João Lúcio de Azevedo: O microrganismo é uma ferramenta

Por Maria Letícia Bonatelli

Professor traça a trajetória da genética de microrganismos no Brasil – do começo tímido à referência em áreas aplicadas

João Lúcio de Azevedo é professor do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq/USP) e foi um dos poucos agraciados com o título de professor emérito pela instituição. Tal reconhecimento reflete a contribuição de Azevedo na genética de microrganismos. Em entrevista, ele conta como essa área surgiu e se estabeleceu, e como o Brasil pode ser considerado referência na pesquisa aplicada.

Você se formou em engenharia agronômica na Esalq/USP e logo se tornou professor na mesma instituição. Você já começou trabalhando com genética de microrganismo?

Em 1960, Juscelino Kubitschek montou uma série de institutos no Brasil. E como estava privilegiando a agricultura, escolheu a Esalq e o professor Friedrich Gustav Brieger para ser coordenador do Instituto de Genética. O professor Brieger começou a escolher estudantes de graduação para trabalhar com ele e eu fui um deles. Ele sempre dizia que tinha que iniciar várias áreas de pesquisa que não existiam ou que eram muito preliminares no Brasil, e uma dessas áreas era a genética de microrganismos.

Por que investir na genética de microrganismos?

A genética médica e humana já existia no Brasil, mas o professor Brieger dizia que o estudo com microrganismos seria muito mais simples e fazia uma comparação: o tempo de geração da espécie humana é de 20 anos, mas o da bactéria é 20 minutos, o do fungo é 1 hora, então as pesquisas seriam muito mais rápidas. Por isso, ele achava importante iniciar um núcleo de genética de microrganismos no Brasil. E para isso, chamou muitas pessoas do exterior para virem dar cursos.

Quem foram essas pessoas?

Primeiro foi M. Demereck, um iugoslavo que estava nos Estados Unidos. Ele deu várias palestras, mas era mais da área médica, trabalhava com resistência de microrganismos a antibióticos. Ele sugeriu que viesse o Elias Balbinder, que trabalhava nos Estados Unidos com ele. Balbinder passou meses aqui, deu um curso prático e o bom era que ele falava espanhol e, na época, ninguém sabia falar inglês! Três alunos fizeram o curso, eu, a Rahme Nelly Neder e o Luiz Hildebrando Pereira da Silva. Logo depois, veio o professor Joseph Alan Roper, da Universidade de Sheffield, na Inglaterra. Roper me escolheu para ir à Inglaterra e fiquei lá um ano e meio aprendendo diversas técnicas que focavam no estudo do fungo Aspergillus sp.

E quando voltou ao Brasil, qual era o cenário de pesquisa?

Estava começando a pós-graduação no Departamento de Genética. Comecei as pesquisas com o Aspergillus sp. Depois de algum tempo, percebi que esse fungo era muito bom para ensinar, como objeto de estudo na pós-graduação, mas que não tinha importância no Brasil. E, pensando nisso, começamos então a trabalhar com a genética de microrganismos voltada para a área agrícola. Primeiro, com doenças de plantas, depois com controle biológico e, finalmente, com microrganismos endofíticos, aqueles que vivem na planta e não provocam nenhuma doença.

Depois, houve uma expansão dessa área no Brasil, certo?

Em 1973 foi realizada a primeira “Reunião de genética de microrganismo” no Brasil, em Piracicaba. A ideia era ampliar e difundir a pesquisa e ensino da genética de microrganismos no país. Quem cuidou desse curso por muitos anos foi a professora Aline Aparecida Pizzirani-Kleiner. Essas reuniões começaram com 7, 10 pessoas, e depois passou para 300. Por fim, começaram a ser oferecidas juntamente com a Sociedade Brasileira de Genética, durante os congressos. Hoje, é realizada de dois em dois anos.

Esse foi o início da genética de microrganismos no país?

Sim, e tem até uma história boa sobre isso. Lá pelo início da década de 1970, estávamos eu, Sérgio Olavo Pinto da Costa e Darcy Fontoura de Almeida e só nós fazíamos genética de microrganismos no Brasil, não tinha praticamente mais ninguém. Estávamos participando de uma reunião da Sociedade Brasileira de Genética, em Brasília e, quando fomos almoçar, fomos no fusca do Darcy e ele corria igual um doido. Então o Sérgio Olavo falou “Para, para! Escuta, você vai acabar com a genética de microrganismos no país!”. Depois dessa, ficamos conhecidos como a “trinca do fusca”.

Como avalia a situação da genética de microrganismos no país?

Hoje, a genética de microrganismos está estabilizada no país. Na verdade, não existe mais tanto essa divisão entre as áreas de genética de planta, animal ou de microrganismo, é como se fosse uma coisa só. Porque todas usam microrganismo. Você cria uma planta transgênica e acaba usando um microrganismo no processo. Faz uma modificação genética animal e acaba tendo algum processo que usa o microrganismo também. Hoje em dia, o microrganismo pode ser visto como uma ferramenta. É claro que tem muito estudo importante sobre genética de microrganismos, principalmente na área médica, mas as áreas se conversam mais.

Você considera o Brasil como um país de referência nessa área?

O Brasil é um país de referência em genética quando você pensa em algo mais aplicado como, por exemplo, a descoberta da relação do zika vírus com a microcefalia, ou no controle biológico de pragas na agricultura. Mas na parte de desenvolvimento de novas técnicas na área de genética de microrganismos, não somos referência. Usamos essas tecnologias, mas não desenvolvemos essa ciência mais de ponta.

Qual o futuro dessa área?

Acredito que a área vá se desenvolver mais no sentido de explorar a diversidade dos microrganismos, principalmente pensando na diversidade que deve existir no Brasil. Mas é difícil, ninguém vê o microrganismo, não existe um levantamento disso. O caminho será usar essa diversidade em conjunção com a microbiologia, a genética e a biotecnologia. Por exemplo, quando alguém for realizar o melhoramento de uma planta, não vai olhar só para ela, mas também pensar na relação microrganismo-planta. E, com isso, os pesquisadores vão conseguir um avanço na questão ecológica, uma vez que poderia possibilitar o uso de menos adubo, menos pesticida ou herbicida. Outro avanço seria no sentido de produção industrial, procurar fungos e bactérias que produzem as mais diversas enzimas, uma área ainda pouco explorada.

Maria Letícia Bonatelli é formada em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em ciências (USP). É aluna do curso de jornalismo científico do Labjor e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).