Investimentos públicos, dados privatizados

Como uma orquestra de atores privados e públicos, do interior de São Paulo até o Vale do Silício, monitora dados de deslocamento no transporte público ao mesmo tempo em que nega informações à sociedade

Por Camila Montagner

O consórcio de empresas de transportes de Campinas (SP) recebeu, só em 2016, R$ 95 milhões em subsídios. A sociedade poderia fiscalizar, por meio de tecnologia, a prestação desses serviços, sobre os qual as reclamações se amontoam. Por falta de transparência do sistema, não é o que acontece. Informações que são facilmente disponibilizadas em parcerias com empresas privadas não são abertas ao público. Dados de localização dos veículos e de seus passageiros são apropriados por um par de atores corporativos, enquanto a sociedade civil vê barrados os seus esforços de fiscalização democrática.

Desde 2015 os ônibus públicos de Campinas contam com o sistema AVL (sigla em inglês para Localização Automática de Veículos), que envia informações de localização a cada meio minuto para servidores na internet. Sistemas como esse podem servir a diversos aspectos, seja ajudando a administração a gerir o sistema ou pela população, para planejar suas viagens.

O sistema AVL foi implantado com recursos da Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Campinas (Transurc) por uma empresa contratada por ela, a Cittati. Na ocasião, foi divulgado pela Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec) que a implantação do sistema custou à Transurc R$ 4,7 milhões. Mas o equipamento faz parte de um acordo de comodato – continua pertencendo à Cittati, que recebe um pagamento mensal pela cessão.

O equipamento AVL, segundo o gerente de produto da Cittati, Igor Mosseri, foi configurado para o sistema da empresa de tecnologia. Mosseri diz que a disponibilização dos dados desse sistema para auditoria externa depende da autorização da Transurc, já que a empresa foi contratada diretamente pela associação. Já a Transurc alega que é uma associação privada, e se nega a comentar seus contratos com outras empresas.

Além do sistema AVL, a contratação da Cittati pela Transurc também inclui a operação do GOOL System – um software de monitoramento de frotas (e motoristas) em tempo real que promete aumentar a eficiência operacional das empresas de ônibus – e o CittaMobi, um aplicativo de celular que extrai a localização do usuário e calcula uma previsão de chegada do veículo do transporte público mais próximo que circula na linha escolhida.

Ainda que a Emdec não faça parte do contrato, o Núcleo de Monitoramento de Transporte (NUMT) foi montado dentro de sua sede, com o investimento de R$ 300 mil, também proveniente da Transurc. A operação do núcleo teve início em 2015, quando foi anunciada em conjunto com a implantação do AVL, em um release que afirma que “seis profissionais da Emdec acompanham a operação e o cumprimento das ordens de serviço pelas 206 linhas municipais”.

Segundo Mosseri, os dois núcleos de monitoramento – o que está instalado dentro da Transurc e o que está instalado na Emdec – operam versões diferentes do GOOL System. “Quando a Emdec cria um quadro horário, que é como a gente chama uma programação horária, ela vai falar: a linha tem esse tracejado e tem essas viagens. Ela pensa só nas viagens, não tem que pensar a que horas o motorista vai almoçar. A empresa [concessionária] que tem o motorista como funcionário que tem que pensar nisso, em como vai ser a programação. Há algumas diferenças”.

A partir das configurações do software, a Cittati – que é uma empresa de tecnologia que se propõe a “aumentar a eficiência e reduzir custos” da operação das concessionárias de ônibus – estaria impondo, em nome da Transurc, limites e condições de acesso às informações sobre o transporte público.

Pelo menos alguns desses limites se aplicam inclusive à Emdec. Segundo Mosseri, para ter acesso a informações de viagens realizadas há mais de seis meses, a Emdec precisa fazer uma solicitação para obter a liberação da Cittati. A Cittati, por sua vez, contratou pelo menos outras duas empresas de armazenamento para guardar essas informações – a Amazon, nos EUA, e a Equinix, em Alphaville.

Entre o segundo semestre de 2014 e o fim de 2015, 1,2 mil cargos de cobrador (aproximadamente 75% do total) foram extintos do sistema do transporte público municipal. Mesmo com a redução expressiva no número de funcionários na folha de pagamento, em janeiro de 2016 a tarifa subiu de R$ 3,50 para R$ 3,80, ainda que o ano tenha registrado um recorde no subsídio público. Desde janeiro de 2017 o valor pago pelo passageiro é de R$ 4,50.  Se a promessa de redução de custos de operação feita pela Cittati chegou a se concretizar, seu impacto não chegou aos cofres públicos nem ao usuário do serviço de transporte municipal.

