Ficção científica, futurologia e o protagonismo do jornalista

Por Lidia Zuin

Como a ficção científica se tornou uma ferramenta de visualização de cenários futuros e como a futurologia pode ser um recurso importante no fazer jornalístico.

A futurologia, como disciplina que tem como objetivo postular sobre os futuros prováveis, possíveis e desejáveis, já dava seus primeiros passos há mais de dois mil anos, quando o historiador chinês Ssu-Ma Chien (145-90 a.C.) analisava padrões sociais ou quando essa mesma observação era feita pelo historiador norte-africano Ibn Khaldun durante o século XIV. Como instituição e disciplina, no entanto, a futurologia foi se estabelecer a partir de meados do século XIX, quando essa mesma tentativa de reconhecimento de padrões fazia parte dos estudos de filósofos como Auguste Comte.

Foi no final desse mesmo século que autores de ficção científica passaram a especular sobre o futuro, sendo o escritor H. G. Wells considerado o pai da futurologia. Já em 1901, o autor publicou uma série de escritos pelos quais tentava imaginar o mundo dos anos 2000, englobando tanto inovações tecnológicas como questões sociais e políticas. Por conta da relevância de seu trabalho especulativo, Wells chegou a ser convidado pela família real britânica para ministrar a palestra “The discovery of the future” no ano seguinte, em 1902.

Ainda antes, no começo do século XIX, quando o gênero da ficção científica foi inaugurado com a publicação de Frankenstein (1818), Mary Shelley trazia de volta o tema da criação da vida, presente desde o homúnculo dos alquimistas e chegando até os dias atuais pelos estudos em inteligência artificial e robótica. Se naquele momento a alquimia se encontrava em um meio termo entre a ciência e a magia, foi no século XX que o autor de ficção científica Arthur C. Clarke lançou as chamadas Três Leis de Clarke, segundo uma das quais qualquer tecnologia suficientemente avançada chega a ser indistinguível da magia.

Isto é, se o submarino de Verne em 20 mil léguas submarinas (1870) parecia um artefato mágico, hoje a tecnologia já se tornou trivial. Por outro lado, autores de ficção científica, como Arthur C. Clarke, além de especularem sobre o futuro da sociedade e da tecnologia em seus livros, também chegaram a contribuir com a comunidade científica. Clarke, que era físico e matemático formado pelo King’s College London, publicou artigos científicos como “Extra-terrestrial relays – can rocket stations give worldwide radio coverage?” (1945), que foi uma grande colaboração para o desenvolvimento de uma tecnologia ainda mais essencial e corriqueira na atualidade: os satélites geoestacionários. Em sua homenagem, a órbita dos satélites foi batizada de órbita Clarke.

Clarke, Isaac Asimov e Robert Heinlein ficaram conhecido como os três grandes escritores de ficção científica hard. Trazendo à ficção seus conhecimentos científicos na área da física, matemática, biologia e ciências políticas, esses escritores tinham a preocupação de dar um embasamento teórico e científico às tecnologias e cenários imaginados em suas obras. Já nos anos 1960, Philip K. Dick, autor de Do androids dream of electric sheep (1968), mais tarde adaptado para o cinema como Blade runner (1984), passou a quebrar a rigidez acadêmica da ficção científica para trazer histórias mais focadas em filosofia, sociologia ou mesmo psicologia.

Dos laboratórios às redações
Foi a partir do trabalho de Dick que novos autores, nos anos 1980, combinaram a inspiração cultural do movimento punk às pesquisas em cibernética para fundar um novo subgênero da ficção científica, o cyberpunk. Escritores americanos como William Gibson e Bruce Sterling se lançavam em coletâneas como Mirrorshades (1986) e romances como Neuromancer (1984) para tratar de um futuro próximo, distópico e permeado de megacorporações que seriam combatidas, às escuras, pela figura icônica do hacker. Este, aliás, ganhou destaque e representatividade na época conforme Sterling, originalmente jornalista, lançou a primeira obra que cobria o tema: The hacker crackdown (1992) abordava as histórias da subcultura hacker do começo da década, assim apresentando suas aspirações e projetos em um livro-reportagem.

Nesse sentido, a ficção científica se firmava como mais uma das várias ferramentas de visualização de cenários dentro da futurologia. Quando entrevistado em 2004, Arthur C. Clarke chegou a dizer que, em determinados contextos, a ficção é muito mais importante que a não-ficção, já que a partir dela se é capaz de criar universos e imaginar novos cenários em um contexto de grandes mudanças. Ao lado dela, no entanto, há ainda vertentes mais voltadas a uma aplicação mercadológica, como é o caso do coolhunting ou pesquisa de tendências, ferramenta popular entre os publicitários e no mercado da moda. No romance Reconhecimento de padrões (2003), William Gibson aborda a disciplina a partir da protagonista Cayce Pollard, uma caçadora de tendências avessa a logomarcas.

