A flexibilidade não está a favor dos trabalhadores

Por Paula Drummond de Castro

Se a ideia de flexibilidade no trabalho pode soar moderna e libertadora para alguns, a Sadi Dal Rosso não engana. Para o autor de O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor (Coleção Mundo do Trabalho, Ed. Boitempo), o sociólogo, filósofo e professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Sadi Dal Rosso, o contrário da rigidez das horas de trabalho é uma nova roupagem da distribuição das horas laborais, porém sem direitos. A “uberização” do trabalho, o trabalho online, o freela fixo, o pejota são algumas das novas conformações da flexibilidade que visa atender, sobretudo às necessidades do capital, e não da força de trabalho, que vive cada vez mais o desmoronamento das fronteiras entre horas de trabalho e não trabalho. Para Dal Rosso é uma ilusão pensar que a distribuição flexível das horas de trabalho está nas mãos do trabalhador.

O livro foi lançado em 2017, momento em que se aprovou a reforma trabalhista, quando se retiram direitos trabalhistas conquistados em troca da promessa de criação de empregos. Todavia, o Brasil completou um ano de reforma trabalhista dia 11 de novembro e não se observou a geração de empregos esperados. A medida elevou a contratação de temporários, terceirizados e intermitentes, enfraqueceu sindicatos e fez cair o número de ações na Justiça. Caminhamos para o aumento da flexibilidade do labor, contudo, sem os direitos adquiridos a duras penas ao longo do século XX.

O trabalho humano, submetido ao “império do tempo” (p.9), é dividido em tempo trabalhado e tempos não trabalhados. A essência da natureza da flexibilidade de horas de trabalho foi inventada, segundo o sociólogo, pelos trabalhadores livres, como aqueles entre tribos indígenas, camponeses, pequenos produtores rurais e urbanos, que sempre decidiram em que momento trabalhar, pois simplesmente eram detentores da sua própria autonomia de decisão. Todavia, com a escravidão, a servidão e mais modernamente o assalariado, a autonomia de decisão que passou de suas mãos para os donos de escravos, senhores e empregadores de assalariados. “E com isso aumentando a racionalização dos processos. O trabalho passou então a ser organizado de forma repetitiva e rígida, dia a dia e com direção extremamente longas.” (p.21). Os direitos sociais foram então longamente construídos por movimentos sociais desde o fim da segunda guerra mundial.

O sentido de flexibilidade apresentado na obra de Dal Rosso não é único. Remete a ideia de maleável, adaptável, mas também o que se dobra e se curva. Em outras palavras, pode significar variação no horário de entrada e saída, fazer horas extras, aceitar contratos de trabalho sem direitos sociais, trabalhar fora do horário comercial, tempo parcial ou ainda trabalho de curta duração. Uma definição ampla seria tudo aquilo que não for o trabalho-padrão.

A distribuição da equação binária trabalho e não trabalho ao longo de um intervalo de tempo já se representou em diferentes fórmulas e atualmente, o trabalho regular padrão no Brasil acomoda de 40-44h de trabalho, geralmente divididos em oito horas diárias. Todavia, a flexibilidade sempre caminhou ao lado do trabalho regular. As discussões acerca da flexibilização do trabalho ganham força em tempos de crise.

Horas extras, banco de horas, trabalho em tempo parcial, turnos de 12 horas por 36 horas, diárias, estes são exemplos do que são chamadas no livro de flexibilidade pré-regulamentada.

A discussão no meio empresarial vem com pinceladas de positividade, modernidade, progressividade. E não implicaria em redução da jornada de trabalho e sim em direção a alçar maior rendimento de trabalho e evitar tempos perdidos, decorrentes da contratação de trabalho em tempo contínuo. Por fim, significa redução de desperdício de mão de obra, de horas extras conduzindo ao aumento de competitividade.

Por outro lado, o trabalho flexível gera instabilidade para grandes e pequenos negócios e dificulta a manutenção de mão de obra qualificada, da qual as grandes redes internacionais não querem se desfazer. E consigo um efeito extremamente negativo para o trabalhador – a desconstrução de direitos.

Dal Rosso constrói seu argumento mostrando como a flexibilidade laboral faz parte do discurso neoliberal hegemônico. Para o autor, ao introduzir jornadas flexíveis ao processo de trabalho o capital está movendo um mecanismo que converte tempo de não trabalho em tempo de trabalho, trazendo para a esfera de controle do capital as horas laborais que estavam sistematicamente fora de sua dominação. Ao reorganizar as horas laborais para atender à produção, está atendendo antes de qualquer coisa as necessidades do capital do que as necessidades da força de trabalho. O dilema emerge do fato de não estar sob o controle de trabalhador e trabalhadoras a distribuição dos horários laborais.

A regulamentação é um elemento-chave do estudo da transformação do trabalho integral com direitos para o trabalho flexível sem direitos. Direitos sociais sempre foram uma pauta central para os trabalhadores. Por isso, o sociólogo e filósofo faz uma leitura inédita da flexibilidade do labor pela perspectiva da teoria do valor. Teoria que coloca o trabalho e o trabalhador no centro do debate econômico, político e social por atribuir todo valor das mercadorias de sua procedência do trabalho. Assim, o preço de uma mercadoria é o conjunto de trabalho abstrato socialmente envolvido em sua confecção. Por esta perspectiva, trabalhador e trabalho passam a ser protagonistas na produção de valor das mercadorias e teriam, em tese, o controle sobre a construção da sociedade.

As crises exercem um papel marcante sobre os estudos de flexibilização por afetarem diretamente as taxas de desemprego e as condições de acumulação. Períodos de crise são fases em que governos e empresas testam a reorganização do trabalho, entre as quais a flexibilidade.

Dal Rosso observa que a discussão da flexibilidade do trabalho ganhou força a partir 1970 e configura-se uma tendência global, capitaneada pelos países hegemônicos do capitalismo EUA, Canadá e União Europeia, embora isto não signifique a extinção do trabalho regular. Nos países periféricos, confunde- se com a informalidade e descumprimento dos preceitos dos direito laborais.

No Brasil, a flexibilidade apresentada inicialmente como medida em favor dos trabalhadores, representa um ardil, pois além de atender principalmente à necessidades do capital, também se esgarça nas desigualdades contidas nas categorias de gênero, idade, cor e raça.

A transição para a flexibilidade do trabalho é vista como ressignificação do trabalho, que cada vez mais se distancia do trabalho padrão com direitos. Esta tendência levou a instituições que zelam pelo trabalho como a OIT e a Eurofundation a hastearem a bandeira da “flexibilidade segura”, que seria uma flexibilidade com direitos. Todavia, reside aí uma incongruência, na opinião do autor, tendo em vista que a ideia de flexibilidade é antagonista à ideia de direitos conquistados, pois retoma práticas laborais já eliminadas como horas extras não remuneradas. Abre-se uma nova frente de luta para trabalhadores e trabalhadoras.

Dal Rosso também autor de “A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu”(São Paulo, LTr, 1996) e “Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea” (São Paulo, Boitempo, 2008).