo as análises do Observatório em seus boletins epidemiológicos oficiais.
Legenda: Números de óbitos por Covid-19 oficiais versus estimados por técnica estatística Nowcasting que considera atrasos de notificação. Crédito: ObservatórioCovid-19BR
Kraenkel revela que no começo da epidemia, a mídia e órgãos governamentais eram presa fácil para pseudo-cientistas, com médicos e engenheiros “redescobrindo a roda da epidemiologia”, mas que, com o passar do tempo, parecem estar se acercando de grupos mais bem embasados.
Para Marcelo Soares, o risco de assumir modelos como os projetados pelo Imperial College para planejar ações futuras no Brasil é que os dados utilizados no Brasil ainda têm muitas lacunas e são muito agregados, ou seja, são informados somente os totais por Estado. “A qualidade de uma projeção depende fundamentalmente da qualidade dos dados. Quanto mais lacunas na entrada, maior a margem de erro na saída”, explica. Os dados que o Ministério da Saúde utiliza para produzir os boletins epidemiológicos vêm das Secretarias de Saúde, que toda tarde preenchem um formulário com os dados diários.
Outro agravante é a extensão territorial do Brasil e as diferenças sociais, econômicas, demográficas e climáticas por Estado, que tornam difícil a comparação com modelos europeus, como os do Imperial College. Marcelo explica que dados que considerem os diferentes climas, regiões de fronteira, densidades demográficas, desigualdade na concentração de hospitais por região e de recursos disponíveis nesses hospitais oferecem informações necessárias para análise mais detalhada.
Apesar das dificuldades causadas pela qualidade dos dados disponíveis e pela urgência nas demandas dos órgãos oficiais e da mídia, o grupo do Observatório-Covid19-Br mantém o rigor científico em suas produções. Entre os resultados dos esforços do grupo do ObservatórioCovid-19-Br estão projeções a curto prazo e análise de rotas entre os estados por onde a epidemia se espalha. “Um subgrupo se dedica a análise de vulnerabilidade em São Paulo e no Nordeste, usando teoria de redes”, esclarece Kraenkel. O pesquisador afirma que o represamento de exames passou a interferir demasiadamente nos cálculos. A falta de testes é um dos principais motivos para o evento conhecido na epidemiologia como subnotificação, quando há mais pessoas acometidas por um determinada enfermidade do que consta nos registros oficiais.
Segundo o pesquisador Roberto Kraenkel, as modelagens do ObservatórioCovid-19-Br revelam a importância de se continuar fazendo tais estudos e simulações que, a curto prazo, estão influenciando os meios de comunicação e algumas instâncias de governo e, a longo prazo, devem dar curso a discussões de uma política nacional de resposta. “Há poucos grupos no Brasil, e estão dispersos; seria o caso de se pensar em como ter mais pesquisadores na área de modelagem, e como fazer com que as secretarias estaduais e municipais de saúde, além do Ministério da Saúde, dialoguem com esses grupos no futuro”, conclui.
Lab-19 é uma produção dos alunos e alunas da Oficina de Jornalismo Científico II do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor-Nudecri/IEL/IA, da Unicamp, para cobrir a pandemia da Covid-19. Os textos desta série extraordinária são editados por Germana Barata e Sabine Righetti, professoras do curso.