No contexto do jornalismo, Bruce Sterling segue publicando artigos em colunas nos sites das revistas Wired e Motherboard, do qual também participa com contos na plataforma Terraform. Por outro lado, Sterling também se destaca como futurólogo ao ministrar palestras sobre o tema, como visto na edição deste ano do festival SXSW. Já no Brasil, dentre os nomes proeminentes na futurologia, há também aqueles que são jornalistas de formação. Rafael Coimbra, apresentador da coluna Futuro: modo de usar no canal Globo News e coordenador do projeto LabMídia, foi o primeiro jornalista de TV do mundo a fazer o Executive Program da Singularity University, instituição de ensino de futurologia e administração criada pelos futuristas Ray Kurzweil (Google) e Peter Diamandis.

Segundo ele, a melhor função da futurologia, para um jornalista, é o desenvolvimento do senso crítico: “Ao explorar cenários possíveis, o jornalista deve confrontá-los com o que já existe no presente e as tendências em desenvolvimento. A partir daí, deve tentar entender os anseios da sociedade e cobrar de governos e empresas medidas que atendam, democraticamente, ao desejo da maioria.”. Coimbra defende que a futurologia é extremamente importante em uma época de transformações rápidas, servindo como uma ferramenta de planejamento estratégico ao profissional do jornalismo. “A questão é que a sensação de proximidade do futuro é cada vez mais ‘curta’. Se antes tentávamos imaginar como seria o mundo daqui a 50 anos, hoje é difícil saber o que vai acontecer nos próximos cinco”, argumenta. “Justamente por isso é preciso que dediquemos tempo para analisar as possibilidades em questão. O futuro vai acontecer de qualquer maneira.”

O jornalista ressalta o fato de que, ainda hoje, a futurologia pode ser vista de um ponto de vista pejorativo, como também apontado pela futuróloga Camila Ghattas, em entrevista para o site Meio e Mensagem. “É como se o futurólogo fosse alguém que trabalhasse com uma bola de cristal, tentando prever o futuro. Mas mais importante do que acertar uma previsão é fazer com que a sociedade, empresas e instituições governamentais reflitam sobre os rumos da humanidade”, diz Coimbra. Para ele, é mais relevante usar a futurologia para visualizar cenários e entender quais futuros se quer alcançar e como chegar até eles.

Ficção como projeto
É por isso que empresas como a Envisioning trabalham com pesquisa de tendências na área da tecnologia, oferecendo mapas de visualização de cenários para grandes companhias e instituições. Thiara Cavadas, head de pesquisa da Envisioning, explica que a empresa se baseia em um estudo e ensaio de tecnologias emergentes para a criação de cenários futuros: “Na nossa metodologia, partimos do princípio de que toda tecnologia nasce como uma ideia e pode evoluir para conceito, protótipo e, por fim, produto.”. Segundo ela, durante o mapeamento de ideias, a ficção científica se mostra uma fonte importante. “Ao ensaiar novas tecnologias e cenários futuros, além de apresentar e consequentemente difundir esses novos conceitos para o público de forma didática, a ficção científica acaba se tornando uma fonte inestimável para nossa pesquisa.”.

Thiara comenta que, no começo deste ano, a Envisioning desenvolveu um projeto chamado Sci-Fi – Sci-Fact para a Swarovski. “Junto ao cliente, buscamos entender a conexão entre ficção científica e a criação tecnológica usando a indústria de joias e mineração como estudo de caso”, conta. A pesquisadora explica que, em um primeiro momento, o projeto introduziu conceitos básicos de tecnologia e futurismo para depois inserir um mapeamento de tecnologias atuais da indústria em questão e que possuíam correspondentes na ficção científica. “Coletamos algumas tecnologias que aparecem na ficção científica e que são emergentes atualmente. Como conclusão, fizemos um ensaio de como a tendência de ‘desmaterialização’, que aparecia em várias ficções que mapeamos, poderia afetar (e muito) a indústria do cliente no futuro”, revela.

Do mesmo modo, para Rafael Coimbra, a conexão entre a ficção e diferentes campos da ciência e tecnologia está cada vez mais evidente. “Atualmente é bem mais complicado pensar em algo possível, mas ainda distante do ambiente que nos cerca”, opina. “Por isso, a ficção tem um papel fundamental de forçar a imaginação ao extremo. É criando histórias e mundos praticamente ‘impossíveis’ que estimulamos um ambiente de inovação.”.

É nesse sentido que projetos como a minissérie Mars, lançada pelo canal National Geographic no ano passado, acabam se utilizando da ficção científica como uma ferramenta para explorar cenários em conjunto com dados científicos. Enquadrada dentro do gênero docudrama, a produção conta com seis episódios que oscilam entre a narrativa ficcional de uma primeira missão colonizadora enviada a Marte e depoimentos de cientistas e empresários do ramo que abordam a questão da exploração espacial do ponto de vista teórico e comercial (o objetivo declarado de Elon Musk, dono da SpaceX, é levar humanos para o planeta vermelho até 2035).