Fiscalização bloqueada

Em 2015, o Tribunal de Contas do Estado (TCE replica watches) anulou a concorrência do transporte público campineiro realizada em 2005, com prazo de vigência de 15 anos. Na tentativa de estabelecer bases mais rigorosas para essa concessão, a Rede Minha Campinas criou a campanha “Quanto melhor a licitação, melhor o busão!”. A ideia era pressionar o secretário municipal de transportes a incluir na licitação critérios que permitissem o controle social. Uma das reivindicações do grupo é um sistema de dados abertos para monitoramento por GPS, algo que permitisse aos cidadãos saber a localização de todos os ônibus simultaneamente, em tempo real.

O co-fundador da Rede, André Bordignon, explica que o objetivo é verificar se os pontos da contratação pública são seguidos. “O ponto é fiscalizar se os 1,2 mil ônibus previstos em contrato estão rodando, considerando que tem mais no horário pico e tudo mais. Não forneceram esses dados alegando problema de segurança”.

A justificativa para negar a abertura dos dados do transporte público de Campinas contrasta com a postura de outras administrações municipais, como a de São Paulo, por exemplo, que possui uma base de dados aberta com informações em tempo real do transporte público. Isso possibilita até mesmo a criação de plataformas digitais de divulgação semelhantes ao próprio CittaMobi.

Facilidades para a Google Transit

Dados que poderiam servir para a fiscalização cidadã, negados a uma entidade civil, são, no entanto, liberados para a Google Transit, por meio de um acordo firmado em junho.

No release divulgado sobre a “parceria” consta que tanto a Emdec quanto a Transurc são parte da operação, como se formassem um consórcio. Ao ser procurada para se posicionar a respeito do assunto, a assessoria de comunicação da Transurc se recusou a comentar a relação com os parceiros e as vantagens que obtém com os subprodutos da operação da qual é concessionária. A Emdec também foi questionada, mas não respondeu até o fechamento da matéria; e o gerente de produto da Cittati não respondeu à solicitação sobre a contrapartida recebida da Google Transit.

“Faz bastante tempo que a gente vem trabalhando nessa parceria. A Google Transit, na verdade, procurou a Cittati. Eles têm muitos projetos de levar informação em larga escala. Só que eles têm muita dificuldade em chegar em uma informação mais local. A gente tem essa informação, algo que é muito difícil para eles. Temos um GPS dentro de cada carro, temos um sistema que engloba todas as regras de negócio daquele lugar que é operado pelas equipes das garagens. Cada garagem tem um sistema 24 horas para garantir que a informação seja constante. Esse nível de informação é muito valioso para eles”, diz Mosseri.

O formato cedido ao Google pela Cittati, segundo Mosseri, é o GTFS em tempo real, uma especificação que define um padrão de troca de informações de transporte. É também o formato disponibilizado pela São Paulo Transportes (SPTrans), que é responsável pela gestão do serviço público de ônibus paulistano operado por 16 consórcios, na interface de programação de aplicativos (API) do Olho Vivo, um sistema de monitoramento do transporte.

O formato GTFS em tempo real comporta o repasse de informações sobre atualizações de viagem como atrasos e cancelamentos; alertas de serviço em caso de alterações no funcionamento do sistema; e posições dos veículos, incluindo localização e nível de congestionamento. Ao fornecer informações de localização atreladas ao horário de geração desses dados, em tese, seria possível saber se nos horários de pico o número máximo de veículos previstos no contrato de concessão estaria realmente em circulação.

Em um site destinado aos seus “parceiros”, a Google Transit dá especificações e instruções com dicas de código e de programação para desenvolvedores formatarem seus dados para fornecer à empresa o que ela chama de “atualizações dinâmicas”.

Como o GTFS é, por princípio, um padrão estático, a sua extensão “tempo real”, segundo a Google Transit, foi formulada por “desenvolvedores do transporte público” em conjunto com a empresa americana. Apesar de não exibir a localização dos veículos para os usuários do aplicativo Google Maps, a empresa dirige aos seus potenciais fornecedores de dados o seguinte aviso: “recomendamos que você compartilhe esses dados, já que pretendemos adicionar esse recurso no futuro”. Procurada pela reportagem, a empresa não quis comentar sobre os termos de seu acordo com a Cittati.