Assim, como apontado por Thiara Cavadas, a ficção científica foi usada no caso de Mars como uma maneira didática de apresentar dados específicos e até mesmo técnicos que fazem parte do contexto de exploração espacial, assim ampliando a noção e visualização dos espectadores sobre as aventuras e desafios de uma primeira missão colonizadora em Marte. É justamente essa a potencialidade da ficção que Arthur C. Clarke apontava, sendo esta uma ferramenta de amplificação visionária e que pode muito bem funcionar para o jornalista, seja a partir da futurologia como suporte para o posicionamento diante das instituições e da sociedade, como argumentado por Rafael Coimbra, ou ainda como um novo formato que se adequa justamente a uma das tendências dentro da área, o jornalismo transmídia.

Jornalista protagonista
O exemplo do portal UOL Tab reúne não apenas um formato multimídia de produção jornalística, como também vídeos curtos que encenam uma narrativa ficcional para uma maior apreensão do contexto abordado nas reportagens. Do mesmo modo, documentários em realidade virtual, como os realizados pela Vice Brasil, também apontam para a tendência transmídia do jornalismo em um contexto de potencialização da banda larga e dos serviços customizados, on demand, que declararam tanto uma maior valorização da qualidade do conteúdo como um desdobramento multiplataforma que faz parte do comportamento das gerações atuais: segundo pesquisa realizada em parceria com o Grupo Abril e o Instituto Locomotiva, a geração X (nascidos entre 1960 e 1980) já é multiplataforma por excelência, oscilando naturalmente entre Facebook, TV e Whatsapp, que hoje se tornou o principal canal de consumo de notícias de 57% dos brasileiros.

Durante o evento “O potencial da transmídia no mercado de comunicação”, realizado em junho na Faculdade Cásper Líbero, o jornalista Julio Fernandes comentou justamente sobre a mudança na temporalidade do consumo de informação, desde os universos ficcionais que se desdobram em múltiplas plataformas (cinema, livro, jogo) ou mesmo na prática de binge watching (assistir a vários episódios de uma série em sequência), que são ambos sinais de que tanto a produção quanto a distribuição de conteúdos devem ser repensadas. Nesse cenário multitelas comumente abordado pela ficção científica de um ponto de vista distópico, como no curta Hyper reality (2016) de Keiichi Matsuda, o jornalista se insere como um produtor de conteúdo que precisa de relevância, já que o acesso à informação se tornou mais fácil e pulverizado em diferentes plataformas.

É a partir disso que os quadrinhos pós-cyberpunk Transmetropolitan (1997) de Warren Ellis apresentam o protagonista Spider Jerusalem como um jornalista anárquico e como uma homenagem ao jornalismo gonzo de Hunter S. Thompson, porém em um contexto de alta tecnologia e baixa qualidade de vida – um dos lemas do cyberpunk. Com uma abordagem agressiva e de espírito essencialmente punk, o personagem se posiciona como uma figura de resistência diante das múltiplas mídias e tecnologias, ou nas palavras do próprio Spider: “Jornalismo é só uma arma com apenas uma bala, mas se você mirar certo, é tudo que precisa. Mire certo e você consegue estourar o joelho do mundo.”.

Com a crescente automatização da produção de conteúdos hard news por inteligências artificiais (desde 2014, a Associated Press tem usado essa tecnologia para produzir relatórios), tudo indica que o jornalista precisa se reposicionar não apenas como um reprodutor de conteúdo, mas talvez como um polo de informação e esclarecimento, aliando sua capacidade de tradução de cenários e de visões de mundo com as potencialidades das novas mídias e diferentes plataformas, ao mesmo tempo que também se torna um ator social ao trazer à luz de forma mais palatável os conteúdos que não estão disponíveis ao público geral ou que se encontram desorganizados na rede. E é na inspiração do jornalismo gonzo e distópico da ficção científica Transmetropolitan que talvez possa nascer uma noção de protagonismo para o jornalista do futuro, já que cada vez mais a reprodução de meros relatórios passa a se tornar uma tarefa de máquinas e não de humanos – e isso não é mais ficção científica.

Lidia Zuin é jornalista, mestre em semiótica e doutoranda em artes visuais pela Unicamp. Head do núcleo de inovação e futurismo da UP line. Trabalhou para a Rockstar Games e publicou artigos sobre ficção científica e tecnologia nos sites Versions, Kill Screen e Folha de S.Paulo. Tem artigos publicados em livros e periódicos acadêmicos, além de contos de ficção científica em e-book e coletâneas.