Quando questionado sobre o formato cedido para o Google, Mosseri respondeu que “salvo engano, GTFS é o que a gente faz com o Google, mas não é aberto, é específico para o Google. Hoje ele consome GTFS, só que esse serviço não é aberto para os outros”. No site da Google Transit destinado aos parceiros não há menção a nenhum outro formato possível para fornecimento de informações além do GTFS estático e sua extensão para transferências de dados em tempo real.

Antes do acordo com a Google Transit, a Cittati tinha a vantagem de ser a única habilitada a fornecer uma previsão de chegada aos usuários do transporte público com base nos dados provenientes do sistema AVL (alguns aplicativos usam, por exemplo, a tabela de horários previstos para a realização das viagens). Com a parceria, a empresa divide a vantagem dessa exclusividade para o Google, que realiza um outro tipo de cálculo, a partir das informações de localização dos ônibus em tempo real, mas o histórico de viagens e horários de partida, por exemplo, continua nas mãos da empresa brasileira.

Essa informação, que poderia servir a propósitos de interesse público – como comparar o percentual de viagens previstas que foram de fato realizadas ao longo dos anos para identificar a necessidade de um corredor de ônibus em determinada região que atravessa um momento de intensificação de tráfego, por exemplo – hoje se encontra na mão de atores privados, que têm como principal interesse usar esse tipo de informação para alimentar atualizações de seus próprios softwares e realizar acordos privados opacos a partir dos subprodutos da operação de um serviço municipal.

Liberdade vantajosa

A Google Transit oferece atualmente na plataforma Google Maps um serviço parecido com aquele disponibilizado pelo próprio CittaMobi, ou seja, uma previsão de chegada do veículo mais próximo circulando na linha selecionada pelo usuário. A Cittati acaba funcionando como uma atravessadora que entrega as informações para a Google Transit, em um formato que foi reclamado e negado a uma entidade civil local.

A desregulamentação desses agentes permite que os mesmos se coloquem, quando convém, como executores do aprimoramento de um serviço público e, ao mesmo tempo, reivindiquem sigilo de negócios e reclamem sua natureza de ator privado para proteger seus próprios interesses.

A Cittati teve origem em uma garagem de concessionária do transporte público do Recife, e é uma empresa de tecnologia criada por um grupo de empresas de ônibus. Chegou a Campinas justamente porque um outro grupo empresarial – que atua em Guarulhos e contratou os seus serviços primeiramente para a cidade da região metropolitana de São Paulo – também responde pela operação de coletivos do sistema de Campinas.

Assim como as informações fornecidas à Google Transit são consideradas algo “muito valioso”, a Cittati também é detentora de outros dados importantes. O cálculo da previsão de chegada no aplicativo CittaMobi, por exemplo, é feito mediante a cessão da localização do celular, e a extração dessa informação se dá independente de o usuário embarcar ou não. Além disso, os termos de uso estabelecem que todas as informações veiculadas no aplicativo – o que inclui as reclamações de usuários a respeito do serviço de transporte – são de propriedade da empresa.

A atuação de um agente desregulado como a Cittati, mantendo relações opacas com grandes empresas privadas como a Google Transit, a partir de um sistema com dados fechados a respeito de um serviço de transporte público de massa, dá a ela a titularidade sobre a rentável possibilidade de extrair, analisar e repassar dados sensíveis da parte significativa da população, que depende desse serviço para se locomover.

Cerca de 224 mil pessoas são transportadas por dia pelo sistema de transporte público de Campinas. Em 2016, a Emdec encomendou ao professor Miguel Juan Bacic, do Núcleo de Economia Social, Regional e Urbana (NESUR) da Unicamp um estudo que apontou três problemas na operação do transporte público da cidade. Um deles é a falta de clareza nos dados gerenciais econômicos das empresas, que não isola a atuação no transporte público do município das demais atividades empresariais das concessionárias – o que poderia ser resolvido com a constituição de uma sociedade de propósito específico.

Outros dois pontos dizem respeito especificamente aos fatores que comprometem a submissão do sistema de transporte coletivo a uma auditoria por parte do poder público: a primeira diz respeito ao fato de a bilhetagem também ser operada pela Transurc e a segunda aleta a necessidade de a Emdec desenvolver um software de gestão que permita acesso em tempo real a todas as informações gerenciais das operações do transporte coletivo realizadas pelas empresas concessionárias. A recomendação é que os parâmetros do contrato sejam revisados a cada três anos, mas a licitação que substituirá aquela anulada em 2015 pelo TCE ainda não foi concluída.

Camila Montagner é jornalista, mestranda em divulgação científica e cultural pelo Labjor/Unicamp e jornalista da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Escreve sobre cidades, tecnologia e cultura.